27 | 03 | 2020
Por Rodrigo Augusto Lazzari Lahoz
O coronavírus afeta a humanidade desde o início do ano. Mais recentemente, o Brasil passou a sofrer com seus males e seus reflexos na vida da população, face às medidas de isolamento e de quarentena.
Inevitavelmente, essa crise possui reflexos econômicos, como quase tudo o que ocorre no âmbito social. Analistas nacionais e internacionais fazem projeções nada otimistas e apontam uma recessão global com impactos para os próximos anos. O governo brasileiro, por exemplo, já reduziu a projeção de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 2% para 0,02%, com aumento de despesas e queda de receitas.
Muito se fala sobre os prejuízos que inúmeros estabelecimentos e empresas terão com a necessidade de fecharem as suas portas para evitar a circulação e aglomeração de pessoas, as possíveis demissões diante da recessão econômica e as suas consequências para o trabalhador informal, dentre outras situações alarmantes e que geram bastante temor e preocupação.
Um dos fatores econômicos que representa, a olhos nus para toda a população, uma consequência da crise do coronavírus, é a variação cambial. Desde meados de janeiro, é noticiado, dia após dia, que a cotação do dólar tem aumentado e batido seu recorde. Se em 2 de janeiro o dólar comercial estava cotado em R$ 4,02, em 3 de fevereiro estava R$ 4,24, em 2 de março estava R$ 4,49 e em 17 de março passou de R$ 5,00, chegando a R$ 5,14 em 19 de março. A mesma análise pode ser feita em relação ao euro, cujo valor em 2 de janeiro era de R$ 4,50 e a última cotação para venda registrada em 20 de março foi de R$ 5,37.
O aumento da cotação das moedas estrangeiras, nessas proporções (de quase 25% para o dólar e 20% para o euro), impacta indubitavelmente em todos os contratos – públicos e privados – que possuem serviços, insumos ou bens que são importados e orçados com base no valor do dólar ou do euro, por exemplo.
Diante dessa circunstância, se um contrato foi pactuado no final do ano passado e a proposta considerou um determinado valor para o dólar, é possível que ele fique sensivelmente oneroso para as partes, especialmente para a contratada, se ela for obrigada a prestar seu serviço ou fornecer um bem garantindo o valor da proposta inicial e ter de suportar integralmente o ônus da variação cambial.
No que tange aos contratos públicos, a relação entre os encargos assumidos pelo particular e a sua contraprestação a ser paga pelo ente público pode ser representada por uma balança de duas medidas denominada “equilíbrio econômico-financeiro”.
Significa dizer que a proposta do particular (que engloba todos os seus custos e a sua remuneração), aceita pela Administração Pública após licitação, deve corresponder ao valor a ser pago pelo Poder Público, mantendo-se a balança de duas medidas perfeitamente nivelada e equilibrada. Qualquer alteração em uma das bandejas, para mais ou para menos, representará um desequilíbrio nessa equação econômico-financeira e implicará a necessidade de revisar os termos do contrato para sua adequação.
A Constituição Federal assegura, no inciso XXI do artigo 37, o direito do particular que contrata com a Administração Pública à manutenção “das condições efetivas da proposta”. O artigo 65 da Lei Federal n. 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos), por sua vez, prevê a alteração dos contratos administrativos “para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contrato e a retribuição da administração para a justa remuneração […] objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato” (alínea “d” do inciso II).
No entanto, nem todo fator externo que altere a proposta do particular enseja o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Como é sabido, a atividade empresarial está sujeita a intempéries e oscilações naturais do mercado que são inerentes ao risco de se exercer uma atividade econômica. Nem mesmo a oscilação da cotação de moeda estrangeira pode, por si só, demandar o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo.
Para justificar o reequilíbrio econômico-financeiro, o fator que altere a proposta do particular deve configurar uma “álea econômica extraordinária e extracontratual” que impeça ou retarde a execução do contrato, segundo a alínea “d” do inciso II do artigo 65 da Lei Geral de Licitações, aduzindo as seguintes situações: (i) fatos imprevisíveis; (ii) fatos previsíveis, porém de consequências incalculáveis; (iii) caso fortuito; (iv) força maior; ou (v) fato do príncipe.
A variação cambial no equilíbrio econômico-financeiro de um contrato administrativo pode ser enquadrada como um fato imprevisível (teoria da imprevisão) ou previsível, porém de consequências incalculáveis.
Nesse particular, o Tribunal de Contas da União (TCU) já se manifestou algumas vezes sobre o tema.
Um julgado digno de nota é o Acórdão n. 2.837/2010. Na oportunidade, o TCU sedimentou o entendimento de que a corriqueira variação cambial, do dia a dia, não impacta no equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, pois é previsível e traduz-se em risco do negócio. Além disso, não se demonstrou o seu impacto nos custos dos equipamentos de informática que seriam fornecidos no caso concreto objeto de análise pelo Tribunal.
Em 2017, por sua vez, o Tribunal de Contas da União respondeu à consulta do Ministério do Turismo por meio do Acórdão n. 1.431/2017. Segundo o voto do Relator, Ministro Vital do Rêgo, a variação cambial que impacta no equilíbrio econômico-financeiro deve ser inesperada, abrupta e afetar a execução do contrato. Além disso, afirmou que a recomposição deve ser fundamentada, com documentação que ateste tal situação “de forma incontestável” em todo o custo global do contrato, e não somente em determinados itens. Em síntese, concluiu em três pontos os fundamentos para a concessão do reequilíbrio econômico-financeiro:
“a) constituir-se em um fato com consequências incalculáveis, ou seja, cujas consequências não sejam passíveis de previsão pelo gestor médio quando da vinculação contratual;
Mais recentemente, a 1ª Câmara do Tribunal de Contas de União prolatou o Acórdão n. 4.125/2019. O entendimento do Tribunal foi no sentido de que a variação cambial deve ser imprevisível ou de consequências incalculáveis para que seja concedido o reequilíbrio econômico-financeiro. No caso analisado, contudo, tal situação não ficou demonstrada, na medida em que a variação do dólar foi ordinária, “seguindo a tendência do que estava ocorrendo nas semanas anteriores à assinatura do contrato e ao pagamento dos serviços”.
Da análise dos acórdãos do Tribunal de Contas da União é possível tecer algumas conclusões:
Ainda, é importante que o pedido seja feito o quanto antes, para atestar a sua relevância e contemporaneidade. Especialmente no caso de Atas de Registro de Preço, uma interpretação conjunta dos artigos 17 e 19 do Decreto Federal n. 7.892/2013 permite concluir que o particular poderá pleitear o reequilíbrio econômico-financeiro diante de fato que eleve o custo dos serviços e bens registrados (artigo 17), bem como a liberação do compromisso sem a aplicação de sanção “caso a comunicação ocorra antes do pedido de fornecimento” e “se confirmada a veracidade dos motivos e comprovantes apresentados”.
Isto posto, é possível afirmar que variação cambial abrupta e desproporcional ocorrida no Brasil decorrente da crise do coronavírus não é normal ou previsível. Ela pode ser considerada imprevisível ou, no máximo, previsível com consequências incalculáveis, ao ser analisada a partir do contexto econômico e social fora do comum em que a sociedade brasileira se encontra hoje. Para além disso, o aumento do valor da moeda estrangeira, aliada à paralisação quase que global imposta por praticamente todos os países, pode impedir ou retardar a execução contratual.
Registre-se que todos esses pontos devem ser comprovados, inclusive a repercussão no custo global do contrato, por meio de declarações de fornecedores, propostas atualizadas, planilhas de cálculo e demonstrativo da variação cambial no período compreendido entre a apresentação da proposta e o pedido de reequilíbrio econômico-financeiro, dentre outros documentos importantes conforme o caso.
Uma vez atendidos esses requisitos, admite-se que o contrato administrativo seja alterado para a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro pela variação cambial desproporcional e imprevisível (e também com consequências incalculáveis) ocorrida no Brasil em razão da crise do coronavírus.
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Doutor em Direito pela UFSC. Mestre em Direito pela PUCPR. Especialista em Direito Administrativo pelo […]
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