17 | 09 | 2024
Uma notícia inusitada envolvendo uma morte trágica tomou as manchetes de jornais brasileiros nas últimas semanas: em outubro de 2023, uma médica faleceu ao jantar em um restaurante de um resort no Walt Disney World em razão de uma reação alérgica severa. Seu marido, agora viúvo, então ajuizou uma ação em desfavor da Disney, por entender que a empresa seria responsável por não ter escutado os diversos alertas de sua falecida esposa a respeito do preparo de sua refeição.[1]
Apesar da inegável morbidez do ocorrido, pretende-se chamar a atenção do leitor para a linha de defesa adotada pela multimilionária empresa ao se deparar com a ação. Segundo a Disney, o processo deveria ser extinto e decidido fora dos tribunais em razão da existência de uma cláusula arbitral nos Termos de Uso da assinatura do autor na Disney+ (serviço de streaming), que datava de 2019. A mesma cláusula também constava dos Termos de Uso quando da compra do ingresso para o resort em 2023. [2]
O argumento eleito pela empresa para contestar os termos da ação chamou a atenção do público em geral e foi veiculado por diversos jornais e sites de notícias. A repercussão foi tão negativa que, recentemente, há relato de que a Disney voltou atrás e afirmou que permitirá que o caso seja decidido pela corte de justiça perante a qual ele hoje tramita.[3]
O caso não ocorreu no Brasil, mas não deixa de ser um exercício interessante perguntarmos: quão admissível seria essa alegação no âmbito do direito brasileiro? E é possível a inserção de cláusula arbitral em Termos de Uso dos serviços amplamente utilizados pelo público consumidor?
Inicialmente, cabe explanar que tanto a Lei n. 9.307/96, também conhecida como a Lei da Arbitragem, quanto o Código de Defesa do Consumidor possuem disposições que regulam situações como a ocorrida nos Estados Unidos.
A primeira destaca, no § 2º de seu artigo 4º, que, em contratos de adesão, como é o caso dos Termos de Uso de uma plataforma de streaming como a Disney+, a cláusula compromissória somente poderá gerar efeitos se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com assinatura ou visto especial para essa cláusula. Sem nem precisar verificar o regramento específico da legislação consumerista, já é possível notar que a alegação da Disney cairia por terra por força do acréscimo da disposição sobre arbitragem em contrato de adesão.
Não fosse suficiente, o artigo 51, inciso VII, do Código de Defesa do Consumidor ainda prevê ser nula de pleno direito a cláusula que trata da utilização compulsória de arbitragem. No caso que comentamos, tanto o contrato é de adesão quanto a relação é de consumo, sendo possível a incidência das duas normas para regular a questão.
O entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que para a validade da cláusula compromissória verificada em contrato de adesão caracterizado por relação de consumo é necessária a expressa concordância do consumidor no momento da instauração do litígio entre as partes. Para a jurisprudência brasileira, então, se a ação é ajuizada perante o Poder Judiciário, já está caracterizada a discordância em submeter-se ao Juízo Arbitral.[4]
Nota-se que a via para utilização da arbitragem em litígios de consumo é estreita, mas isso não denota a sua impossibilidade. Como já observado, para a utilização de cortes arbitrais na solução de litígios de consumo é necessário que a cláusula compromissória seja destacada e possua visto ou assinatura especial. A partir dessa comprovação documental, deve-se demonstrar que o consumidor possuía ciência do compromisso arbitral e que concordara com esse quando da contratação.
O Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu recentemente, em caso que envolvia relação entre a intermediadora de uma relação de locação e a locatária, pela validade do compromisso arbitral, apesar da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à relação, haja vista que constava a rubrica da consumidora logo abaixo da cláusula, que havia sido redigida em destaque.[5]
É certo, portanto, que a validade de tal convenção depende da forma de sua redação e exposição no instrumento contratual e da forma de verificação da concordância expressa do consumidor, o que pode ser realizado, por exemplo, por meio de uma rubrica específica. Também é possível o estabelecimento de termo em apartado, somente para que as partes convencionem a utilização do tribunal arbitral.
Tanto o regramento da Lei de Arbitragem quanto o do código consumerista privilegiam o consentimento informado no caso de contratos de adesão e relações de consumo. A arbitragem poderá ser instituída como forma de solução de conflitos desde que o consumidor seja devidamente informado e concorde com a sua utilização, circunstâncias sob as quais não haverá problemas nesse pacto.
Por fim, caso o leitor esteja se perguntando se disposição como essa consta dos Termos de Uso da sua Disney+, é pertinente informar-lhe que o foro de eleição ali previsto é o dos “tribunais estaduais e federais situados na comarca de Manhattan, na cidade de Nova York, no estado de Nova York”. No entanto, a empresa já se antecipou aos efeitos da legislação brasileira sobre tal disposição adicionando que o consumidor somente se submete a essa cláusula se as normas aplicáveis de seu país de residência o permitirem – e, como já vimos, salvo situações bastante específicas, você possui o direito de ajuizar a sua ação na comarca do seu domicílio, sem a necessidade de litigar em outro país.
[1] https://nypost.com/2024/02/28/us-news/nyu-doctor-who-died-at-disney-went-into-medicine-because-of-food-allergy/
[2] https://www.weightmans.com/media-centre/news/disney-purport-that-disneyplus-terms-and-conditions-prevent-wrongful-lawsuit-being-brought/
[3] https://www.planetattractions.com/news/Disney-waives-right-to-arbitration-after-telling-man-he-couldn%E2%80%99t-sue-for-his-wife%E2%80%99s-death-because-of-a-Disney+-subscription/3569
[4] AgInt no AREsp n. 2.330.021/MG, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 13/11/2023, DJe de 21/11/2023
[5] TJSP; Agravo de Instrumento 2148205-97.2024.8.26.0000; Relator (a): Rogério Murillo Pereira Cimino; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Bernardo do Campo – 9ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/08/2024; Data de Registro: 16/08/2024.
Artigo publicado pelo JusCatarina, no dia 16 de setembro de 2024.
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Pós-graduado em Relações de Consumo e Compliance nos Mercados pela PUC/PR. Membro da Comissão de […]
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