14 | 05 | 2020

A Medida Provisória n. 961/2020 e a generalização do uso do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC)

Por Joel de Menezes Niebuhr

O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) foi criado para ser transitório e com objeto restrito relacionado com a Copa do Mundo de Futebol da FIFA e Olimpíadas, de acordo com o artigo 1º da Lei n. 12.462/2011. O RDC começou a ser utilizado e o Governo Federal a festejar as suas supostas vantagens, destacando a celeridade dos processos de licitação. Aliado ao desgaste do regime tradicional de licitação, que realmente não oferece respostas adequadas, o RDC foi sendo paulatinamente ampliado. Atualmente é permitido que ele seja utilizado para as ações integrantes do PAC, no âmbito da segurança pública e relacionadas à ciência, tecnologia e inovação, bem como para obras e serviços de engenharia do Sistema Único de Saúde, dos sistemas públicos de ensino, em estabelecimentos prisionais e unidades de atendimento socioeducativo, destinadas à melhoria na mobilidade urbana ou ampliação de infraestrutura logística, bem como para locações built to suit.

Com as ampliações havidas até agora, o RDC deixou de ser transitório, passou a poder ser utilizado para atender demandas permanentes e bem abrangentes. Portanto, o RDC já vem convivendo de maneira estável e sem prazo de validade determinado ao lado do regime tradicional de licitações, que é baseado na Lei n. 8.666/1993 e na Lei n. 10.520/2002 (modalidade pregão). O inciso III do artigo 1º da Medida Provisória n. 961/2020 ampliou o uso do RDC para qualquer sorte de objeto, não apenas os listados na Lei n. 12.462/2011. O RDC foi, enfim, generalizado.

A Medida Provisória n. 961/2020 é norma geral, produzida em razão da competência reconhecida à União pelo inciso XXVII do artigo 22 da Constituição Federal. Assim, as disposições da Medida Provisória incidem sobre todos os entes federativos, União, estados, Distrito Federal e municípios. A Medida Provisória, entretanto, estabelece disposições de caráter transitório, restritas ao período de tempo em que viger o estado de calamidade provocado pela pandemia de COVID-19, tal qual reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6/2020. A bem da verdade, o Decreto Legislativo n. 6/2020 afirma a calamidade apenas no tocante ao cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, mais especificamente ao atingimento dos resultados fiscais e limitação de empenho. Assim, o estado de calamidade foi limitado ao crédito orçamentário, encerra em 31 de dezembro de 2020. Isso significa que as disposições da Medida Provisória n. 961/2020, ainda que ela seja convertida em lei pelo Congresso Nacional, perdem sua validade em 31 de dezembro de 2020. Logo, a Medida Provisória autorizou a utilização do RDC de forma generalizada, para todas as contratações públicas, até 31 de dezembro de 2020.

Repita-se que o RDC convive ao lado do regime tradicional de licitações fundado na Lei n. 8.666/1993 e na Lei n. 10.520/2002, por efeito do que não é obrigatório. Os agentes administrativos gozam da opção de realizarem as licitações pelo regime tradicional ou pelo regime diferenciado. Essa pluralidade de regimes de licitação e o amontoado de leis e atos normativos sobre o assunto obscurecem a matéria, provocando sensação de incerteza e insegurança jurídica. Seria muito melhor que o país contasse com apenas um regime de licitações, uma lei somente, fruto do debate e do confronto democrático de ideias e percepções, que permitisse à Administração a melhora no desempenho das suas licitações e contratos.

O autor deste texto, por experiência pessoal, tem a impressão de que para muitos, equivocadamente, a principal característica do RDC diria respeito à desnecessidade de projeto básico para a realização da licitação. O RDC traria solução, meio que milagrosa, para desincumbir a Administração da ingrata tarefa de planejar e projetar os seus contratos. Com o RDC, tudo ficaria a cargo do contratado. Como dito, essa percepção é equivocada. A licitação sem projeto básico é característica de apenas um dos cinco regimes de execução indireta previstos na Lei n. 12.462/2011, denominado “contratação integrada”, conforme preceitua o §5º do seu artigo 8º. Aliás, a contratação integrada depende do atendimento de alguns pressupostos bem restritos, estabelecidos no artigo 9º da Lei n. 12.462/2011, especialmente diante da interpretação que vem sendo adotada pelo TCU, que exige justificativas muito robustas e complicadas (TCU, Acórdão n. 356/2020, Plenário. Rel. Min. Raimundo Carreiro, Julg. 19/02/2020).

As licitações promovidas pelo RDC não seguem quaisquer das modalidades tradicionais da Lei n. 8.666/1993 ou mesmo, oficialmente, a modalidade pregão. Não existe RDC modalidade concorrência ou RDC modalidade tomada de preços ou RDC modalidade convite ou RDC modalidade concurso ou RDC modalidade leilão ou RDC modalidade pregão. O RDC é em si uma modalidade própria, haja vista que representa um outro modo, uma outra maneira de realizar a licitação.

Em que pese isso, a principal característica das licitações do RDC e, por conseguinte, do próprio RDC, é a aproximação ou incorporação da sistemática da modalidade pregão. As semelhanças são gritantes: inversão das fases, etapa de lances, única oportunidade para interposição de recurso, com necessidade da prévia manifestação da intenção de recorrer, e preferência à disputa eletrônica. Pode-se mesmo dizer que, em boa medida, o RDC é um pregão disfarçado, com um jeito de andar meio esquisito, talvez com mais glamour, mas, em essência, no final das contas, algo muito próximo do pregão ou o próprio pregão com um nome diferente.

Afora alguns traços periféricos, a principal diferença entre o RDC e o pregão envolve as licitações de obras de engenharia. O ponto é que o artigo 1º da Lei n. 10.520/2002 prescreve que o pregão somente pode ser utilizado para bens e serviços comuns. O entendimento “oficial”, expresso no inciso I do artigo 4º do Decreto Federal n. 10.024/2019 e na Súmula n. 257, do TCU, admite o pregão para serviços de engenharia, desde que considerados comuns, e proíbe para obras de engenharia. O RDC foi a maneira encontrada para quebrar as resistências e utilizar a essência do pregão, que é o que importa, para obras e serviços de engenharia de forma ampla e sem restrições. Falando diretamente, por meio do biombo da generalização do RDC, a essência do pregão foi generalizada, inclusive para obras de engenharia.

É de destacar que a generalização do uso do RDC pode ser positiva no tocante à utilização dos sistemas eletrônicos, como observa Renato Fenilli, Secretário Adjunto de Gestão do Ministério da Economia.[1] Sucede que as modalidades da Lei n. 8.666/1993 não são realizadas por meio eletrônicos, apenas a modalidade pregão, da Lei n. 10.520/2002. No entanto, repita-se, a modalidade pregão não pode ser empregada para obras. Então, até a Medida Provisória, mesmo em meio à pandemia de COVID-19, as licitações de obras precisavam ser presenciais, o que contrariava a diretriz de isolamento social e fazia com que alguns gestores públicos preferissem adiar as licitações. O ponto é que as licitações do RDC podem ser realizadas por meio eletrônico, todas elas, inclusive as obras. A generalização do RDC traz consigo também a generalização das licitações eletrônicas.

O modelo de licitação do RDC é vantajoso, bem melhor do que o da Lei n. 8.666/1993 e da própria modalidade pregão. A Medida Provisória n. 961/2020 generalizou o uso do RDC, porém apenas até 31 de dezembro de 2020. Não seria de todo surpreendente que esse prazo acabe sendo esticado e o que era para ser transitório se torne permanente. O tempo dirá.

Por

Joel de Menezes Niebuhr

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Advogado inscrito na OAB/SC sob o nº 12.639. Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre […]

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