03 | 08 | 2021
Por Maria Alice Trentini Lahoz e Vitor Esmanhoto da Silva,
O anteprojeto da nova lei foi elaborado por ilustres juristas, como o ministro do Superior Tribunal de Justiça Hermann Benjamin e a professora Claudia Lima Marques, referências na área. O ato normativo foi debatido por quase dez anos nas casas legislativas, iniciado como Projeto de Lei do Senado n° 283/2012, após submetido à revisão da Câmara dos Deputados e designado como Projeto de Lei n° 3.515 ainda em 2015. A motivação para a tutela do endividamento dos brasileiros é evidente: quase 62 milhões de brasileiros estão inadimplentes, segundo dados do Serasa [1].
Mais do que endividados, segundo o regramento da nova lei, grande parcela dos consumidores do Brasil estão superendividados. O fenômeno, segundo Cláudia Lima Marques, trata-se da outra face da democratização do crédito [2], pois em que pese sejam vários os benefícios potenciais do amplo acesso aos financiamentos, há custos e riscos que careciam de tutela jurídica específica, como a redução da poupança familiar, a inflação e a perpetuação do endividamento [3]. Clarissa Costa de Lima, que contribuiu para a redação da Lei n° 14.181/2021, chama atenção, pois “nos casos mais graves, as dívidas superam o patrimônio do devedor (bens e rendas), impossibilitando o seu pagamento, fenômeno conhecido por superendividamento” [4].
Inaugurando uma importante seção no capítulo atinente aos contratos de adesão no Código de Defesa do Consumidor (CDC), a Lei n° 14.181/2021 incluiu os artigos 54-A a 54-G que tratam especificamente da prevenção e tratamento ao superendividamento, com especificidades ao fornecedor do referido serviço/produto, matéria que carecia de tratamento mais aprofundado pelo Código de Defesa do Consumidor.
O artigo 54-A traz importantes definições e conceito sobre o superendividamento. Primeiro, define o seu §1º que o superendividamento é a “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”. De plano, ficam excluídas as pessoas jurídicas do conceito, a despeito de se saber que o CDC se aplica à relação travada por algumas delas. Também ficam incluídas no conceito de dívida aquelas que já estão vencidas e as prestações futuras, na medida em que o efeito “bola de neve” é evidente e não faria sentido a lei ignorar os débitos a vencer.
No §2º a nova lei expõe que os débitos objeto do superendividamento podem ser originados de quaisquer negócios jurídicos estabelecidos pelo consumidor, ainda aqueles não referentes ao fornecimento puro de crédito [5]. E no §3º o legislador exclui a aplicação do novo regramento às hipóteses dos débitos contraídos mediante fraude ou má-fé, realizados com dolo de inadimplemento ou para aquisição de produtos e serviços de luxo de alto valor [6]. São conceitos evidentemente abertos, os quais dependem de intepretação legal, especialmente no que tange ao luxo e má-fé [7], os quais deverão ser tratados em cada caso específico.
Os próximos artigos dessa seção abarcam uma série de medidas a serem adotadas e revisadas especialmente pelos fornecedores de crédito. São situações que, embora decorressem do próprio texto do CDC em sua interpretação lógica (artigo 52) e possam até parecer redundantes, foram particularizados para maior proteção do consumidor e destacam a vulnerabilidade dele no mercado creditício.
Destacam-se no artigo 54-B: a necessidade do fornecedor de expressar as taxas de juros mensais e de mora, bem como todos os encargos no caso de atraso de pagamento; o destaque ao consumidor do valor das prestações, bem como ao seu valor total (a soma de todo o débito) e a necessidade da oferta de pagamento com validade mínima de dois dias; que estejam expressos os dados do fornecedor no negócio e seus contatos; a possibilidade de liquidação antecipada do débito pelo consumidor, não onerosa.
O artigo 54-D indica posturas a serem tomadas pelo fornecedor de crédito, das quais se destaca em especial a avaliação da condição econômica do consumidor, inclusive em órgãos de proteção de crédito. O parágrafo único já alerta ao fornecedor que eventual análise de descumprimento “poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor”.
A redação do artigo 54-F define consequências para a realização de contratos conexos, coligados ou interdependentes ao contrato principal e ao contrato acessório que garante o financiamento, na hipótese do fornecedor utilizar o serviço na preparação ou conclusão do contrato de crédito; ou ainda, no caso do serviço ser oferecido no mesmo local do contrato principal. Gagliano e Oliveira já alertaram sobre a atecnia do dispositivo [8], pois trata da aquisição de um produto como contrato principal e a concessão de crédito como contrato acessório, sendo que esses negócios não são exclusivamente interdependentes e podem ser pactuados separadamente.
Encerrando a novel seção, o artigo 54-G abarca uma série de vedações aos fornecedores.
Às administradoras de cartão de crédito, o inciso I apresenta crucial alteração nos procedimentos de emissão de faturas e contestações de compra [9]. É importante destacar que com a vigência imediata da lei (artigo 5º da Lei n° 14.181/2021 [10]), os negócios jurídicos pactuados entre as administradoras de cartões e seus consumidores deverão imediatamente observar os preceitos, na medida em que assim determina o seu artigo 3º [11]. Assim, esses fornecedores devem dar atenção especial às novas regras para se adequarem e evitarem qualquer responsabilização, seja na seara do Direito individual do Consumidor, ou mesmo alguma penalização administrativa por descumprimento dos preceitos. Também o inciso III se aplica às administradoras de cartões e similares, tratando da vedação ao impedimento ou dificultação de anulação/bloqueio imediato de compra fraudulenta realizada com o cartão ou similar do consumidor, possibilitando a sua anulação imediata ou restituição de pagamento indevidamente por si recebido.
A seção introduzida trata de condutas pré, durante e pós-contratuais, adicionando importantes esclarecimentos aos consumidores e aos fornecedores. Certamente traz consequências ao mercado creditício, o qual deverá se adequar imediatamente às novas regras.
A nova lei ainda prevê uma maneira de tratamento judicial do superendividamento, em caso de ausência de acordo voluntário entre o consumidor e os fornecedores, consubstanciada no “processo de repactuação de dívidas” tutelado pelo artigo 104-A e seguintes do Código de Defesa do Consumidor. Tratar-se-ia de processo judicial a requerimento do consumidor no qual será fixada data para audiência de conciliação presidida pelo juiz ou conciliador credenciado, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no novo artigo 54-A do código (“Compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada”). O processo assemelha-se a uma assembleia geral de credores em recuperação judicial ou falência, guardadas suas evidentes particularidades. Na audiência, o consumidor deverá apresentar proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservado o mínimo existencial.
É de se notar as observações dispostas pelos parágrafos do artigo 104-A. Primeiro, não serão tutelados pelo processo de repactuação de dívidas aquelas oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural. Depois, há graves sanções para os credores que não comparecerem à audiência injustificadamente, o que acarretará: 1) a suspensão da exigibilidade do débito; 2) a interrupção dos encargos de mora; e 3) a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor. Finalmente, o credor ausente também será preterido em relação aos demais no momento de quitação das dívidas.
O plano de pagamento homologado por sentença deverá determinar: 1) medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida; 2) a suspensão ou extinção das ações judiciais em curso; 3) a data a partir da qual haverá a exclusão do consumidor dos bancos de dados e cadastros de inadimplentes e 4) o condicionamento dos efeitos do plano à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento. Nesse sentido, não deverá determinar somente obrigações para os fornecedores, mas também condicionar a conduta do consumidor endividado — ele não poderá agir para prejudicar sua própria situação durante a execução do plano.
Caso não haja êxito na conciliação em audiência, o juiz poderá, a pedido do consumidor, instaurar “processo por superendividamento” para revisão e integração de contratos e repactuação de dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório, procedendo à citação dos fornecedores que não integraram o acordo porventura celebrado para, em 15 dias, juntarem documentos e razões para não aderir ao plano de pagamento.
A Lei do Superendividamento ainda prevê, no artigo 104-C, que compete concorrente e facultativamente aos órgãos pertencentes ao sistema nacional de defesa do consumidor a parte conciliatória do processo de repactuação de dívidas, de maneira que poderão promover a audiência global de conciliação, nos moldes do artigo 104-A. Nesse sentido, poderá o Departamento Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon), por exemplo, promover também audiências em âmbito administrativo, nos mesmos termos do comando legal em comento.
Por fim, o artigo 3º da Lei n° 14.181/2021 ressalta que a validade dos negócios e demais atos jurídicos de crédito constituídos antes da entrada em vigor da lei continuarão regulados pela legislação anterior.
Verifica-se que as novas disposições do Código de Defesa do Consumidor instituídas pela Lei do Superendividamento causarão sensíveis mudanças no mercado de consumo, sendo de interesse de todas as partes envolvidas — consumidores e fornecedores de crédito (inclusive compras a prazo) — a adequação e compreensão de seus dispositivos. Em que pese seja contraproducente afastar a necessidade de tutela do Estado para a situação dos milhões de endividados no Brasil, fato é que os prazos estabelecidos pela nova lei (como o prazo de até cinco anos para o pagamento de dívidas contraídas) poderão também tornar mais custoso o processo de obtenção de crédito e de efetuar compras parceladas, considerado o risco envolvido na transação por parte dos fornecedores.
Evidentemente, a conclusão antecipada da Lei do Superendividamento teria sido melhor à população brasileira. No entanto, considerando o cenário vivenciado, a crise econômica da pandemia da Covid-19, parece-nos que ainda mais em boa hora finalmente fora aprovada a legislação.
Trata-se da maior e mais importante alteração do CDC desde sua publicação, em 1990. Com grande impacto no setor creditício, o texto legal visa a pormenorizar importantes lacunas da legislação consumerista. Vem em boa hora, especialmente em razão do evidente implemento do mercado de concessão de crédito brasileiro, sobretudo no que tange aos endividados e superendividados.
Espera-se que os reflexos sejam positivos e que seu escopo seja atingido: a proteção da dignidade humana do consumidor endividado no mercado.
[1] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/05/09/numero-de-brasileiros-endividados-tem-nova-alta-em-abril. Acesso em: 3 jul. 2021.
[2] MARQUES, Claudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Claudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Ed. RT, 2006. p. 256.
[3] LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores [livro eletrônico]. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
[4] LIMA, op. cit., n. p. Grifo nosso.
[5] “§2º. As dívidas referidas no §1º deste artigo englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada;”
[6] “§3º. O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor”.
[7] Sobre o conceito, tem-se da lição de Carlos Eduardo Elias de Oliveira que “o direito protege situações que excedem o padrão do homo medius, mas não lhes defere o mesmo privilégio em relação às situações jurídicas medianas.” (OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, dez. 2018 (Texto para Discussão nº 254). Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/560201. Acesso em: 4 jul. 2021.
[8] GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável. Uma primeira análise. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6575, 2 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91675. Acesso em: 3 jul. 2021.
[9] “I – realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou similar, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o consumidor haja notificado a administradora do cartão com antecedência de pelo menos 10 (dez) dias contados da data de vencimento da fatura, vedada a manutenção do valor na fatura seguinte e assegurado ao consumidor o direito de deduzir do total da fatura o valor em disputa e efetuar o pagamento da parte não contestada, podendo o emissor lançar como crédito em confiança o valor idêntico ao da transação contestada que tenha sido cobrada, enquanto não encerrada a apuração da contestação”.
[10] “Artigo 5º – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”
[11] “Artigo 3º – A validade dos negócios e dos demais atos jurídicos de crédito em curso constituídos antes da entrada em vigor desta Lei obedece ao disposto em lei anterior, mas os efeitos produzidos após a entrada em vigor desta Lei subordinam-se aos seus preceitos”.
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Vice-presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/SC. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela […]
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Pós-graduado em Relações de Consumo e Compliance nos Mercados pela PUC/PR. Membro da Comissão de […]
Deixe seu comentário
Ao publicar um comentário, você concorda automaticamente com nossa política de privacidade.
Deixe um comentário