24 | 06 | 2021
Por Rodrigo Schwartz Holanda
O primeiro artigo desta série tratou dos entraves entre o contribuinte e o fisco quanto à correta interpretação do novo regime contábil, mais especificamente sobre o questionamento direcionado à Administração Fazendária acerca da “influência, após a vigência da Lei n. 12.973, de 2014, da adoção das novas normas contábeis pela Lei n. 11.638, de 2007”, para fins tributários. Deixando de lado o objeto da consulta, a orientação da Receita Federal foi no sentido de que a informação contábil – no caso, relativa ao impairment – impacta nos créditos da contribuição ao PIS da COFINS pelo fato de as contribuições não terem recebido um tratamento legal específico, como houve para o IRPJ/CSLL (art. 32 da Lei n. 12.973/2014).
O entendimento registrado na solução de consulta COSIT n. 672/2017 parte da ideia de que a legislação incorporou a disciplina contábil, sendo enfático ao consignar que a ausência de disciplina legal “denota a intenção do legislador de permitir que a aplicação do instituto contábil possa produzir efeitos na legislação das contribuições”[1].
Mas o posicionamento não pode ser analisado de forma isolada. Para exemplificar, vejamos outra orientação da Receita Federal (COSIT n. 198/2019), que também habita a lacuna entre o tratamento contábil e o tributário e não possui disciplina legal, sobre a necessidade de oferecer à tributação o resultado positivo da alienação de ações de entidade controlada nos casos em que a perda do controle não é verificada. Por mais que o resultado positivo da operação produza acréscimo patrimonial e esteja habilitado a comparecer na base de cálculo do IRPJ/CSLL, a dúvida decorre do tratamento contábil previsto pelo Pronunciamento CPC n. 36 e da Interpretação Técnica ICPC n. 09, que estabelecem que tais operações devem ser escrituradas em contas patrimoniais, sem compor o resultado da entidade.
É assim, note-se, porque as demonstrações consolidadas evidenciam a participação dos não controladores em conta passiva (PL) e o fato contábil de alienação sem perda do controle é traduzido mediante o lançamento a crédito (i) no investimento na entidade controlada e (ii) em outros resultados abrangentes e emparelhada a débito em conta ativa (caixa, por ex.). Ocorre, portanto, um negócio jurídico representativo de aquisição de nova disponibilidade, mas que não compõe no lucro líquido do exercício, motivo pelo qual a tributação das operações somente seria possível se houvesse – e esse é o ponto sobre o qual está cingida a controvérsia – uma norma que estabelecesse a adição para neutralizar o tratamento contábil.
A Receita Federal, ao analisar o tema, respondeu ao contribuinte que “o ganho de capital na alienação de bens do ativo não circulante classificados como investimentos, quando contabilizado no patrimônio líquido, será computado no lucro real mediante adição ao lucro líquido”, assumindo o artigo 31 do Decreto-Lei n. 1.598/1977 a feição de norma fundamenta a adição.
Trata-se, porém, de uma situação não disciplinada de forma expressa e cuja conclusão decorre de interpretação sistemática. Observe-se que o valor contábil, para fins de cálculo do ganho de capital, corresponde à soma algébrica do patrimônio líquido registrado na contabilidade e a mais ou menos valia e ágio por rentabilidade futura, sendo necessário realizar a avaliação pelo valor de patrimônio líquido em demonstração levantada na data da alienação ou liquidação (art. 33 do Decreto-Lei n. 1.598/1977). Ocorre que, por mais que o artigo 31 do Decreto-Lei n. 1.598/1977 mencione os “resultados na alienação”, as transações entre sócios não são escrituradas em conta de resultado.
Assumindo que a questão é controvertida e comporta mais de uma leitura, o fundamento para que essas operações não sejam oferecidas à tributação passa pelo seguinte roteiro: (i) o artigo 177 da Lei n. 6.404/1976 estabelece que a escrituração da companhia deverá observar os métodos ou critérios contábeis, (ii) a Lei n. 12.973/2014 disciplinou os efeitos indesejados decorrentes da adoção da nova contabilidade, (iii) o artigo 258 do Regulamento do Imposto sobre a Renda prescreve que “a determinação do lucro real será precedida da apuração do lucro líquido de cada período de apuração em observância às disposições das leis comerciais” e, dessa forma, (iv) ante a ausência de norma expressa que imponha a adição dos valores relativos às transações de capital, é razoável concluir que o legislador “incorporou” o tratamento contábil e respeitou o momento por ele eleito (a perda do controle) para que a operação seja evidenciada em resultado para que ocorra a tributação.
Com relação à ausência de norma que imponha a adição, observa-se que nem mesmo a Instrução Normativa n. 1700/2017 trata do assunto. Chama atenção que os artigos 39 e 215, § 14, que cuidam do ganho relativo à alienação de ativos não circulantes, tratam, respectivamente, de acréscimos à base de cálculo na apuração por estimativas e da apuração pela sistemática do lucro presumido, sem tratar das transações de capital.
Seguindo essa linha, considerando-se que tais ingressos não são tratados como resultado integrante do lucro líquido pela contabilidade, tal como ocorre com as ações em tesouraria[2], essa interpretação careceria de fundamento legal e transbordaria o conceito de lucro líquido, previsto no artigo 191 da Lei n. n. 6.404/1976 (o “resultado do exercício que remanescer depois de deduzidas as participações” previstas na lei).
Ainda em objeção à incidência da regra de ganho de capital constante do artigo 31 do Decreto-Lei n. 1.598/1977, pondera-se que o caput do dispositivo, por mais que se encontre no capítulo de resultados não operacionais, compreendidos no lucro líquido da sociedade, tem sua redação posterior à introdução dos padrões IFRS no Brasil, além de tratar de situação que não se qualifica como resultado pela normativa contábil. O silêncio da Lei n. 12.973/2014 poderia ser explicado pelo fato de se tratar de uma transação entre os sócios[3].
Assim, os “resultados” contemplados pelo artigo 31 do Decreto-Lei n. 1.598/1977 somente autorizariam a tributação se (i) comparecessem no lucro líquido ou (ii) se houvesse expressa previsão nesse sentido. Nessa linha, Roberto Quiroga Mosquera e Rodrigo M. Pará Diniz, reconhecendo que a questão é extremamente controversa, indicam que os ganhos nas transações de capital “não estarão sujeitos à tributação pelo IRPJ e pela CSLL enquanto o cenário de perda de controle (com a consequente reclassificação dos referidos saldos para conta de resultado) não se verificar”[4].
Nesse mesmo sentido, o artigo 109 do Código Tributário Nacional reforça que os princípios gerais de direito privado podem ser emprestados para a definição, o conteúdo e o alcance de seus institutos, de seus conceitos e de suas formas, mas não para definir efeitos tributários.
Dessa forma, inexistindo norma tributária específica, há que interpretar o termo com retidão ao sentido empregado pela legislação de regência e ao expediente previsto pela legislação para a composição do IRPJ/CSLL. Nessas balizas, os ganhos experimentados pelo controlador decorrentes da venda de participação sem perda de controle não se amoldam à hipótese de incidência do IRPJ/CSLL, sendo indevida – ou, ao menos, controvertida – a tributação, ante a inexistência de norma que imponha a adição.
Veja que essa é somente uma possível leitura. O que se busca chamar atenção, nesta série, não é para as conclusões, mas para a acomodação dos padrões IFRS nas situações não disciplinadas pela legislação. Afinal, os pronunciamentos emitidos até 13.05.2014 foram incorporados pela Lei n. 12.973/2014 em qual intensidade? Eis a pergunta que queda sem resposta.
[1] Destaca-se o trecho: “Considerando que a Lei n. 12.973, de 2014, cuidou especificamente dos efeitos do instituto da redução ao valor recuperável de ativos (impairmenttest) para fins do Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) (exemplos: art. 2 da Lei n. 12.973, de 2014, na parte que altera a redação do § 1º do art. 31 do Decreto-Lei n. 1.598, de 26 de dezembro de 1977; art. 32 da Lei n. 12.973, de 2014 etc.), pode-se inferir que a inexistência de regras similares na mencionada Lei para fins da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins denota a intenção do legislador de permitir que a aplicação de tal instituto contábil possa produzir efeitos na legislação das contribuições, inclusive em relação à apuração do crédito estabelecido pelo inciso VI do caput do art. 3º da Lei n. 10.637, de 2002, e da Lei n. 10.833, de 2003. 25. Sendo assim, considerando que o instituto contábil da redução ao valor recuperável de ativos (impairmenttest) enseja a redução do valor depreciável de um ativo (redução do valor contábil de um ativo ao seu valor recuperável), tal instituto enseja também a alteração dos encargos de depreciação relativos ao ativo em determinado período e, consequentemente, o altera o valor do crédito da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins em análise apurado no mesmo período”.
[2] Decreto-Lei n. 1.598/77
Art 38 – Não serão computadas na determinação do lucro real as importâncias, creditadas a reservas de capital, que o contribuinte com a forma de companhia receber dos subscritores de valores mobiliários de sua emissão a título de:
[…]
IV – lucro na venda de ações em tesouraria.
§ 1º – O prejuízo na venda de ações em tesouraria não será dedutível na determinação do lucro real.
[3] BIFANO, Elidie Palma; FAJERSZTAJN, Bruno. Reflexões sobre o Tratamento Tributário de Ganhos em Transações de Capital. In: Controvérsias Jurídico-Contábeis. São Paulo: Atlas, 2020.
[4] MOSQUERA, Roberto Quiroga; DINIZ, Rodrigo de M. P. Alienação de investimentos sem perda de controle: visão contábil e impactos tributários. In: Controvérsias Jurídico-Contábeis. São Paulo: Atlas, 2020. p. 337.
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]
Deixe seu comentário
Ao publicar um comentário, você concorda automaticamente com nossa política de privacidade.
Deixe um comentário