15 | 05 | 2020

Além do sensacionalismo: a Medida Provisória n. 966/2020 e a responsabilização de agentes públicos na pandemia

Por Isaac Kofi Medeiros

No dia 14 de maio de 2020, o Governo Federal publicou a Medida Provisória nº 966/2020, que trata da responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da COVID-19. A edição da normativa tem causado um certo ruído. Percebo uma certa tentativa de uso da falácia reductio ad hitlerum[2], para dizer que, sendo do governo Bolsonaro, a normativa é necessariamente ruim. Além disso, parcela da imprensa noticiou que o intento da Medida Provisória nº 966/2020 seria isentar o agente público de punições[3]. Não é bem assim. Na verdade, a Medida Provisória nº 966/2020 traz poucas novidades em termos de responsabilização de agentes públicos. Ela apenas reforça a aplicabilidade de recentes alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) no contexto da crise do coronavírus.

Essencialmente, a Medida Provisória nº 966/2020 prescreve que agentes públicos somente serão responsabilizados por seus atos no enfrentamento da COVID-19 em caso de dolo ou erro grosseiro (art. 1º). Ao tomarem decisões para enfrentar a emergência da saúde pública e/ou combater os efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia, o agente só responderá por seus atos quando agir mediante erro manifesto, evidente e inescusável, praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia (inc. I e II do art. 1º c/c art. 2º). Ao examinar esses atos, o controlador deverá considerar os obstáculos e as dificuldades reais do agente público diante da crise. Esta é a redação literal de algumas passagens da Medida Provisória nº 966/2020.

Faço questão de destacar a literalidade da Medida Provisória nº 966/2020 pois ela é idêntica a alguns trechos da Lei Federal nº 13.655/2018, que alterou parte da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, e do Decreto Federal nº 9.8302/2019, que a regulamentou. Chamo atenção principalmente aos artigos 22 e 28 da LINDB e ao § 1º do artigo 12 do Decreto, praticamente transcritos na Medida Provisória nº 966/2020 do Governo Federal. Trata-se de um conjunto de normas em geral festejado justamente por sua vocação de gerar uma espécie de empatia nos órgãos de controle, fazendo com que o controlador se coloque no lugar do gestor público ao examinar sua conduta.

O artigo 28 da LINDB[4], que corresponde ao artigo 1º da Medida Provisória nº 966/2020, pretende instituir uma proteção ao gestor público contra medidas de responsabilização temerárias, baseadas às vezes na simples divergência interpretativa entre o controlador e o gestor público sobre escolhas discricionárias, ou mesmo no erro de boa-fé do gestor. Feitos de carne e osso, gestores públicos estão suscetíveis a errar na execução da coisa pública. Podem errar na quantificação de um dado, na interpretação de uma norma, na expectativa de uma ação, na antecipação de efeitos colaterais, etc. O erro não pressupõe, automaticamente, que estejam agindo de má-fé, para prejudicar os cofres públicos ou a sociedade de forma geral, de modo que o impulso estatal de punir é arrefecido pelo artigo 28 da LINDB ao prescrever que só se pune ato de gestor mediante identificação de erro grosseiro ou dolo.

Daí porque falar que o dispositivo se trata de uma espécie de “direito ao erro do administrador público[5]. Diante de uma crise da extensão como a do coronavírus, em que decisões certeiras e impactantes precisam ser tomadas num curto espaço de tempo, à míngua de informações e consensos científicos inequívocos, o potencial de cometimento de erro tende a ser maior.

Já o artigo 22 da LINDB[6], que corresponde aos incisos I, II e IV do artigo 3º da Medida Provisória nº 966/2020, consagrou o chamado princípio da deferência, consistente na recomendação de que o controlador deve considerar as dificuldades práticas (limitações materiais) e jurídicas (indeterminação da norma) ao revisar as ações de gestores, principalmente quando se tratar de atos que envolvam matérias complexas, sobre as quais o gestor público está em melhor posição de examiná-las do que o próprio controlador.

De acordo com essa orientação, o controlador deve analisar se a circunstância em que o gestor se encontrava admitia mais de uma solução válida, em face da realidade da Administração Pública e da complexidade do caso. Caso positivo, o controlador apenas avalia a razoabilidade do ato do gestor, ao invés de impor a sua própria opinião sobre o mérito dela. Em sendo razoável, o controlador mantém a decisão do gestor, ainda que dela discorde.[7] Mesmo que ligeiramente distante, esse dispositivo em particular aproxima o direito público brasileiro da doutrina Chevron de deferência[8], consolidada nos Estados Unidos desde os anos 80, que institui o princípio segundo o qual as cortes aceitarão as interpretações razoáveis de órgãos governamentais sobre os termos ambíguos de legislações pertinentes ao seu exercício de competência[9].

A Medida Provisória nº 966/2020 também adapta mudanças relevantes da LINDB para o ambiente de emergência. Considere por exemplo os incisos III e V de seu artigo 3º, que instituem uma deferência específica para a crise do coronavírus. Respectivamente, os dispositivos dizem que o controlador, ao examinar a regularidade da conduta do gestor, deve levar em consideração a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência, e, ainda mais importante, o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para o enfrentamento da pandemia da COVID-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas.

Estas disposições são importantes para assegurar que gestores possam atuar no combate ao coronavírus sem a sensação constante de terem a sombra da guilhotina dos órgãos de controle sobre as suas cabeças. Erros serão cometidos e devem ser punidos, contanto que sejam grosseiros. Naturalmente, a intenção de má-fé também será censurada pelo controlador, como há de ser. Afora essas hipóteses, a pretensão de reprimir tende a ser excessiva e a prejudicar as atividades administrativas no combate à COVID-19, gerando aquilo que se chama de Administração Pública do Medo[10] ou ossificação administrativa[11], pois o clima de apreensão impede que bons agentes públicos inovem na solução dos problemas que enfrentamos e precisamos superar. Se a Medida Provisória nº 966/2020 traz alguma intenção escusa subjacente, é coisa para se avaliar caso a caso, com base em provas e exame de legalidade, doa a quem doer. O resto é sensacionalismo.

[2] Dimitri Dimoulis vai chamar de “argumento da reductio ad hitlerum” a estratégia de desqualificar uma teoria ou visão política a partir da sua associação ao regime nazista. DIMOULIS, D. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico- político. São Paulo: Método, 2006. p. 260. No caso, a estratégia é desqualificar o conteúdo de uma normativa apenas por sua associação com o governo Bolsonaro.

[3] Cf. https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/14/mp-livra-de-responsabilidade-agente-publico-que-cometer-erro-em-acao-de-combate-a-pandemia.ghtml; https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,nova-mp-de-bolsonaro-isenta-agentes-publicos-de-responsabilidade-por-combate-ao-coronavirus,70003302497;

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/bolsonaro-edita-mp-para-proteger-agentes-publicos-por-atos-na-crise-do-coronavirus.shtml; https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2020/05/14/mp-de-bolsonaro-e-guedes-sobre-virus-e-inconstitucional-coisa-de-ditadores.htm;  https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/medida-provisoria-e-excludente-de-ilicitude-da-covid-19.html

[4] Art. 28.  O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

[5] BINENBOJM, Gustavo; DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público e a Covid-19 em contextos de emergência. Conjur, 2020. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-abr-04/opiniao-direito-erro-administrador-publico-covid-19>

[6] Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

  • 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
  • 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
  • 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.

[7] JORDÃO, Eduardo. Art. 22 da LINDB – Acabou o romance: reforço do pragmatismo no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, nov. 2018. p. 79.

[8] A doutrina Chevron tem origem no precedente da Suprema Corte dos EUA Chevron U.S.A., Inc. versus NRDC, em que o Tribunal fixou uma espécie de teste bifásico de controle judicial de atos administrativos. No primeiro passo, o juiz avalia se a norma que embasou o ato comporta mais de uma interpretação. Se não comporta, e o gestor interpretou ela de uma maneira equivocada, o juiz deve revisar o ato. Se sim, passa-se ao segundo passo, onde avalia-se se a interpretação dada é admissível à luz do texto da norma. Se não é admissível, o juiz deve revisar o ato. Se sim, o juiz deve manter a interpretação, ainda que ele pessoalmente discorde da interpretação conferida pelo gestor público, em homenagem às capacidades institucionais do Poder Executivo. Desta forma, há controle judicial, mas sem invasão de mérito. SUNSTEIN, Cass. Law and administration after Chevron. Columbia Law Review, New York, vol. 90, 1990.

[9] SCALIA, Antonin. Judicial deference to administrative interpretations of law. Duke Law Journal, Durham, 1989. p. 511. Em sentido similar, Cass Sunstein diz que Chevron é a doutrina segundo a qual, em face da ambiguidade, é “enfaticamente a competência e o dever do departamento administrativo dizer o que a lei é”. SUNSTEIN, Cass. Chevron step zero. Virginia Law Review, Virginia, vol. 92, no. 2, 2006. p. 189.

[10] Cf. NIEBUHR, Joel de Menezes; NIEBUHR, Pedro de Menezes. Administração pública do medo. Jota, 2017. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/administracao-publica-do-medo-09112017>.

[11] SUNSTEIN, C.; VERMEULE, A. Interpretation and institutions. Chicago Public Law Research Paper, Chicago, n. 156, p. 1-55, 2002. p. 35.

 

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Isaac Kofi Medeiros

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Doutorando em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito do Estado pela UFSC. Graduado […]

Isaac Kofi Medeiros - Menezes Niebuhr

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