10 | 07 | 2019
Artigo de autoria do sócio Pedro de Menezes Niebuhr, publicado originalmente no portal JOTA.
É praticamente inviável litigar em uma demanda ambiental e urbanística, sob a perspectiva da defesa. A partir de divergências interpretativas e técnicas, a acusação cria dúvidas acerca da legalidade de determinadas atividades ou implantações e colhe todos os benefícios dela. Nessas demandas, a pretexto de salvaguardar bens e valores ambientais e urbanísticos, desconsidera-se totalmente a ideia de paridade de armas entre defesa e acusação: o que a acusação fala é verdade pelo simples fato de, pretensamente, estar-se diante da defesa do meio ambiente, enquanto que os elementos que a defesa suscita são desconsiderados, talvez por representar a antítese da proteção ambiental.
A acusação não paga para litigar, não paga por perícia e não paga sucumbência. Não há nenhum estímulo à litigância prudente ou responsável. Cria-se a dúvida, tira-se proveito dela e, na hipótese de insucesso, não se atribui nenhuma consequência negativa à acusação.
A condenação é facilitada. Inverte-se o ônus da prova, admite-se ampla e qualquer modalidade de responsabilização sem elemento anímico, faz-se terra arrasada de manifestações ou atos administrativos eventualmente favoráveis aos particulares e se dá pouco ou nenhum valor à segurança jurídica ou à proteção à confiança legítima, apenas para mencionar algumas implicações.
Esse modelo de litígio não faz distinção entre o estado das coisas; abraça todo tipo de situação. Coloca na vala comum tanto a atividade ostensivamente clandestina e irregular, executada com deliberado e consciente intuito de transgredir a norma de proteção ambiental, quanto a atividade até então reputada regular, respaldada inclusive em atos administrativos de autorização ou licenciamento ambiental e urbanístico.
A atenção da presente análise se volta para esse segundo caso, das atividades e implantações até então reputadas por regulares, lícitas, pelos órgãos de proteção ambiental. Para a acusação, um parecer técnico, uma autorização ou uma licença administrativa valem quase nada. Basta uma divergência qualquer, muitas vezes fraca e carente de motivação, para que a dúvida fulmine a validade de um ato administrativo. Toda avaliação feita por equipes multidisciplinares nos processos de licenciamento são desconsideradas; atividades são embargadas e obras demolidas com base na dúvida, na divergência.
Em boa hora a Lei nº 13.655/18 alterou as Normas de Introdução ao Direito Brasileiro (“LINDB”) para tentar recuperar o equilíbrio e a contenção em sede de controle judicial de atos administrativos. Importantes disposições da LINDB têm repercussão direta nas demandas judiciais de natureza ambiental e urbanística.
O artigo 22 da LINDB diz que “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”. O §1º do dispositivo complementa que “em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”.
Já o artigo 24 da LINDB preceitua que “a revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas”.
Os dispositivos positivam, no Direito brasileiro, a ideia de deferência do controle judicial à deliberação adotada na esfera administrativa, além da proteção à confiança legítima e à expectativa dos direitos dos administrados depositada na deliberação da Administração Pública.
Em termos práticos, as citadas regras determinam que o juiz, ao apreciar uma demanda ambiental ou urbanística cuja causa de pedir ou pedido verse ou percute sobre a validade de atos administrativos autorizativos ou licenciatórios, deve não só levar em conta mas respeitar e prestigiar a opção adotada na esfera administrativa que, a luz das informações e do entendimento vigente ao tempo da expedição das licenças e autorizações, considerou a atividade ou implantação legal e tecnicamente viável do ponto de vista ambiental e urbanístico.
Trata-se de importante dedução. Toma-se como exemplo as questões ambientais. A normatização ambiental faz uso frequente e recorrente de conceitos jurídicos indeterminados ou da remissão a categorias ou conceitos técnicos. O legislador, ao fazê-lo, atribuiu de forma proposital alguma margem de liberdade ao gestor (autoridade administrativa) para que este complementasse, dentre um conjunto plural de alternativas, o conteúdo da norma que lhe parecesse mais razoável.
Com base nessa prerrogativa – atribuída, insista-se, pelo legislador à Administração Pública – se procede aos enquadramentos dos portes e potenciais poluidores/degradantes de determinas atividades (para efeito de definir os procedimentos licenciatórios e estudos exigíveis), define-se os ecossistemas e ambientes protegidos em sede de licenciamento (limite de restingas, manguezais, dunas etc.), delimita-se os contornos de direitos ao aproveitamento de recursos naturais (por exemplo, estágios sucessionais de vegetação nativa para corte), entre outras importantes variáveis.
Esses conceitos jurídicos indeterminados ou essas categorias técnicas complexas dependentes de explicitação pela Administração Pública perfazem os obstáculos reais do gestor, cuja ambiguidade ou grau de indeterminação e imprecisão equivalem às circunstâncias práticas que limitam ou condicionam a ação do agente no juízo sobre a expedição de licenças e autorizações ambientais e urbanísticas.
Essa avaliação complexa feita pela Administração Pública deve ser protegida e respeitada, ainda que o juiz (nesses casos ambientais e urbanísticos essa posição costuma ser expressa pela opinião do perito judicial) discorde do encaminhamento eventualmente adotado pelo agente administrativo. Essa avaliação corporifica o entendimento que a Administração Pública, no legítimo exercício da prerrogativa de complementar o sentido da norma ambiental ou urbanística, atribuiu à situação ao tempo da tomada da decisão.
Não se trata de esvaziar o poder do Judiciário de apreciar a validade de licenças ou autorizações administrativas expedidas. Mas de reequacionar e balizar o exercício do poder de controle judicial dos atos administrativos para limitá-lo àqueles casos em que, de forma inequívoca, clara e ostensiva, a licença ou autorização tenha sido expedida de forma irregular, flagrantemente contrária à legislação. Enquadrar-se-ia nessa hipótese a expedição de uma licença ou autorização contrária (e sem motivação adequada) aos pareceres técnicos produzidos ou os casos em que a própria avaliação de impactos ambientais e urbanísticos tenha sido incontroversamente irregular.
Em sentido oposto, os artigos 22 e 24 da LINDB protegem e exigem respeito, por parte do juiz, às avaliações e decisões editadas em situação de normalidade, precedidas das correspondentes análises e com base nos elementos de informação exigidos pela normatização aplicável, ainda que, e neste ponto é necessário repetir à exaustão, o encaminhamento adotado pela Administração Pública se revele contrário ao que a acusação ou o próprio juiz fariam no lugar do agente administrativo.
A adequada compreensão do alcance das alterações na LINDB ainda está por ser proposta pela doutrina e determinada pela jurisprudência. O primeiro passo parece já ter sido dado. Em encontro acadêmico que reuniu professores de Direito Administrativo de algumas das mais importantes instituições científicas do país, pesquisadores do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) aprovaram a edição de enunciados sobre a LINDB, dentre os quais se destacam os seguintes:
Enunciado 11. Na expressão “dificuldades reais” constante do art. 22 da LINDB estão compreendidas carências materiais, deficiências estruturais, físicas, orçamentárias, temporais, de recursos humanos (incluída a qualificação dos agentes) e as circunstâncias jurídicas complexas, a exemplo da atecnia da legislação, as quais não podem paralisar o gestor.
Enunciado 13. A competência para dizer qual é a melhor decisão administrativa é do gestor, não do controlador. O ônus argumentativo da ação controladora que imputa irregularidade ou ilegalidade à conduta é do controlador, estabelecendo-se diálogo necessário e completo com as razões aduzidas pelo gestor.
Enunciado 16. Diante da indeterminação ou amplitude dos conceitos empregados pela lei, se, no caso concreto, a decisão do administrador mostrar-se razoável e conforme o direito, o controlador e o juiz devem respeitá-la, ainda que suas conclusões ou preferências pudessem ser distintas caso estivessem no lugar do gestor.[1]
Os enunciados indicam que tendo a Administração Pública atribuído aos preceitos normativos incidentes sobre o caso concreto uma interpretação razoável, tomada com base nos elementos de informação e entendimentos então disponíveis e consolidados, deve a posição da Administração Pública ser respeitada. A competência para dar concretude aos preceitos normativos indeterminados ou que necessitam de integração com análises e conceitos técnicos é da Administração Pública e não do controlador ou do juiz (por corolário, do perito judicial). Esses não devem impor às situações postas em controle a sua interpretação ou seu entendimento sobre tais variáveis quando o encaminhamento atribuído pela Administração Pública nos atos autorizativos ou licenciatórios tenha sido razoável, jurídica e tecnicamente defensável.
Sob a égide das alterações promovidas na LINDB, a dúvida criada pela acusação a partir de divergências técnicas ou interpretativas em demandas ambientais e urbanísticas agora passa a militar em prol dos atos administrativos e dos administrados e não mais a favor da acusação.
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[1] http://ibda.com.br/noticia/seminario-promovido-pelo-ibda-aprova-enunciados-sobre-a-lindb
Pedro de Menezes Niebuhr é sócio da Menezes Niebuhr Advogados Associados, Professor dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutor em Direito Ambiental pela PUC/RS. Conselheiro do Conselho Estadual de Meio Ambiente de Santa Catarina.
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Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Professor dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC, onde leciona, pesquisa e […]
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