27 | 05 | 2021

CCJ enterra crime de responsabilidade hermenêutico

Por Isaac Kofi Medeiros

Os acertos devem ser comemorados. Por um placar apertado de 33 votos a 32, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara rejeitou neste mês a aprovação do PL nº 4754/2016, que caracteriza como crime de responsabilidade a usurpação de competências do Poder Legislativo ou Executivo por parte de ministros do Supremo Tribunal Federal.

O PL usa de um pretexto legítimo para promover uma cruzada revanchista contra o STF. De modo geral, atores políticos vêm mobilizando suas forças contra o Supremo por meio da apropriação ideológica de um argumento academicamente válido, de que o STF tem dificuldade em prestar deferência às escolhas de instituições representativas. Em outras palavras, o Supremo é ativista. Não é nenhuma novidade, não falta literatura séria e comprometida com a democracia sobre o assunto. O STF pode e deve ser criticado. O problema começa quando as soluções em jogo não pretendem aperfeiçoar a instituição, mas acovardá-la.

O PL nº 4754/2016 tipifica um crime de responsabilidade hermenêutico ao prever impeachment causado por interpretações que os ministros conferirem à Constituição. Ou seja, ministros podem cometer crime de responsabilidade por interpretar o texto constitucional.

Pergunta-se: como identificar o que é a usurpação de competências do Poder Legislativo e Executivo? Nosso texto constitucional, na análise mais positivista, prevê algum grau de sobreposição de competências dos Poderes que serve ao mecanismo de freios e contrapesos. Poderes constitucionais retêm uns aos outros para evitar abuso de poder, qualquer estudante de Direito sabe disso. Nem todo freio é ativismo, apesar de em ambos os casos haver possível sobreposição de competências. No caso de freios e contrapesos, a sobreposição é legítima; no caso de ativismo, é invasão de competências.

O desafio posto pelo PL nº 4754/2016, então, é separar o que é freios/contrapesos do que é ativismo judicial, desafio que seria bem-vindo não fosse a agenda autoritária que lhe move as entranhas e a pretensão de punir aqueles que transgredirem uma linha que em larga medida é difusa.

Considere o bom e velho problema do controle judicial de políticas públicas, criticado (com razão) pela falta de expertise/legitimidade do Judiciário para substituir o Executivo nesse tipo de decisão. Podemos discordar sobre a modulação do controle, se ele deve ser moderado ou responsivo, autocontido ou ativista, mas de modo geral concordaremos que em algum grau as disposições constitucionais atribuem ao Judiciário a tarefa de controlar atividades essenciais da Administração Pública.

Vou tentar ser didático. Eu, Isaac, acredito que esse controle deve ser mínimo (Tese A), mas ele deve existir. Há quem apresente bons argumentos para demonstrar que o controle deve ser amplo (Tese B). Necessariamente, a Tese B vai conflitar com uma noção ortodoxa de separação de Poderes. Pois, se o controle é amplo, maior é a sobreposição de competências. Pela redação do PL nº 4754/2016, seria possível que um ministro, de boa-fé, sofresse impeachment caso acolhesse a Tese B ao interpretar a Constituição.

Por via de consequência, o pragmatismo imposto pela rotina recomendaria o óbvio ao STF: quanto menor o controle, menor a chance de sofrer impeachment. Este é o selo de intimidação imposto pelo PL nº 4754/2016.

Neste contexto, crime hermenêutico é apenas um eufemismo para mordaça institucional, ainda mais em tempos em que o STF – a despeito de todo os seus erros – tem agido para desaparelhar grupos que renovam nosso estoque autoritário[1] de todo o dia. Vendido como correção da harmonia entre os Poderes, o PL nº 4754/2016 apenas inverte o peso da balança e torna improvável o exercício de uma jurisdição independente. A quem interessa um STF julgando sob a sombra do crime de responsabilidade?

Como que isto foi acontecer?, alguém deve se perguntar. Dizem que a política não admite vácuo. Talvez o fato de a comunidade acadêmica ter vacilado na crítica ao ativismo tenha criado esse vácuo. Talvez a defesa de um ativismo judicial seletivo, reputado legítimo apenas para promover as minhas próprias pautas, também tenha criado esse espaço desocupado e contraditório que foi, pouco a pouco, sendo capturado pelo oportunismo daqueles desinteressados no aperfeiçoamento das instituições democráticas.

Claro que a versão ideológica do discurso crítico ao Supremo não é um simples reflexo no espelho do que vem sendo denunciado pelo direito constitucional. Ela não conta com reflexões ponderadas e comprometidas com método, chaves da investigação acadêmica (não confundir com academicismo ou soberba). A versão ideológica é uma versão repaginada, tosca, superficial, que sequer merece o elogio de ser chamada de senso comum, porque o contraria. Quando convém, tacha todo e qualquer movimento do Judiciário de ativismo, num movimento tão raso quanto os espelhos d’água do Palácio do Planalto.

É preciso reagir e separar o joio do trigo. Nem todo ato do Supremo contra maiorias políticas é ativismo, justamente por poder se tratar de exercício legítimo de freios e contrapesos. Disso não resulta omissão: criticar o STF, para aperfeiçoá-lo, continua na ordem do dia. A coerência e a diferenciação ante a crítica puramente ideológica ao ativismo são o caminho para resgatar a credibilidade do argumento.

Sinais dessa apropriação indébita de argumentos honestos não faltam. Em abril/2021, Bolsonaro criticou Barroso por fazer “politicalha” e “ativismo judicial” ao conceder uma decisão que seguia a letra positiva da Constituição. Ives Gandra, em maio/2020, defendeu que as Forças Armadas poderiam ser convocadas para restaurar a harmonia entre os Poderes, na base da força bruta. Mais recentemente, em maio/2021, a crítica ao ativismo judicial foi utilizada até mesmo por membros da Polícia Civil para defender uma operação desastrosa que terminou em 25 mortos na comunidade do Jacarezinho/RJ.

Por

Isaac Kofi Medeiros

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Doutorando em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito do Estado pela UFSC. Graduado […]

Isaac Kofi Medeiros - Menezes Niebuhr

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