23 | 09 | 2019
Artigo de autoria do sócio Joel de Menezes Niebuhr.
Finalmente saiu o Decreto Federal n. 10.024/2019, que inaugura novo modelo de pregão eletrônico no âmbito da União, muito mais racional do que aquele que se tinha até então, disciplinado pelo Decreto Federal n. 5.450/2005. Há diversas novidades menores, que, embora menores, merecem ser refletidas com a devida atenção em estudo mais detalhado – não serão aqui. Mas o fato é que o Decreto Federal n. 10.024/2019 não se contentou com perfumaria, trouxe inovação substancial, que diz respeito ao núcleo da etapa de lances, portanto ao núcleo do próprio pregão eletrônico.
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No modelo antigo de pregão eletrônico, do Decreto Federal n. 5.450/2005, abria-se a etapa de lances e os licitantes podiam livremente oferecerem lances, por meio do sistema eletrônico. Os licitantes eram informados pelo sistema de imediato a respeito de cada novo lance registrado, bem como o respectivo valor, de modo que cada um dos licitantes podia oferecer novos lances. Cada licitante tinha a oportunidade de cobrir o preço proposto pelos outros licitantes.
Em dado momento, o pregoeiro acionava o sistema para que ele emitisse comunicação aos licitantes, cujo teor indicava o fechamento iminente dos lances, o que deveria ocorrer dentro de período de tempo aleatoriamente determinado pelo próprio sistema (tempo randômico), não superior a 30 (trinta) minutos. Ou seja, o sistema poderia estabelecer qualquer tempo dentro dos 30 (trinta) minutos, poderia ser alguns segundos apenas. Os licitantes e o próprio pregoeiro não eram informados sobre o tempo determinado pelo sistema. Pura e simplesmente os licitantes eram comunicados sobre o fechamento iminente dos lances, que se dava em até 30 (trinta) minutos. Findo o prazo aleatório, já não eram aceitos novos lances. Então, os licitantes deveriam encaminhar os seus lances antes do transcurso de tal prazo, porquanto, depois disso, o sistema já não os aceitaria. O vencedor era o licitante que enviasse o menor lance antes do fechamento do tempo randômico.
Esse modelo antigo de pregão eletrônico era prejudicial à Administração Pública. Dentre outros problemas, ocorria, com larguíssima frequência, que o vencedor da licitação fosse determinado de maneira fortuita, por sorte ou azar. Por exemplo, licitante poderia ser impedido de oferecer ótima proposta à Administração, porque, quando ele se preparava para fazê-lo, encerrou-se o tempo randômico e a recepção dos lances. Repita-se que o licitante que pretendia oferecer novo lance sequer tinha conhecimento do tempo de que ele dispunha.
No final das contas, o vencedor do pregão eletrônico, no modelo antigo, era escolhido pelo acaso, em virtude de um fator (tempo randômico) não informado, desprezando-se a busca pela proposta mais vantajosa para a Administração Pública, primeira finalidade da licitação pública. Esse modelo é injusto para os licitantes, porque o vencedor era determinado pelo fortuito, o vencedor era o licitante que tinha a sorte de oferecer lance no menor espaço de tempo antes do fechamento do tempo randômico e os perdedores eram aqueles que tinham o azar de serem impedidos de oferecerem novos lances, porque antes de fazê-lo, sem serem previamente avisados, a etapa de lances era encerrada pelo sistema. O licitante azarado pretendia oferecer novo lance à Administração Pública, apresentaria proposta mais vantajosa. O sistema, ao impedi-lo de fazê-lo, impedia que a Administração Pública recebesse proposta mais vantajosa. Era um típico jogo de perde-perde. Os licitantes perdiam e a Administração Pública perdia.
Na realidade, esse modelo antigo de pregão eletrônico foi instituído pelo Decreto Federal n. 3.697/2000 e replicado no Decreto Federal n. 5.450/2005. Está aí há 19 (dezenove) anos. Não fazia sentido no ano 2000, não fazia sentido no ano 2005, não fazia sentido desde sempre, porque o modelo, desde sempre, foi mal concebido. O Autor deste artigo ponderava, já de longa data, em obra sobre a modalidade pregão:
“De todo modo, já passou da hora de pensar noutra sistemática para a apresentação dos lances, em que a determinação do vencedor não estivesse atirada ao acaso, como costuma ocorrer atualmente. Poder-se-ia sugerir que depois de dado tempo, o sistema fecharia a etapa de lances quando transcorresse um minuto (ou qualquer outro tempo) do último lance apresentado. Isto é, alguém oferece lance; transcorrido um minuto sem que ninguém oferecesse novo lance, a etapa de lances seria encerrada. Daí os licitantes não poderiam reclamar do fortuito, uma vez que eles já saberiam, se quiserem oferecer outros lances, que estes devem ser apresentados antes de o último lance apresentado completar um minuto. Na verdade, poder-se-ia pensar em muitas outras soluções, bem simples e operacionalizáveis, para evitar que a etapa de lances seja encerrada e o vencedor do pregão eletrônico seja escolhido pelo fortuito, como malgrado ocorre hoje.”
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O novo modelo de pregão eletrônico do Decreto Federal n. 10.024/2019 prevê dois modos de disputa: o aberto e o aberto e fechado (incisos I e II do caput do artigo 31). A escolha do modo de disputa é discricionária, sem preferência apriorística por um ou outro e deve ser indicada expressamente no edital (inciso III do artigo 14).
No modo de disputa aberto, a etapa de lances tem a duração inicial de 10 (dez) minutos. Se algum lance tiver sido oferecido nos últimos 2 (dois) minutos, o tempo é prorrogado por outros 2 (dois) minutos e assim sucessivamente (§ 1º do artigo 32). Portanto, a partir do 8º (oitavo) minuto do tempo inicial, todos os licitantes sabem que dispõem de 2 (dois) minutos para cobrir dado lance. Se algum licitante oferece novo lance, o sistema abre a contagem de 2 (dois) minutos novamente. Então, o vencedor é o licitante que oferece lance não coberto pelos demais em 2 (dois) minutos. O vencedor não é mais determinado por sorte ou por azar. Todos sabem o tempo que dispõem para oferecerem os lances que desejarem. Se não oferecem, é porque não querem ou porque são negligentes. Com essa metodologia, a disputa é estendida enquanto os licitantes estiverem dispostos a oferecem novos lances, que representam propostas mais vantajosas para a Administração Pública. Dizendo de outra forma, a Administração Pública faz o óbvio: permite-se receber propostas mais vantajosas.
No modo de disputa aberto e fechado, há prazo inicial de 15 (quinze) minutos para o envio dos lances, seguido de aviso de fechamento iminente dos lances, com tempo aleatório (randômico) de até 10 (dez) minutos, sem prorrogações, findo o qual encerra-se a etapa de lances (caput e § 1º do artigo 33). Encerrado o tempo aleatório, todos os licitantes que ofereceram lances não superiores a 10% (dez por cento) do menor lance têm a oportunidade de oferecerem proposta derradeira e fechada, em até 5 (cinco) minutos (§ 2º do artigo 33). Se não houver 3 (três) propostas na margem de 10% (dez por cento), os licitantes que ofereceram as 3 (três) melhores propostas, independentemente dos valores, podem oferecer as propostas derradeiras (§ 3º do artigo 33). Passados os 5 (cinco) minutos essas propostas derradeiras são divulgadas e identificadas, apurando-se a proposta mais vantajosa para a Administração Pública.
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Esse novo modelo de pregão eletrônico é visivelmente melhor, porque a disputa é mais séria, não se decide pelo acaso, bem como oferece condições para que a Administração Pública apure a proposta mais vantajosa para si.
Afora isso, o novo modelo tende a acabar com o uso de robôs ou softwares de envio automático de lances, desenvolvidos para detectar a apresentação de um lance por qualquer licitante e, imediatamente, em fração de segundos, cobri-lo. No modelo antigo, era quase impossível, se a disputa fosse acirrada e um dos licitantes utilizasse o software, que alguém sem o software fosse vencedor de pregão eletrônico. Para que isso ocorresse, era necessário um grande golpe de sorte, que o tempo randômico encerrasse praticamente quando do oferecimento do seu lance, obstando que o software desse novo lance – o que seria feito em poucos segundos. A possibilidade era remotíssima. Esses softwares foram utilizados com frequência até agora e representam fraude ostensiva à licitação, crime previsto no artigo 90 da Lei n. 8.666/1993, porque comprometiam a isonomia, a paridade de armas num processo licitatório (inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal e caput do artigo 3º da Lei n. 8.666/1993).
No novo modelo, o software perde a utilidade. Ora, o oferecimento de lance em curto espaço de tempo não traz mais praticamente vantagem alguma, uma vez que a etapa de lances não se encerra aleatoriamente e de surpresa. No modo de disputa aberto, oferecido um lance, todos os demais licitantes dispõem de, pelo menos, mais 2 (dois) minutos para oferecerem novo lance, a fim de cobrir o anterior. Oferecer o lance em poucos segundos, insista-se, sob essa perspectiva, não é vantagem alguma.
No modo de disputa aberto e fechado, encerrada a etapa de lances, os autores dos melhores lances ainda podem oferecer lances derradeiros, em 5 (cinco) minutos. Aqui o software ainda pode ser útil, mas apenas para obter boa classificação na etapa de lances. Ao fim, não será determinante, em razão dos 5 (cinco) minutos para o oferecimento da proposta derradeira.
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O modelo antigo de pregão eletrônico sinalizava ao mercado que a competição não era justa. As etapas de lances eram decididas ao acaso, por sorte ou azar, e softwares eram utilizados de forma desbragada para fraudar a licitação. O conjunto da obra não inspirava credibilidade, indicava que a Administração Pública apreciava “artimanhas” e não dava valor à paridade de armas. Ficava bem claro que o “jeitinho“ era tolerado, até mesmo bem-vindo e recompensado.
O Decreto Federal n. 10.024/2019 inaugura modelo de pregão eletrônico mais arrazoado e tende, nessa medida, a melhorar a percepção do mercado sobre a seriedade da disputa, o que deve atrair licitantes de boa-fé, mais qualificados, que apresentam propostas verdadeiramente vantajosas. No entanto, os problemas não se resolvem por decreto. Decreto pode até ajudar, mas não resolve nada sozinho. O novo pregão eletrônico depende de nova postura da Administração Pública, que não pode mais ser permissiva com “jeitinhos” e “artimanhas”, que sempre voltam repaginados. Em 28 de outubro de 2019 o Decreto Federal n. 10.024/2019 entra em vigor. É preciso adaptar os sistemas de informática e a cabeça de quem faz e de quem participa das licitações. Corre-se contra o tempo.
[1] NIEBUHR, Joel de Menezes. Pregão Presencial e Eletrônico. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 345.
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Advogado inscrito na OAB/SC sob o nº 12.639. Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre […]
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Excelente reflexão! Que a edição deste Decreto seja o início de uma nova fase nas contratações públicas!
Conciso e objetivo comentário.