05 | 04 | 2019

Colaboração premiada: legalidade X consenso

Não há quem não discuta os efeitos da grande reviravolta causada no mundo da criminalidade organizada, que teve uma parte do seu modus operandi exposto, tudo graças à colaboração premiada. Por Luísa Walter da Rosa*

O ano de 2019 começou com uma série de novidades no Brasil: novo Presidente da República, índice de renovação de 87% no Senado Federal e 47,3% na Câmara dos Deputados (1), novos escândalos de corrupção (e novidades nos velhos escândalos também), novas tragédias, novas leis, novos avanços. Entre tantas inovações, um tema se manteve em alta: colaboração/delação premiada(2).

Em 2013 esse instituto ganhou status de oficial no ordenamento jurídico brasileiro (vide Lei n. 12.850/2013), e a partir de 2014 conquistou seu espaço no vocabulário de toda a população brasileira – e não só dos juristas -, em razão da Operação Lava Jato, que completou cinco anos de existência. Não há quem não discuta os efeitos da grande reviravolta causada no mundo da criminalidade organizada, que teve uma parte do seu modus operandi exposto, com repercussões nos mais altos escalões políticos e empresariais do Brasil – tudo graças à colaboração premiada.
Conceituando-a de forma resumida, a colaboração premiada é um meio de obtenção de prova, pelo qual o Estado (representado pelo Ministério Público ou pela autoridade policial) oferece prêmio(s) ao agente que colabora com a justiça, de forma eficaz e voluntária. Isso desde que ele, enquanto integrante de uma organização criminosa, auxilie na prevenção ou repressão de crimes complexos, cuja comprovação em juízo, pelos caminhos convencionais, é por vezes inexitosa.

A realidade da persecução penal é essa: existem crimes de baixa complexidade, que não exigem uma ampla dilação probatória, principalmente em casos de flagrante (legal), como o crime patrimonial de furto; e existem crimes mais obscuros, com condutas por vezes travestidas de legalidade (como o uso de empresas de fachada e “laranjas”), mas que na prática servem como preparação de caminhos para o cometimento de crimes muito maiores, como o crime de lavagem de dinheiro, que só se perfectibiliza com a prática de um crime antecedente.

Exemplificando: considere uma grande organização criminosa, bem estruturada e com clara divisão hierárquica, capaz de se envolver em vários ramos delituosos, desde a lavagem e ocultação de bens até o tráfico de drogas nacional e internacional, aliciando, para tanto, uma série de pessoas para atuarem nas mais diversas funções. Se o aparato repressor estatal lograr êxito em capturar o agente responsável por organizar os pontos de revenda de droga e que, de alguma forma, integra a organização, num primeiro momento poderá assumir tratar-se apenas de mais um caso de tráfico de drogas.

Caso não existam rastros da lavagem de dinheiro, como poderá a autoridade policial ou o Ministério Público sequer imaginar toda a rede criminosa existente por trás do agente? Foi em razão disso que se passou a pensar na instrumentalização da lógica do “use the little fish to catch the big fish” (3), na tentativa de reprimir a criminalidade organizada.

Toda a Lei da Organização Criminosa (Lei n. 12.850/2013) foi criada como uma forma de combater e facilitar essa descoberta e desmantelação da teia criminosa. Para tanto, criaram-se uma série de meios de obtenção de prova, como a ação controlada, interceptação telefônica, infiltração de agentes policiais, quebra de sigilos telemáticos e financeiros e a delação premiada (4).

O problema foi que, em relação a esta última, a legislação concebida não especificou todos os detalhes do procedimento necessário para firmar e executar um acordo de colaboração premiada, desde as tratativas, até a confecção do acordo, sua posterior execução, casos de eventual rescisão ou anulação, ou comprovação de eficácia. Tampouco dispôs sobre os limites da negociação, pois, ainda que o caput do artigo 4º da Lei n. 12.850/2013 apresente um rol de benefícios a serem concedidos ao agente colaborador, em nenhum momento a lei especificou se tratar de um rol taxativo.

Em razão disso, já existem na prática centenas de acordos de colaboração premiada homologados cujo conteúdo, extensão, datas de assinatura e amplo e inovador rol de benefícios diferem tanto entre si que ensejaram uma série de polêmicas sobre o instituto. As controvérsias foram desde questionamentos acerca da sua (in)constitucionalidade até críticas em relação à insegurança jurídica criada pela ausência de regras e limites específicos.

Quando – no mundo jurídico – se atua na esfera penal, independentemente da posição ocupada (defesa, acusação ou órgão julgador), torna-se nítido que o jogo a ser jogado na ação penal (5) difere de todas as demais áreas do Direito. Lida-se, na área criminal, com um dos mais importantes bens jurídicos a serem tutelados: a liberdade e as suas consequências diretas na vida de um indivíduo.

É por isso que se exigem regras claras, garantindo-se a paridade de armas, desde o início do jogo, no inquérito policial/investigação, até a partida em si, que consiste na ação penal e fase recursal.

No ordenamento jurídico brasileiro, a tutela penal se dá pelo Código Penal, Código de Processo Penal, por uma vasta legislação penal extravagante e, acima de tudo, a Constituição Federal. Querendo ou não, tais legislações já possuem previsões de limites legais de atuação, como o princípio da legalidade e a presunção de inocência, que agora têm sido sopesados e mitigados em prol dos fastidiosos argumentos de “acabar com a sensação de impunidade do país”, “responder aos anseios populares” e “combater a criminalidade a qualquer custo”.

É claro que o desenvolvimento e aprimoramento de técnicas de repressão a práticas criminosas são deveras louváveis e necessários. E já se tornou um fato consolidado que a colaboração premiada, enquanto uma dessas novas técnicas, veio para ficar e virar de cabeça para baixo a forma como se estuda e principalmente se aplica o processo penal. O cenário atual demonstra que não há mais espaço, na prática, para conservadorismo. Porém, toda inovação deve se dar respeitando a realidade (e limitações) do ordenamento jurídico existente, garantindo-se assim que a lei será igualmente aplicada a todos.

É por isso que o estudo da colaboração premiada é tão importante, tanto para fins acadêmicos quanto para a capacitação dos profissionais atuantes na área penal. Atualmente, em razão do altíssimo número de processos e da lentidão na prestação jurisdicional (seja ela em razão da alta demanda ou da falta de instrumentos e pessoal), tem-se estimulado, em todas as áreas, a resolução extrajudicial de conflitos. Isso acontece por meio de técnicas como conciliação, mediação, arbitragem, constelação familiar, justiça restaurativa, entre outras.

Em sua essência, tais meios não deixam de ser uma forma de celebração de “acordos” que primam pelo consenso. E essa nova realidade se refletiu também na esfera penal, na qual hoje coexistem o processo penal tradicional e o processo penal negociado.

O processo penal negociado se baseia principalmente na ideia de consenso. Ou seja, permite-se a negociação até que se chegue a um consenso entre as partes, observando-se, para tanto, os princípios civilistas da autonomia privada, boa-fé objetiva, lealdade e eficiência (6) .

A colaboração premiada é, portanto, um instituto que resume toda a ideia de justiça negocial, só que no âmbito do Direito Penal. Com ela, em razão da possibilidade de acordo com o oferecimento de prêmios ao pretenso colaborador, é instaurado um verdadeiro mercado de compra e venda de informações (moeda de troca) dentro do processo penal.

Para que esse mercado se sustente, é preciso flexibilizar as regras do jogo, conferindo ao Estado a disponibilidade da ação penal e da pena e ao investigado/acusado a disponibilidade sobre o processo e a sua liberdade (7).

Conforme o que se tem visto na prática, para viabilizar o espaço de consenso criado, o devido processo legal e a presunção de inocência são mitigados em prol da autonomia privada, boa-fé objetiva e eficiência. Negociam-se assim pena e culpa a fim de que, com as informações obtidas, se possa combater a criminalidade organizada.

O universo da justiça penal negociada ampliou-se de tal forma que hoje já se discute a incorporação, no ordenamento jurídico brasileiro, do instituto estadunidense do plea bargaining, como um dos carros-chefes do “Projeto Anticrime” do atual Ministro da Justiça, Sergio Moro. Em síntese, o plea bargaining seria uma espécie de acordo entre a acusação e o réu, por meio do qual este confessa a prática do crime a si imputado e se declara culpado, em troca de uma atenuação da acusação ou até mesmo redução da pena, podendo o acordo, inclusive, ser feito antes mesmo do início do processo (8).

Novidades polêmicas à parte, constata-se, após essa breve análise do contexto de surgimento e aplicação do instituto, que uma análise profunda da colaboração premiada não pode ser feita à luz do processo penal tradicional, sob pena de ser incompreendida e limitada quanto ao seu alcance e aplicabilidade prática.

É preciso assimilar que a colaboração premiada é um instrumento extremamente importante na persecução criminal e que, ainda que já tenha respaldo legal, também carece de regularização procedimental. Seus limites devem sempre primar pelo respeito à ampla defesa, contraditório, paridade de armas, legalidade e, é claro, autonomia privada das partes em negociar.

*Luísa Walter da Rosa é pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Advogada associada da Associação de Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (AACRIMESC). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Advogada associada do Núcleo Penal na Menezes Niebuhr Advogados Associados e autora do livro “Colaboração Premiada: a possibilidade de concessão de benefícios extralegais ao colaborador”, pela Editora Emais, 2018.

Mais informações sobre o livro aqui!
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[1] Disponível neste link e neste link. Acesso em: 11 mar. 2019.

[2] Colaboração premiada e delação premiada serão utilizadas como sinônimos. A primeira foi a terminologia escolhida pela legislação; a segunda se enquadra no jargão popular.

[3] Use os pequenos peixes para capturar os grandes – tradução livre.

[4] Artigos 3º a 17 da Lei n. 12.850/2013.

[5] Processo penal compreendido sob a ótica da Teoria dos Jogos. Para melhor entendimento, recomenda-se a leitura das obras de Alexandre Morais da Rosa, em especial o “Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos” e “Para entender a delação premiada conforme a teoria dos jogos”.

[6] MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis na colaboração premiada: entre a legalidade e a autonomia da vontade. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria Thereza de Assis (Coord.). Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 62-64.

[7] ROSA, Alexandre Morais da. Para entender a delação premiada pela teoria dos jogos: táticas e estratégias do negócio jurídico. Florianópolis: EModara, 2018, p. 121.

[8] Para mais informações, sugere-se a leitura de “Os perigos do plea bargain no Brasil”, de Murilo Marques. Disponível aqui! Acesso em: 16 mar. 2019.

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