04 | 08 | 2021

A dispensa de licitação eletrônica é modalidade de licitação disfarçada

Joel de Menezes Niebuhr

Reflexões sobre a Instrução Normativa SEGES/ME n. 67/2021

Por Joel de Menezes Niebuhr

O § 3º do artigo 75 da Lei n. 14.133/2021 prescreve que as hipóteses de dispensa dos seus incisos I e II devem ser “preferencialmente precedidas de divulgação de aviso em sítio eletrônico oficial, pelo prazo mínimo de 3 (três) dias úteis, com a especificação do objeto pretendido e com a manifestação de interesse da Administração em obter propostas adicionais de eventuais interessados, devendo ser selecionada a proposta mais vantajosa.”

O dispositivo foi regulamentado pela Instrução Normativa n. 67, da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, que se aplica no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional. Os demais entes da federação, na forma do artigo 2º da Instrução Normativa, também devem aplicá-la nas situações em que executarem recursos da União decorrentes de transferências voluntárias. O § 2º do artigo 3º da Instrução Normativa ainda preceitua que os demais entes federativos, se quiserem, a depender das suas vontades, podem valer-se do sistema do Governo Federal, denominado atualmente de Comprasnet 4.0, disponibilizado por meio da celebração de Termo de Acesso.

Pois bem, o procedimento prescrito no § 3º do artigo 75 da Lei n. 14.133/2021 e regulamentado pela Instrução Normativa n. 67 é o que se vem chamado de dispensa de licitação eletrônica.[1] Não se trata, diga-se de início, de mera faculdade para a Administração Pública federal. Os incisos I e II do artigo 4º da Instrução Normativa n. 67/2021 exigem a dispensa de licitação eletrônica para as contratações que não ultrapassam os limites indicados nos incisos I e II do artigo 75 da Lei n. 14.133/2021, respectivamente, R$ 100.000,00, para obras e serviços de engenharia e serviços de manutenção de veículos automotores, e R$ 50.000,00, para os demais serviços e compras.

A dispensa de licitação eletrônica não é destinada apenas às dispensas fundamentadas nos incisos I e II do artigo 75 da Lei n. 14.133/2021, mas é obrigatória para todas as contratações cujos valores não ultrapassem os limites prescritos nos referidos incisos, ainda que fundamentadas em outras hipóteses de dispensa de licitação. Ressalva-se, com perdão pela redundância, que a dispensa de licitação eletrônicavale apenas para as dispensas de licitação, não para as inexigibilidades.  

A propósito, é de destacar os casos de suposto duplo enquadramento em inexigibilidade e dispensa de licitação pública. Por exemplo, a Administração pretende contratar capacitação para os seus agentes, o que se encaixa na hipótese de inexigibilidade de licitação da alínea “f” do inciso III do artigo 74 da Lei n. 14.133/2021. Sucede que o valor da capacitação é inferior ao limite da dispensa de licitação do inciso II do artigo 75, também da Lei n. 14.133/2021.

Sem embargo, a rigor jurídico, não é certo falar de duplo enquadramento. Sucede que a inexigibilidade pressupõe inviabilidade de competição e a dispensa o oposto, a viabilidade de competição. Então, inexigibilidade e dispensa se repelem, por efeito do que o mesmo caso concreto não pode ter duplo enquadramento. O fato é que a inexigibilidade se sobrepõe à dispensa, porque a competição que é inviável não pode também, concomitantemente, ser viável. As situações de suposto duplo enquadramento são, na verdade, de inexigibilidade de licitação. Contudo, apesar de equivocado, não é raro que a Administração prefira formalizar a contratação como dispensa de licitação, para se ver livre das justificativas que são próprias à inexigibilidade de licitação acerca da inviabilidade de competição. Ou seja, na prática, acaba sendo mais fácil contratar como dispensa de licitação.

Ora, contratando caso de inexigibilidade como dispensa de licitação e com fundamento nos incisos I ou II do artigo 75 da Lei n. 14.133/2021, poder-se-ia cogitar sobre a obrigatoriedade da dispensa eletrônica de licitação. Afirma-se que ela não é devida, porque, ainda que se indique formalmente como fundamento os incisos I ou II do artigo 75 da Lei n. 14.133/2021, o fundamento verdadeiro é a inexigibilidade de licitação, sendo que o critério predominante para a escolha do contratado não é o preço e sim a técnica, o aspecto qualitativo. O mesmo raciocínio se aplica às situações em que a Administração indica a inexigibilidade e a dispensa de licitação como fundamentos cumulativos. Vale, pela mesma lógica e aí com mais facilidade, a inexigibilidade de licitação, de modo que não se realiza a dispensa de licitação eletrônica.

O melhor e o correto seria indicar que se trata de inexigibilidade de licitação e não dispensa de licitação, afastando-se a confusão. Diga-se, novamente, com perdão pela redundância duplicada, a dispensa de licitação eletrônica é para casos de dispensa de licitação e não para casos de inexigibilidade de licitação pública.

Para as demais hipóteses de dispensa de licitação previstas no artigo 75 da Lei n. 14.133/2021, mesmo que os valores ultrapassem os limites dos incisos I e II do mesmo artigo, a dispensa de licitação eletrônica deve ser utilizada “quando cabível”, na expressão do inciso III do artigo 4º da Instrução Normativa n. 67/2021. Ressalta-se que, quando for cabível, os agentes administrativos não estão livres para deixarem de utilizar a dispensa de licitação eletrônica, que passa a ser a regra, cujo não emprego demanda a existência de algum motivo ou razão. Sucede que a dispensa de licitação eletrônica é cabível nas situações em que a escolha do futuro contratado for pautada no critério preço, sem que aspectos qualitativos sejam determinantes ou relevantes, o que constitui a maioria expressiva dos casos de dispensa de licitação. Sendo assim, a não utilização da dispensa de licitação eletrônica passa a ser a exceção, que tem lugar em casos específicos, como os que envolvem emergências, inovação tecnológica, serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e outras situações de dispensa, insista-se, em que o fator determinante ou relevante para a Administração escolher o futuro contratado seja o qualitativo.

A dispensa de licitação eletrônica, desta feita com fundamento no inciso IV do artigo 4º da Instrução Normativa n. 67/2021, também deve ser empregada em “registro de preços para a contratação de bens e serviços por mais de um órgão ou entidade, nos termos do § 6º do art. 82 da Lei n. 14.133, de 2021.” Com efeito, o § 6º do artigo 82 da Lei n. 14.133/2021 prescreve que “O sistema de registro de preços poderá, na forma de regulamento, ser utilizado nas hipóteses de inexigibilidade e de dispensa de licitação para a aquisição de bens ou para a contratação de serviços por mais de um órgão ou entidade.”

Reforça-se, diante do conjunto das considerações acerca do artigo 4º da Instrução Normativa n. 67/2021, que a dispensa de licitação eletrônica não é de uso meramente facultativo, pelo menos não é para a Administração Pública Federal, em linha um tanto diversa do preceituado no § 3º do artigo 75 da Lei n. 14.133/2021, cujo texto assinala que ela deve ser empregada preferencialmente. Dito de outro modo, o artigo 4º da Instrução Normativa n. 67/2021 fez obrigatório o que o § 3º do artigo 75 da Lei n. 14.133/2021 qualificou como meramente preferencial. Não há ilegalidade nisso, porque é legítimo que a Administração Pública, por sua vontade, como é o caso, se obrigue a algo que o legislador determinou ser preferencial, é legítimo fazer mais do que lhe foi prescrito. Só haveria ofensa à legalidade se a Administração Pública fizesse menos, não desse a devida preferência à dispensa de licitação eletrônica, o que não ocorreu, bem ao contrário.

O procedimento da dispensa de licitação eletrônica segue o fluxo estabelecido no artigo 72 da Lei n. 14.133/2021 para as contratações diretas, com a particularidade de realizar-se em ambiente eletrônico, acrescido de exigências relevantes no tocante à seleção do futuro contratado: (i) o órgão ou entidade administrativa insere no sistema do Governo Federal as informações relativas ao procedimento de contratação (artigo 6º da Instrução Normativa n. 67/2021); (ii) daí um aviso de contratação direta é divulgado no sistema do Governo Federal e no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), sendo que os fornecedores registrados no Sistema de Registro Cadastral Unificado (SICAF) são comunicados diretamente por meio de mensagem eletrônica (artigo 7º da Instrução Normativa n. 67/2021); (iii) abre-se, então, o prazo de, no mínimo, três dias úteis para o envio de lances (parágrafo único do artigo 5º da Instrução Normativa n. 67/2021), que devem ser encaminhados por meio do sistema eletrônico, acompanhados dos demais requisitos exigidos no aviso de contratação direta e com o preenchimento das declarações exigidas no próprio sistema eletrônico (artigo 8º da Instrução Normativa n. 67/2021); (iv) segue-se uma etapa de lances, praticamente idêntica a de uma licitação, que fica aberta pelo tempo de seis a dez horas (artigo 11 da Instrução Normativa n. 67/2021); (v) encerrada a etapa de lances, verifica-se a conformidade da proposta de menor preço e se avaliam documentos de habilitação (artigo 15 da Instrução Normativa n. 67/2021), que são os constantes do Sistema de Registro Cadastral Unificado (SICAF) e outros que sejam exigidos e que devem ser enviados pelo sistema eletrônico (§ 3º do artigo 19 da Instrução Normativa n. 67/2021); (vi) aceita a proposta e atendidas as exigências de habilitação, o processo de contratação direta vai à autoridade competente para adjudicação e homologação (artigo 23 da Instrução Normativa n. 67/2021).

A conclusão vem ao natural: a rigor jurídico, esse processo de dispensa de licitação eletrônica é uma espécie de modalidade simplificada de licitação, embora não seja assim denominado pelo legislador nem pela Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia. Vê-se que ela segue o mesmo procedimento das licitações exigido no artigo 17 da Lei n.14.133/2021, com apenas duas diferenças mais significativas. A primeira é que não há propriamente edital, mas há algo que equivale a edital, que é o aviso de contratação direta previsto no artigo 7º da Instrução Normativa n. 67/2021, que tem a mesmíssima utilidade. A segunda é que não há fase recursal, exigida para as licitações no inciso VI do artigo 17 da Lei n. 14.133/2021. Os efeitos da ausência de fase recursal, no entanto, podem ser supridos pelo direito de petição que é reconhecido a todas as pessoas, inclusive àquelas que participam de processos de dispensa de licitação eletrônica. A única particularidade é que o direito de petição não tem efeito suspensivo, em razão do que se pode comparar a petição a um recurso sem efeito suspensivo.

Aliás, uma das críticas que se faz à Lei n. 14.133/2021 é que ela instituiu procedimento de licitação muito pesado e burocrático. Nesse sentido, o legislador não previu uma modalidade de licitação mais simples e célere para ser usada nos contratos de menor repercussão econômica e complexidade. A dispensa de licitação eletrônica é, por um caminho enviesado, essa modalidade de licitação mais simples e mais célere. O defeito dela é a sua delimitação apenas às hipóteses qualificadas pelo legislador como de dispensa de licitação pública. Poderia, em tese, se o legislador tivesse permitido, ser usada de modo bem mais abrangente.

Pondere-se que a licitação pública é obrigatória em razão da obrigação da Administração Pública de tratar com igualdade todos os interessados em contratar com ela. Noutras palavras, licitação pública é o processo administrativo necessário para tratar todos com igualdade. E o fato é que a dispensa de licitação eletrônica trata todos os interessados com igualdade, porque dá oportunidade a todos para apresentarem propostas, cuja seleção se dá pelo preço, portanto por meio de critério objetivo também respeitante da igualdade. A dispensa de licitação eletrônica é na verdade uma modalidade de licitação disfarçada.

Isso tudo leva à reflexão sobre a utilidade da dispensa de licitação, pelo menos da maior parte dos casos de dispensa de licitação prescritos pelo legislador, que se submetem ao processo de dispensa de licitação eletrônica na forma da Instrução Normativa n. 67/2021. Ora, a dispensa de licitação existe porque há casos em que a realização da licitação imporia sacríficos ao interesse público. O legislador dispensa a licitação, aceita agravos à isonomia, para proteger outros valores pertinentes ao interesse público. Dessa maneira, o processo de dispensa de licitação eletrônica da Instrução Normativa n. 67/2021 revela o desacerto e os excessos do legislador, porque na maior parte dos casos qualificados como dispensa de licitação é sim possível realizar processo administrativo que assegure igualdade aos interessados sem maiores prejuízos ao interesse público. Isso significa que não se precisava de tantas e tão largas hipóteses de dispensa de licitação, mas sim de uma modalidade de licitação que fosse mais simples e célere. Atualmente, por um caminho enviesado, dispõe-se dessa modalidade de licitação mais simples e célere, que, em tributo à grande confusão provocada pelo Legislativo, foi qualificada como dispensa de licitação eletrônica. Tirando de lado a confusão conceitual, o que vale é a essência e não o nome que se atribui às coisas, por efeito do que a dispensa de licitação eletrônica merece aplausos dado que é em essência licitação e, sendo em essência licitação, melhor contempla o princípio da isonomia e a regra da obrigatoriedade de licitação prescrita na parte inicial do inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal.

É preciso fazer um último registro sobre a Instrução Normativa n. 67/2021, mais precisamente sobre a inusitada faculdade outorgada pelo seu artigo 9º aos participantes da dispensa de licitação eletrônica de parametrizarem o valor final de seu lance. Ou seja, o interessado pode apresentar uma proposta inicial e, junto com ela, já apresentar a proposta final, que apenas deve ser considerada pela Administração Pública se outras pessoas oferecerem lances inferiores à sua proposta inicial.

Acontece que muitos interessados utilizam softwares para o envio automático de lances, que, na sua maior parte, frustram o caráter competitivo da licitação, porque praticamente retiram as chances de êxito dos outros interessados que não dispõem dos mesmos recursos tecnológicos. A Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, com pragmatismo acentuado, desistiu de combater o uso de tais softwares e preferiu institucionalizá-los, inclusive incorporando-os ao próprio sistema do Governo Federal e os oferecendo a todos os interessados. Pelo menos assim, esse deve ter sido o raciocínio dos autores da Instrução Normativa, todos acabam sendo tratados com igualdade.

Ressalva-se, entretanto, que pode vir a ocorrer situações delicadas. Imagine-se que interessado registra valor inicial e final com diferença expressiva, o que equivale dizer que o preço inicial caracteriza sobrepreço. Na sequência, a dispensa de licitação eletrônica em que isso ocorre não atrai muita atenção e nenhum outro interessado oferece lance inferior à tal proposta inicial. Ele é o vencedor da etapa de lances, porém fica registrado no sistema, praticamente confessado, o sobrepreço. O § 2º do artigo 9º da Instrução Normativa n. 67/2021 determina o sigilo do preço mínimo consignado no sistema para os demais interessados e para a Administração Pública, com exceção dos órgãos de controle externo e interno. Não é crível que os órgãos de controle, tendo ciência do sobrepreço, fiquem inertes. O interessado e os próprios agentes administrativos acabam vulneráveis, a situação é, no mínimo, estranha.


[1] Convém registrar que o Governo Federal já de bom tempo dispõe de instrumento de cotação eletrônica de preços, chamado de dispensa de licitação eletrônica pelo artigo 51 do Decreto 10.024/2019, que regulamenta o pregão eletrônico da Lei n. 10.520/2002. De acordo com o aludido Decreto, ele deve ser utilizado pelas unidades gestoras integrantes do SISG para a contratação de bens e serviços comuns, inclusive de engenharia, nas hipóteses em que os valores não ultrapassam os limites das dispensas dos incisos I e II do artigo 24 Lei n. 8.666/1993 e nas demais hipóteses de dispensa de licitação do mesmo artigo 24, desde que os objetos sejam qualificados como comuns e não envolvam engenharia. Em resumo, trata-se de um meio para ampliar a cotação de preços, estendendo-o para um número expressivo de fornecedores, de maneira rápida e eficaz. A dispensa é registrada no sistema e os fornecedores cadastrados são avisados e podem oferecer propostas. O sistema recebe as propostas e seleciona a mais vantajosa.

Por

Joel de Menezes Niebuhr

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Advogado inscrito na OAB/SC sob o nº 12.639. Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre […]

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