22 | 05 | 2025
Há um mal-entendido sobre o controle judicial de atos internos do Poder Legislativo em comissões processantes para responsabilização de prefeito e vereador. Essa discussão é tratada na base do tudo ou nada, sendo tudo o controle judicial ativista e nada a postura passiva do Judiciário. Há tons de cinza nessa história que exigem uma reflexão mais elaborada. Como advogado, vejo no dia a dia pelo menos quatro situações que requerem comportamentos judiciais diferentes, de modo que a intensidade do controle do Judiciário seja modulada de acordo com o caso, mas com coerência.
Numa comissão processante, a decisão de cassar, suspender ou advertir um parlamentar ou prefeito é política. Cabe aos vereadores, não ao Judiciário. O controle judicial de mérito das decisões políticas apequena o Poder Legislativo, ofende a separação de Poderes e subestima a legitimidade democrática dos parlamentares. O juízo sobre o acerto da decisão dos vereadores, de condenar ou absolver o acusado, compete ao eleitor e não ao magistrado. Quanto a isso, não há discussão.
No entanto, esse argumento não pode ser levado às últimas consequências. Os atos de natureza procedimental não só podem como devem ser controlados na via judicial, de maneira intensa, para garantir o devido processo legal. Imagine que, no impeachment do Prefeito, a Mesa da Câmara declare um vereador impedido para votar por conta das suas relações pessoais com o acusado – algo que, acredite, já presenciei. Ou, por exemplo, o caso de uma Comissão negar todas as provas requeridas pelo acusado, sem apresentar a devida motivação.
Nesses exemplos, a deferência ao Poder Legislativo comprometeria o direito do acusado e do parlamentar ao devido processo legal. Equivaleria a fechar os olhos a troco de uma noção distorcida de separação de Poderes.
Mas há mais do que isso, algo que vai além do devido processo legal. Como dito, o mérito da decisão deve ser respeitado. Porém, a condição para que uma decisão de mérito mereça deferência é que o procedimento reflita a posição da maioria e da minoria. Como já ensinava Hans Kelsen no século passado, o procedimento parlamentar, “com sua técnica contraditória, baseada em discursos e réplicas, em argumentos e contra-argumentos”, se traduz em uma relação dialética – e não de domínio – entre maioria e minoria[1]. O controle judicial de atos procedimentais assegura o direito da oposição parlamentar, algo fundamental numa democracia. A decisão de mérito não é legítima, muito menos legal, quando a minoria é atropelada a custo das regras procedimentais.
Existe um terceiro caso que desafia o senso comum. O Poder Legislativo interpreta e aplica a lei quando conduz uma comissão processante. A judicialização do conflito é comum porque, além do risco de atropelo, as partes antagônicas podem ter interpretações diferentes sobre o que a lei e as resoluções requerem. Por exemplo, todo acusado tem direito de indicar provas testemunhais. Mas pode ocorrer de o Presidente da Comissão entender, de boa-fé, que as testemunhas são impertinentes e meramente protelatórias.
Esses casos são complexos porque, de um lado, o conflito é normativo-procedimental e atrai a competência do Judiciário para a sua solução; de outro, envolve a interpretação soberana de um Poder dentro do seu exercício de competências administrativas. Se a interpretação do Legislativo é legítima, ainda que gere discordâncias, seria adequada a sua substituição por uma interpretação judicial?
Parece-nos que a melhor solução seria um controle moderado e negativo de razoabilidade da interpretação do Poder Legislativo, na forma básica de autocontenção judicial. O magistrado deve avaliar se a norma sobre a qual se controverte admite mais de uma interpretação. No caso usado como exemplo, o Presidente tem direito de negar provas testemunhais impertinentes, assim como um juiz? Se sim, avalia-se se a interpretação do Legislativo é razoável ou não, sobretudo à luz do direito das minorias parlamentares e dos fatos eventualmente controvertidos no processo. Isto é, o juiz deve examinar se a maioria legislativa abraçou aquela interpretação para atropelar as minorias ou não, se fez isso à revelia da busca da verdade processual, com o cuidado de não impor a sua vontade sobre a dos parlamentares.
Há um último caso ainda mais controvertido. Em hipóteses extremas, o juiz pode controlar o mérito fático da decisão do Legislativo? É comum dizer que o processo de cassação é político e subjetivo, usando como exemplo o tipo aberto previsto na Lei de Impeachment e no Decreto-lei n. 201/67: “proceder de modo incompatível com a dignidade e o decoro do cargo”. De fato, essa previsão é subjetiva e sua aplicação raramente (ou nunca) pode ser revisada pelo Judiciário, mas não é regra geral. Ao contrário, é o extremo e não se julga a regra geral pelos extremos.
Considere-se, por exemplo, o inciso IX do art. 4º do Decreto-lei n. 201/67, segundo o qual o Prefeito comete infração político-administrativa ao se ausentar do Município por tempo superior ao permitido em lei (prazo geralmente previsto na Lei Orgânica). Esse tipo é objetivíssimo, quase matemático. Ou o Prefeito se ausenta em tempo superior ao prazo e está sujeito à cassação, ou respeita o prazo e não está sujeito à cassação. Não existe meio termo. Sob nenhuma hipótese o Parlamento municipal poderia cassar o Prefeito se ele não desrespeitar o prazo legal. Algo semelhante acontece com outros tipos previstos no Decreto, como retardar a publicação ou deixar de publicar as leis e atos sujeitos a essa formalidade (inc. IV). Não há muita margem de manobra aqui. Nesse caso, o Judiciário poderia fazer o controle da realidade dos fatos que instruem a decisão de mérito do Legislativo.
“Para todo o problema complexo, existe uma solução simples, elegante e completamente errada”, disse H. L. Mecken. O controle judicial de Comissões Processantes padece desse problema. Quer-se resolvê-lo a partir do tudo ou nada. De um lado, o Judiciário ativista que tudo controla; de outro, o Judiciário omisso que fecha aos olhos às violações de garantias. Há tons de cinza, gradações de controle. Identifico pelo menos quatro: inexistência de controle de mérito, controle intenso de violação do devido processo legal e do direito de oposição parlamentar, controle moderado de atos cuja interpretação é controversa e controle de mérito fático. Espero com isso contribuir com a evolução do debate.
[1] KELSEN, Hans. A democracia. Tradução de Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 69-71.
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Doutor em Direito pela USP, com período de pesquisa na Sapienza Universitá di Roma. Mestre […]
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