23 | 08 | 2021
Por Rodrigo Schwartz Holanda
A partir das reflexões levantadas no texto anterior, sobre a necessidade de tributação dos ganhos nas transações de capital na alienação sem perda do controle, mostra-se patente a lacuna existente no inter-relacionamento do Direito Tributário e da Ciência Contábil.
O resultado positivo na alienação de participação societária sem perda de controle produz acréscimo patrimonial e representa a aquisição de disponibilidade jurídica ou econômica. Trata-se, portanto, de operação que congrega todos os atributos elementares para a incidência do Imposto sobre a Renda.
Por força do tratamento contábil previsto no Pronunciamento CPC nº 36, tais operações assumem feição de transações entre sócios e não comparecem no resultado das pessoas jurídicas. Considerando-se que o lucro líquido das entidades é o ponto de partida para a apuração do resultado, a tributação pressupõe a existência de norma específica que autorize a adição, sendo controversa a interpretação do termo “resultado” para fins tributários.
Como visto anteriormente, em uma primeira perspectiva, o artigo 31 do Decreto-Lei nº 1.598/1977 prescreveria a incidência das transações de capital com fundamento na regra geral de ganho de capital das pessoas jurídicas, figurando o dispositivo como norma autorizativa da adição. Em uma segunda leitura, tais ganhos somente seriam oferecidos à tributação quando verificada a perda do controle, pois somente assim a operação passaria a compor o lucro líquido da entidade.
A partir do exame de alguns pronunciamentos da Administração Fazendária federal sobre a matéria, especialmente com relação ao reconhecimento do goodwill na aquisição de participações adicionais em entidade controlada, é possível constatar algumas inconsistências na compreensão dos efeitos da Lei nº 12.973/2014 nas situações em que a disciplina contábil não foi endereçada de forma expressa pelo diploma normativo.
Considerando que (i) o resultado contábil erigido pelos padrões IFRS é o ponto de partida para a apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, (ii) as transações com os sócios que não representem perda de controle devem ser escrituradas diretamente em conta de patrimônio líquido, sem trânsito pelo resultado, e (iii) inexiste norma específica que imponha a adição aos ganhos debitados no patrimônio líquido, a melhor leitura sobre a matéria parece conduzir à não tributação dos ganhos, ao menos até que ocorra o evento eleito pela contabilidade (perda do controle).
Entendimento contrário, vale frisar, traduz a possibilidade de o acréscimo patrimonial poder ser gravado duas vezes, o que não se compagina com a hipótese de incidência do Imposto sobre a Renda.
Uma questão que chama atenção entre as duas linhas interpretativas é essa posterior circunstância – não tão incomum – de o controlador perder o controle em momento subsequente ao da alienação.
São exemplos de perda de controle: (i) a alienação do controle mediante a venda integral ou parcial da participação societária, (ii) a diluição da participação em decorrência da emissão de novas ações integralizadas por terceiros, de modo que o poder de voto restante não confira mais o controle sobre a investida, (iii) a sujeição da controlada ao controle do governo, órgão regulador ou tribunal, (iv) a celebração de um acordo de controle compartilhado, de forma que a investida deixe de ser uma controlada integral e passe a ser uma controlada em conjunto e (v) a celebração de acordos entre outros acionistas da investida, de modo que venha a tornar o poder de voto desses outros acionistas maior do que o da investidora[1].
Nessas hipóteses, devem ser observados os procedimentos previstos nos itens 25 a 26 do Pronunciamento CPC nº 36 e a ICPC nº 9[2]. Essas orientações prescrevem que, caso seja verificada a subsequente perda de controle, eventuais ganhos reconhecidos diretamente em patrimônio líquido deverão, via de regra, ser reclassificados para o resultado do período, a título de ajuste de reclassificação, deixando de reconhecer o valor do investimento da controlada no balanço individual e o restante do investimento a valor justo. Considerando tal situação, vejamos as consequências da primeira e da segunda interpretações.
Admitindo a primeira interpretação, a posterior perda de controle acarretaria a reclassificação para resultado e, dessa forma, inexistiria previsão específica para exclusão do lucro líquido.
Logo, os valores, a despeito de já terem sido gravados pela tributação quando do lançamento em conta de patrimônio líquido, mediante a adição, seriam tributados novamente.
Nesse panorama, poder-se-ia cogitar eventual questionamento com base nos princípios norteadores do Sistema Tributário Nacional e da Regra-Matriz de Incidência Tributária do Imposto sobre a Renda. Afora as inúmeras questões que possam ser suscitadas sobre esse ponto, a situação conduziria o mesmo acréscimo patrimonial à dupla tributação: a primeira, quando da alienação sem perda do controle; a segunda, quando da reclassificação contábil em decorrência da ausência de norma específica para excluir os valores.
Nesse horizonte, seria igualmente plausível sustentar a simetria entre a exclusão dos valores reclassificados do lucro líquido para fins tributários com a anterior adição quando da contabilização em patrimônio líquido[3], sob a mesma fundamentação.
Sobre esse aspecto, a segunda interpretação, no sentido de que a incidência do IRPJ/CSLL ocorre no momento em que a perda do controle é verificada, parece ser mais coerente com a dinâmica da tributação da renda, porquanto esta seria considerada realizada somente quando compusesse o lucro líquido, evitando-se o cenário em que se tributam os valores lançados no resultado e que foram anteriormente tributados. Sendo certo que a questão comporta mais de uma interpretação, essa é uma leitura que se aproxima da incorporação das normas contábeis para fins tributários.
Ademais, deve-se ter em mente que os contratos são orientados pela causa jurídica buscada pelas partes, sendo a forma prevista em lei somente o meio que a exterioriza. A tributação não recai sobre fatos econômicos isoladamente considerados.
A contabilidade, por sua vez, busca evidenciar a essência econômica dos negócios jurídicos praticados pela entidade. Tanto é assim, note-se, que a norma contábil estabelece que, “em muitas circunstâncias, a essência do fenômeno econômico e sua forma legal são as mesmas. Se não forem as mesmas, fornecer informações apenas sobre a forma legal não representaria fidedignamente o fenômeno econômico” (CPC nº 00).
Fato é que, desde a publicação da Lei nº 11.638/2007, o contribuinte convive com a dificuldade de conciliar os padrões IFRS com as normas tributárias brasileiras.
Esse cenário – presente no Regime Tributário de Transição, previsto pela Lei nº 11.941/2009, até hoje, com a edição da Lei nº 12.973/2014 – sempre esteve acompanhado de mecanismos com vocação à neutralização das dissonâncias entre a tributação e a contabilidade.
Essa suposta neutralidade, veja-se, decorre das amarras constitucionais inerentes ao Sistema Tributário Nacional e da acaciana constatação de que as funções da norma tributária e da contabilidade não se confundem. Enquanto essa busca fornecer informações úteis a seus usuários, aquela estabelece hipóteses que, se ocorridas, deflagram a obrigação de pagar o tributo.
Por mais que a convergência contábil internacional seja um importante instrumento de redução de custos de conciliação entre diferentes padrões contábeis e facilite o acesso das empresas brasileiras a capitais estrangeiros, o mecanismo de inter-relacionamento das disciplinas, consistente na tomada do resultado contábil ajustado como ponto de partida para a tributação, gera dissensões interpretativas e tem se mostrado insatisfatório para pautar o convívio entre o fisco e o contribuinte.
Trata-se de um assunto que merece a devida reflexão, especialmente no momento atual, em que as cadeias produtivas estão cada vez mais complexas e que o custo de conformidade e a insegurança jurídica são alguns dos pilares que sustentam o movimento vocacionado a reformar a tributação brasileira sobre a renda e sobre o consumo.
Considerando-se as incertezas no regime tributário aplicável às combinações de negócios e o desenvolvimento do mercado de fusões e aquisições brasileiro, o debate deverá acentuar-se nos próximos anos.
[1] GELBCKE, Ernesto Rubens et al. Manual de contabilidade societária: aplicável a todas as sociedades: de acordo com as normas internacionais e do CPC. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 2232.
[2] ICPC n. 9:
Perda do controle e alterações na participação em controlada
70A. No caso da controladora perder o controle da controlada, consoante preveem os itens 25 e B97 a B99 do Pronunciamento Técnico CPC 36 – Demonstrações Consolidadas, deve-se (i) desreconhecer o valor do investimento da ex-controlada no balanço individual e, no caso do balanço patrimonial consolidado, desreconhecer os ativos e passivos da ex-controlada; e (ii) reconhecer o investimento remanescente na ex-controlada, se houver, ao seu valor justo na data em que o controle foi perdido, tanto nas demonstrações individuais quanto nas demonstrações consolidadas.
[3] Nesse ponto, Marcos Takata menciona que “na alienação do controle, o ganho reclassificado do PL para conta de resultado é excluível do lucro líquido. Os mesmos fundamentos que autorizam a tributação daquele ganho nas transações de capital chancelam sua exclusão, na transferência para conta de resultado, pois o que é tributável (na alienação do controle) é a diferença entre o valor de alienação e o que se considera valor contábil pela mesma norma legal (tributável é o ‘resultado’ na alienação em face do que se considera valor contábil).” TAKATA, Marcos. Transações de capital – compra e venda de investimento sem perda de controle – ágio, ganho ou perda de capital – resultado não realizado (RNR) – distinções entre os tratamentos contábil e fiscal? Controvérsias jurídico-contábeis. v. 2. 1. ed. [S.l.]: Atlas, 2021. p. 363.
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]
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