18 | 07 | 2023

A extinção da modalidade culposa de improbidade administrativa

A Constituição de 1988, em seu capítulo destinado à regulamentação da administração pública, instituiu os pilares da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência como princípios norteadores da atividade administrativa estatal. Do mesmo modo, em meio aos anseios populares quanto aos abusos cometidos no âmbito do poder público, determinou que duras penalidades seriam aplicadas aos administradores que tivessem condutas incompatíveis com o exercício da sua função.

Nesse contexto, apesar de dar luz à figura da “improbidade administrativa”, o texto constitucional delegou ao legislador a necessidade da edição de uma lei específica, que regulamentasse de forma geral e determinasse quais as condutas seriam enquadradas como atos de improbidade administrativa (artigo 37, §4º).

Sobreveio, então, a Lei Federal nº 8.429/1992, que categorizou os atos de improbidade administrativa em três grupos: os de enriquecimento ilícito (artigo 9º); os que geram dano ao erário (artigo 10); e os de violação aos princípios que regem a administração pública (artigo 11). Quanto ao elemento subjetivo, caracterizava-se por culpa ou dolo os atos descritos no artigo 10, ao passo que se exigia a demonstração mínima da intenção dolosa para os atos previstos no artigo 9º.

Ocorre que, por ser a pioneira na tipificação de atos puníveis além do puro enriquecimento ilícito e diante de um ambiente político fadado pelas raízes históricas de corrupção, a Lei de Improbidade Administrativa sancionada em 1992 tramitou sob forte pressão popular e midiática.

Em um cenário conturbado e na tentativa de fazer justiça social, a Lei 8.439/1992 possibilitou excessos e tornou-se o pesadelo de muitos gestores públicos que, mesmo quando destituídos de qualquer intenção desonesta, acabavam condenados a irrazoáveis penas por falta de experiência ou inabilidade no trato das questões procedimentais e administrativas. Por longos anos, o que se presenciou foram ações sendo propostas a partir de parcos elementos e de resultados danosos irrelevantes ao bem jurídico tutelado.

Na verdade, a Lei 8.429/1992, ao punir indiscriminadamente, passou a falsa sensação de que a caça às bruxas acontecia e estávamos no caminho para amenizar o fardo da corrupção no Brasil. Mas não é preciso ir muito a fundo para perceber que a lei, apesar de punir intensamente, não obtinha êxito em atacar os seus verdadeiros alvos. Plantou-se temor e insegurança jurídica.

É nesse panorama que, no ano de 2018, exsurge o Projeto de Lei nº 10.887, se propondo a discutir reformas na sistemática de punição dos agentes públicos por improbidade administrativa e alterar as disposições da Lei Federal nº 8.429/1992. Após três anos de tramitação, o projeto se materializou na Lei Federal nº 14.230/2021.

Fruto dessas discussões e do amadurecimento da interpretação quanto ao que de fato é um ato ímprobo, a Lei Federal nº 14.230/2021 operou alterações significativas na Lei de Improbidade Administrativa, sobretudo pela extinção da modalidade culposa, a imposição da necessidade demonstração do dolo específico das condutas e o afastamento de qualquer punição fundada em mera presunção.

Tal mudança de paradigma restou fixada logo no primeiro artigo da lei, cujos parágrafos delimitam três importantes pontos:

(1) Considera-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos artigos 9º, 10 e 11 desta lei;

(2) Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito, não bastando a voluntariedade do agente;

(3) O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.

Além disso, com o julgamento do ARE 843.989, o Supremo Tribunal Federal dirimiu dúvidas quanto à aplicabilidade da norma e firmou, por meio do Tema 1.199, que “é necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se — nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA — a presença do elemento subjetivo — DOLO“, bem como que “a nova Lei aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente”.

É evidente que, diante de tais mudanças, a Lei nº 14.230/2021 mobilizou uma legião de críticos, defensores de que a extinção de tipos punitivos e a necessidade de uma narrativa concreta e comprovada para embasar a propositura da ação pelo Ministério Público “afrouxa as rédeas” no combate à corrupção.

Ocorre que a forma da Lei de Improbidade Administrativa, que está em vigor desde 2021, apenas positivou, ao menos sob o aspecto do elemento subjetivo, aquilo que já era prática reconhecida pela jurisprudência há mais de duas décadas. Isso porque, numa tentativa de amenizar o texto viciado da Lei 8.429/1992, o Superior Tribunal de Justiça já havia traçado seu entendimento no intuito de aproximar as condenações por improbidade administrativa do objetivo precípuo da lei, que é alcançar “o administrador desonesto, não o inábil, despreparado, incompetente e desastrado” [1].

É dizer: a Corte Superior, dentro de sua competência, há muito entendeu que a improbidade administrativa não deve alcançar atos culposos e, sobretudo, destituídos de má-fé.

Reconheceu-se que o administrador despreparado que, por culpa, tenha gerado qualquer dano ao ente a que está vinculado deve ser punido na via administrativa, cujas penas têm esse fim e não se equiparam às de improbidade administrativa, em que a finalidade é punir condutas corruptas de natureza muitíssimo mais grave.

A nova lógica da legislação está alinhada ao Sistema Multiportas — criado por Frank Sander e instituído no Brasil pelo Código de Processo Civil de 2015 — que se opõe ao sistema clássico de ver a atividade jurisdicional estatal como a única capaz de solver conflitos. É a visão contemporânea de que a solução de conflitos e as punições podem se beneficiar da utilização de uma variedade de mecanismos, existindo métodos específicos e apropriados para lidar com cada situação concreta [2]. A aplicação desse entendimento no âmbito do direito administrativo vem se expandindo e já surtiu efeitos não só na nova redação da Lei de Improbidade Administrativa, como também no texto da Nova Lei de Licitações e Contratos.

É nesse sentir que as alterações na Lei de Improbidade Administrativa, especialmente quanto à tipificação dos atos, não devem ser avaliadas como retrocesso na punição ou ofensa às convenções internacionais contra a corrupção. O ato de punir, por si só, esvazia-se de sentido quando aplicado indiscriminadamente e acaba por causar temor generalizado, sem que se alcance o caráter efetivo das sanções.

Ainda é cedo para afirmar que as últimas modificações na Lei de Improbidade Administrativa terão bons efeitos concretos, uma vez que o alinhamento do texto legislativo com a conjuntura constitucional segue ocorrendo em discussões doutrinárias e nos tribunais superiores. À primeira vista, o que se percebe é que a lei exerceu necessárias mudanças no sistema punitivo da improbidade administrativa e positivou entendimentos há muito percorridos na via judicial, gerando um cenário que denota, ao menos em tese, maior segurança jurídica.


[1] STJ – Resp 213.994-0/MG, 1ª Turma, relator ministro Garcia Vieira, publicado em: 27/09/1999; STJ – Resp 480.387/SP, 1ª Turma, relator ministro Luiz Fux, publicado em: 24/5/2004.

[2] NOGUEIRA, Gustavo Santana; NOGUEIRA, Suzane de Almeida Pimentel. O Sistema de Multiplas Portas e o Acesso à Justiça no Brasil: Perspectivas a partir do Novo Código de Processo Civil. Forense: 2018.

Artigo publicado em Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2023.

Por

Carolina Stella Cesco

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Graduada em Direito pela Unisul.

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