06 | 04 | 2023

Dedução de juros sobre capital próprio de exercícios anteriores

Esse é mais um artigo* da série de textos sobre tributação e contabilidade. Os juros sobre capital próprio (JCP) veiculam uma forma de retribuição do capital investido. Trata-se de uma opção ofertada[1] às pessoas jurídicas tributadas pelo lucro real que permite a dedução, para efeitos da apuração do Imposto sobre a renda das pessoas jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), dos juros pagos ou creditados, de forma individualizada, a titular, sócios ou acionistas, observadas as limitações legais.[2] O benefício do pagamento dos JCPs consiste na possibilidade de dedução de 34% (IRPJ e CSLL), a título de dedução do IRPJ/CSLL do lucro real, e desencadeia o pagamento de 15% na modalidade de tributação definitiva, quando o pagamento é direcionado às pessoas físicas.[3]

Desde o advento da Lei 9.249/1995 – e da consequente instituição da figura do JCP –, as controvérsias envolvendo a sua distribuição acompanham a vida do contribuinte. As questões, em sua maioria, começam pela sua natureza (juros ou dividendos), passam pelo método de cálculo e vão até a possibilidade de deduzir a remuneração do capital próprio que tome por base valores relativos a períodos pretéritos. Este texto é endereçado à análise dos aspectos práticos dessa última discussão.

O tema está longe de uma pacificação. De um lado, entende o Fisco federal que os contribuintes não têm direito de deduzir JCP de anos anteriores, sob o argumento de que tais juros somente podem ser deduzidos da base de cálculo do IRPJ e da CSL no ano em que foram gerados, tendo em vista a regra do artigo 29 da Instrução Normativa 11/1996,[4] bem como o fato de que não teria ocorrido deliberação societária à época (renúncia tácita dos acionistas). Do outro estão os contribuintes que, em linhas rudimentares, sustentam inexistir qualquer limitação temporal à dedução dos JCPs, bastando demonstrar o atendimento aos requisitos previstos na Lei 9.249/1995.

Importa notar que o §1º do art. 9º da Lei 9.249/1995 apenas estabelece, como condição para o efetivo pagamento ou crédito dos juros, a necessidade de existência de lucros, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados e reservas de lucros, em montante igual ou superior ao valor de duas vezes os juros a serem pagos ou creditados.

O art. 75, §4º, da IN RFB 1.700/2017, porém, estabelece que a dedução dos juros sobre o capital próprio só pode ser efetuada no ano-calendário a que se refere o lucro líquido antes da dedução dos juros, caso estes sejam contabilizados como despesa, utilizado no cálculo do limite do pagamento ou crédito dos juros (RFB, 2017). O §10 da referida IN estabelece que se considera creditado de forma individualizada o valor dos juros sobre o capital próprio, quando a destinação, na escrituração contábil da pessoa jurídica, for registrada em contrapartida a conta de passivo exigível, representativa de direito de crédito do sócio ou acionista da sociedade ou do titular da empresa individual, no ano-calendário da sua apuração.

É notável que a controvérsia entre a Administração Fazendária e os contribuintes decorre da disposição restritiva prevista no âmbito infralegal em relação ao texto legal da Lei 9.249/1995. Abstraindo os argumentos decorrentes do contexto legislativo e econômico da edição da Lei 9.249/1995 e os outros pontos que comportam maior aprofundamento, a matéria não está pacificada no âmbito administrativo. Compulsando os julgados mais recentes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), é possível identificar decisões em ambos os sentidos durante um mesmo período de análise.

A principal controvérsia aventada diz respeito à necessidade de sujeitar os juros sobre o capital próprio às regras do regime de competência definido no art. 177 da Lei 6.404/1976,[5] de forma a impedir a pagamento ou crédito de juros sobre o capital próprio relativo a ano pretérito. Os julgados favoráveis aos contribuintes no Carf têm adotado o entendimento de que os juros sobre o capital próprio não assumem a feição de despesa financeira e, portanto, não se sujeitam às regras contábeis do regime de competência, além de que, se não fosse este o caso, o período competente para dedução dos juros deveria ser aquele em que houve a decisão do órgão competente da sociedade empresária ou a previsão em instrumento societário para efetuar tal remuneração, quando se tornou efetivamente exigível.

Outros dois pontos que têm sido enfrentados nesses julgados são relativos à ausência de vedação legal, com abuso regulatório da IN 1.700/2017, e a função dos juros sobre o capital próprio como forma de garantir que não haja tributação de lucro inflacionário. O tema é rico e certamente comporta maiores digressões, especialmente com relação à natureza do pagamento. Para exemplificar a falta de homogeneidade na interpretação do tema, em relação aos acórdãos analisados, publicados nos último ano, em três casos a conclusão do julgamento foi em sentido desfavorável aos contribuintes (Acórdãos 1402-005.946, de 17.11.2021; 1302-006.119, de 20.09.2022; 1401-006.296, de 16/11/2022), enquanto que em oito casos o julgamento foi favorável aos contribuintes (1402-006.001, de 07.12.2021; 1402-005.973, de 07.12.2021; 9101-005.951, de 07.02.2022; 9101-006.180, de 13.07.2022; 9101-006.267, de 11.08.2022; 1402-006.048, de 20.09.2022; 9202-010.471, de 25.10.2022; e 9101-006.358, de 08.11.2022) (Carf, 2021a; 2021b; 2021c; 2022a; 2022b; 2022c; 2022d; 2022e; 2022f; 2022g; 2022h).

Convém destacar que alguns casos favoráveis foram formados mediante a metodologia prevista pelo art. 19-E da Lei 10.522/2002, incluído pela Lei 13.988/2020. Sucede que esse dispositivo foi recentemente revogado pela MP 1160/2023, que, pelo seu art. 1º, restabeleceu a aplicação do voto de qualidade, de prerrogativa de representante da Fazenda Pública, nos termos do §9º do artigo 25 do Decreto 70.235/1972. Essa circunstância pode influenciar os próximos julgados do Carf sobre a matéria.

Nesse panorama, o Acórdão 9101-0061.180 é, possivelmente, o mais interessante. O caso, que também foi decidido pelo desempate pró-contribuinte, enfrentou a questão por três perspectivas diferentes. A despeito da identidade da temática de fundo, o julgamento tem outras cores pela circunstância de enfrentar de forma clara e precisa que (i) a legislação, de fato, não estabelece restrição temporal ao aproveitamento da dedução aos juros sobre o capital próprio; (ii) a dedutibilidade foi inserida na legislação acompanhada da extinção da correção monetária das demonstrações financeiras – assim, o aproveitamento de exercícios pretéritos compensa a ausência de correção monetária; e (iii) não há que se falar na necessidade de observância ao regime de competência, já que, do ponto de vista contábil e societário, os juros sobre capital próprio não constituem uma despesa financeira.

No âmbito judicial, embora existam poucos precedentes sobre o tema nos tribunais superiores, as principais decisões são favoráveis aos contribuintes, e afirmam que a legislação não impõe limitação temporal para a dedução de juros sobre o capital próprio de exercícios anteriores (Recursos Especiais 1955120/SP, 1946363/SP e 1.086.752/PR).

Uma interpretação teleológica do instituto parece, inclusive, corroborar essa leitura. Considerando-se que se trata de um mecanismo de equalização dos reflexos fiscais do capital investido pelos próprios acionistas em comparação à captação de recursos de terceiros – na medida em que as despesas financeiras são dedutíveis –, a restrição temporal parece desvirtuar a essência da dedutibilidade. A discussão, no entanto, anuncia-se longa.


[1] Conforme art. 9º da Lei n. 9.249/1995 (BRASIL, 1995, online).

[2] O pagamento é limitado à variação, pro rata die, da Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP e calculados, exclusivamente, sobre as seguintes contas do patrimônio líquido: (i) capital social; (ii) reservas de capital; (iii) reservas de lucros; (iv) ações em tesouraria; e (v) prejuízos acumulados (BRASIL, 1995).

[3] Conforme Rodrigo Schwarz Holanda (2021, online): “O pagamento dos JCPs permite à pessoa jurídica submetida ao lucro real deduzir dos tributos incidentes sobre a renda o pagamento feito aos sócios e acionistas, a título de remuneração do capital próprio (art. 9º, §1º, da Lei n. 9.249/1995). A opção por essa forma pagamento acarreta a incidência do imposto de renda retido na fonte à alíquota de 15%, assumindo feição de antecipação do imposto devido no caso de beneficiário pessoa jurídica tributada com base no lucro real (art. 9º, §3º, I, da Lei n. 9.249/1995). Em se tratando de beneficiário optante do lucro presumido, os JCPs recebidos devem ser adicionados à base de cálculo estimada (art. 51 da Lei n. 9.430/1996). Com relação ao pagamento de JCP aos sócios e acionistas pessoas físicas, os valores são gravados na modalidade de tributação definitiva na fonte pagadora, não sendo oferecidos à tributação pelo beneficiário (art. 9º, §3º, II, da Lei n. 9.249/1995).”

[4] Para as autoridades fazendárias, o pagamento dos JCPs é pautado pelo regime de competência, o que vedaria a possibilidade de dedução de períodos anteriores. Essa interpretação decorre da leitura do artigo 29 da Instrução Normativa n. 11/1996: “[…] Art. 29. Para efeito de apuração do lucro real, observado o regime de competência, poderão ser deduzidos os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a […].” (SRF, 1996, online).

[5] Conforme a Lei n. 6.404/1976: “Art. 177. A escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações patrimoniais segundo o regime de competência” (BRASIL, 1976, online, grifo acrescido).

*Artigo publicado no portal Jota, em 9 de março de 2023.

Por

Rodrigo Schwartz

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]

Rodrigo Schwartz Holanda - Menezes Niebuhr

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