10 | 05 | 2021

A ADC n°66 e a prestação de serviços intelectuais por pessoas jurídicas

Por Rodrigo Schwartz Holanda e Manoella Keunecke

No julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 66/DF (ADC 66), o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a compatibilidade do artigo 129 da Lei n° 11.196/2005 com o texto constitucional. A norma veiculada por este dispositivo prescreve que “a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita”, para fins tributários e previdenciários, tão somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, não obstante a possibilidade de desconsideração de personalidade jurídica nos casos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial [1].

Analisando o julgamento, percebe-se que o que se decidiu foi somente que o regime aplicável às pessoas jurídicas é compatível com o regime de tributação das sociedades dedicadas aos serviços intelectuais, independentemente do caráter personalíssimo da atividade desempenhada. Nesse contexto, é pertinente emprestar enfoque ao tema tendo em consideração a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2.446/DF (ADI 2.446), ajuizada em face do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 324/DF (ADPF 324), cujo objeto foi a licitude da terceirização de serviços.

Isso porque o reconhecimento da constitucionalidade do artigo 129 da Lei n° 11.195/2006 robustece duas coisas: primeiro, de um lado, reforça a legalidade da prestação dos serviços intelectuais por intermédio de uma pessoa jurídica para fins trabalhistas e tributários, e, de outro, assinala uma orientação à fiscalização sobre a impossibilidade de afastar o regime tributário aplicável a tais entidades.

É que a prática da prestação de serviços intelectuais através de pessoa jurídica, difundida no Brasil há muitos anos, embora tenha conhecidas vantagens — como a flexibilidade no estabelecimento das obrigações assumidas entre os contratantes e a redução dos encargos tributários e trabalhistas — sempre teve um grande inconveniente: era (e, talvez ainda seja) facilmente desconstituída pelas autoridades fazendárias e pelos juízos trabalhistas em ações judiciais.

As autoridades fiscais, nos termos dos artigos 142 e 149 do CTN, possuem competência para verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, realizar o lançamento e propor a aplicação da penalidade cabível. Nessa atividade fiscalizatória, contudo, não estão autorizadas a desconsiderar a autonomia da vontade das partes sobre o vínculo jurídico que desejaram estabelecer, seja ele, inclusive, direcionado à prestação de serviços intelectuais por pessoa jurídica constituída. Inexistindo ilicitude, por fraude ou abuso, a vontade dos contratantes merece algum peso — o peso que tem o valor da liberdade de iniciativa e de concorrência (inciso IV do artigo 1º e inciso IV do artigo 170 da Constituição Federal).

É notável que o problema nunca foi, verdadeiramente, o dispositivo colocado à prova na ADC 66 — cujo significado é quase uma obviedade —, mas o limite da liberdade do contratante para decidir a forma jurídica e conduzir suas ações de forma a obter o regime jurídico que lhe seja mais vantajoso ou interessante, seja tributário ou trabalhista. E, aqui, é inevitável fazer-se menção à ADI 2446, que questiona a compatibilidade do parágrafo único do artigo 116 do CTN com a CF. Aludido dispositivo prescreve que a “autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”, que até o momento inexiste — a despeito de alguns movimentos legislativos neste sentido (MP n° 66/2002 e n° 685/2015).

Ao analisar a compatibilidade deste dispositivo com o texto constitucional, a ministra Cármen Lúcia registrou, em minuta de voto, que a “norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada”.

A mesma lógica produz efeitos, também, trabalhistas. Por mais de uma vez, o STF decidiu temas afetos à área de forma diferente do que decidem os tribunais trabalhistas, emprestando prestígio e importância à autonomia da vontade dos contratantes e à livre iniciativa. Na tese firmada na ADPF 324 e no Recurso Extraordinário n° 958.252 (Tema 725 de repercussão geral), já referidos neste texto, permitiu-se aos contratantes decidirem pela contratação de quaisquer atividades empresariais, sejam de meio ou de fim — termos extraídos da infortunada Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) —, por vínculos que não o de emprego. Já na tese firmada no Tema 152 de Repercussão Geral (RE) 590415, reconheceu-se a validade da manifestação de vontade individual de empregado em aderir a plano de dispensa incentivada celebrado via acordo coletivo que preveja a quitação ampla e irrestrita de parcelas trabalhistas decorrentes de contrato de trabalho.

Agora, na ADC 66, o STF novamente reforça a legalidade de as partes contratantes definirem que a prestação de serviços intelectuais se dê através de relação jurídica que não a de emprego. Em concomitância, há, também, uma certa tendência legislativa, que acompanha o progresso jurisprudencial no sentido de prestigiar o autorregramento das partes da própria relação de emprego. É assim que, hoje, prevê-se a possibilidade de o empregado negociar alterações no contrato de trabalho, de conceder quitação anual do contrato de trabalho, de celebrar convenção de arbitragem trabalhista, de acordar a alteração da jornada de trabalho para o regime 12 x 36 ou o estabelecimento de banco de horas semestral, entre outras hipóteses. E, para além do que dispõe a Consolidação das Leis Trabalhistas, a Lei n° 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica) aplica-se também às relações trabalhistas, como decidiu a ministra Carmem Lúcia em seu voto na ADC 66.

Nesse contexto, o impacto trabalhista dessa decisão (ADC 66) parece ir além do cotejo atualizado entre os valores de livre iniciativa e do trabalho para ganhar um contorno propriamente prático e processual. A decisão denuncia a superação da ideia, muito enraizada na área trabalhista, de que a relação de emprego é a via principal pela qual se dá ou, pelo menos, deveria se dar a realização de trabalho humano. Esse sempre foi o fundamento que autorizava distribuir-se, judicialmente, ao contratante tomador o ônus de provar a inocorrência dos requisitos caracterizadores de vínculo de emprego quando houvesse alegação de fraude na adoção de outras formas jurídicas de prestação de serviços pelo contratado prestador. A ideia da presunção de que o vínculo jurídico da prestação de serviço fosse o trabalhista e, por isso, houvesse a desoneração probatória sobre o fato constitutivo do direito alegado pelo contratante prestador encontra, ainda hoje, autorização na Súmula n° 212 do TST.

É que a premissa de que a relação de emprego seja a principal fórmula de conexão de trabalhadores ao sistema socioeconômico e de que sejam excetivas as fórmulas ditas alternativas de prestação de serviços por pessoas naturais — v.g. por contratos de estágio, vínculos autônomos ou eventuais, relações cooperativadas, terceirização –— tem sido objeto de falseamento nas decisões do STF já mencionadas. O tribunal, enfrentando os principais dogmas da área trabalhista, permitiu a terceirização de serviços em quaisquer atividades empresariais, inclusive de forma personalíssima em atividades intelectuais (ADPF 324 e ADC 66). Parece, assim, que se abandonou a ideia de que a principal forma de se contratar serviços seja através de vínculo de emprego, que passa a ser uma dentre outras categorias jurídicas de que dispõe os contratantes no momento da definição das escolhas organizacionais e de modelo de negócio.

Nada disso impacta, ao certo, na possibilidade de o Poder Judiciário invalidar as fraudulentas contratações de prestação de serviços por pessoas naturais, que mascarem verdadeiras relações de emprego. O contrato de trabalho é, mesmo, contrato-realidade. Parece, contudo, que o contratado prestador não deva mais ser dispensado do ônus de comprovar os requisitos do vínculo de emprego nas oportunidades em que os afirme presentes. Se há possibilidade constitucional de autorregrar-se quanto à modalidade contratual, há também o ônus probatório sobre sua invalidação. E essa conclusão, propositalmente, nem ousa avançar para alcançar indagações sobre o venire contra factum proprium praticado pelo contratante prestador. Ainda que tenha, voluntariamente, contratado por certa modalidade contratual a prestação dos serviços, se alegar a sua invalidade, que, ao menos, dela faça prova.

Assim é que a mensagem do legislador, com a Lei n° 11.196/2005, e do STF, especialmente com a ADC 66, foi clara: pode o contratante prestador de serviços intelectuais se submeter às regras aplicáveis à pessoa jurídica, se assim desejar. Essa é, ao lado do contrato de trabalho, mais uma entre as possíveis categorias jurídicas a serem eleitas pelos contratantes e a sua desconsideração, para fins tributários, previdenciários e trabalhistas, pressupõe fraude, simulação, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. As autoridades fiscais, por sua vez, devem se submeter às opções legislativas — ideia que, espera-se, deva conduzir o julgamento da ADI n° 2.446. Sem prejuízo da necessidade de maior detalhamento sobre os limites legais e interpretativos da norma veiculada pelo artigo 116 do CTN, a adoção de forma jurídica que acarreta menor carga tributária e menor custo trabalhista, isoladamente considerada, não pode ser objurgada pela fiscalização. A opção do legislador e a autonomia das partes deve, a priori, prevalecer.

 


[1] “Artigo 50 — Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.

 

 é mestre em Direito Tributário pela PUC/SP, advogado tributarista, bacharel em Ciências Contábeis, professor de Direito Tributário do IBET/SC, especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP, especialista em Processo Civil, pesquisador do Instituto de Aplicação do Tributo, sócio do escritório Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados.

 

 é mestre em Direito do Trabalho e da Previdência Social pela USP, pesquisadora do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social (GETRAB-USP), advogada sócia do escritório Menezes e Niebuhr Sociedade de Advogados.

Por

Rodrigo Schwartz

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]

Rodrigo Schwartz Holanda - Menezes Niebuhr

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