19 | 12 | 2022
O último texto desta série sobre tributação e contabilidade contextualizou a discussão sobre a tributação dos descontos (in)condicionais e trouxe algumas ideias sobre as repercussões dos benefícios concedidos pelos industriais/distribuidores na base de cálculo da contribuição ao Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), desafiando a premissa de que o documento fiscal é determinante para delinear a questão.
Considerando que as classificações do desconto condicional ou incondicional são insatisfatórias para examinar o tema, a bonificação em mercadorias ou o ajuste de preço posterior à emissão do documento fiscal não devem alterar a base de cálculo das contribuições sociais. Eventuais descontos, mercadorias entregues em bonificação ou pagamentos recebidos podem ser caracterizados como ajustes na receita bruta, desde que estejam vinculados contratualmente.
Passando, então, à análise do tema pela perspectiva do adquirente de produtos agraciado pelos benefícios comerciais, é importante, desde já, que fique claro: a forma de contabilização e reconhecimento é importante para a delimitação da hipótese de incidência das contribuições sociais, mas não vincula a tributação. Não é o lançamento a crédito em conta de receita, em contrapartida ao débito no ativo/passivo, que faz com que o benefício comercial seja caracterizado como receita. Do mesmo modo, não é o lançamento a crédito como redução de custo das mercadorias vendidas que afasta a tributação.
Isso decorre do fato de que o contabilista tem liberdade para adotar o procedimento que melhor atenda a seus interesses, cabendo às autoridades fazendárias impugná-lo quando não tenha havido obediência às normas e aos padrões de contabilidade aceitos. O próprio Parecer Normativo CST nº 347/1970, da Receita Federal, destaca que “a forma de escriturar suas operações é de livre escolha do contribuinte, dentro dos princípios técnicos ditados pela Contabilidade e a repartição fiscal só a impugnará se a mesma omitir detalhes indispensáveis a determinação do verdadeiro lucro tributável”.
Conforme as diretrizes da Lei nº 6.404/1976, o fato refletido pela operação contábil assume relevância não porque o registro contábil representa o fato gerador do tributo, mas porque o Direito captura o fato contábil que relata os negócios jurídicos, os quais, estes sim, representam a conduta que se amolda à hipótese de incidência tributária. Em suma: o objeto da tributação é a operação lastreada pelo lançamento contábil, e não o registro.
Com efeito, isso significa que nem todos os valores que indicam uma mutação patrimonial nas demonstrações financeiras, os que transitam pelas chamadas “contas de resultado”, traduzem um acréscimo patrimonial tributável. Da mesma forma, podem existir acréscimos patrimoniais que não tenham sido capturados como tais pela ciência contábil, como também tratado neste artigo. Esse, portanto, é o conteúdo endereçado pelo critério material – confirmado pela base de cálculo – das contribuições, pois o resultado tributável recai sobre o valor efetivamente acrescido ao patrimônio com a transação. E é precisamente sob essa perspectiva que a questão merece ser compreendida.
Retendo essa ideia, vejamos um exemplo para ilustrar que o ajuste de custo (que normalmente é feito em conta de resultado) é mais preciso para delinear a questão. Contabilmente, podemos evidenciar esse “confronto de entradas e saídas” por diversos caminhos. Exploraremos, aqui, duas alternativas simplificadas, sem contemplar os tributos indiretos, de uma compra de mercadorias por R$500 mil com o objetivo de revenda, mas que, por algum motivo, teve a margem ajustada mediante emparelhamento do valor a ser pago ao fornecedor. Ei-las:
Na aquisição das mercadorias:
D – Estoque (Ativo Circulante) – 500.000.
C – Fornecedores (Passivo Circulante) – 500.000.
Desconto de 20% no pagamento da dívida para ajuste de margem:
D – Fornecedores (Passivo Circulante) – 100.000.
C – Resultado (Outras Receitas / ou receitas financeiras2) – 100.000.
Venda das mercadorias por R$450.000,00.
D – Clientes (Ativo Circulante) – 450.000.
C – Receita de venda de mercadorias (Resultado) – 450.000.
Baixa dos ativos sacrificados com a venda das mercadorias:
D – Custo das Mercadorias Vendidas (Resultado) – 500.000.
C – Estoque (Ativo Circulante) – 500.000.
Reconhecimento dos valores em caixa:
D – Caixa (Ativo Circulante) – 450.000.
C – Clientes (Ativo Circulante) – 450.000.
Pagamento da dívida:
D – Fornecedores (Passivo Circulante) – 400.000.
C – Caixa (Ativo Circulante) – 400.000.
Resultado da apuração: Lucro de 50.000.
Trata-se de lançamentos aleatórios com finalidade didática, que não refletem a melhor prática contábil – usualmente promovida diretamente em CMV, não em estoque –, especialmente nos casos em que o ajuste ocorre mediante pagamento. Dito isso, o que se busca ilustrar é que, nesses moldes, o resultado da operação foi de R$ 50 mil, apurado contabilmente mediante receita de R$550 mil e Custo de Mercadorias Vendidas (CMV) de R$500 mil. Veja-se que, de fato, essa demonstração de resultado não evidencia a realidade experimentada pela entidade. E mais, o usuário da contabilidade também não será bem servido com essa informação, pois o contrato e a dívida assumida com o fornecedor sempre estiveram vinculados e a receita obtida em contratos com clientes não foi de R$550 mil. O valor “cheio”, de R$500 mil, não reflete o desembolso efetivo experimentado pela entidade para formar o estoque.
Avancemos, então, na alternativa [1], com o emparelhamento do ajuste de margem em contas patrimoniais e retendo os ensinamentos de José Antonio Minatel, para quem “não se apura receita na compra, tampouco ganho na compra, quando muito a operação pode evidenciar compra de mercadoria ou de matéria-prima a custo zero” [2]:
Lançamentos pela alternativa 2:
Na aquisição das mercadorias:
D – Estoque (Ativo Circulante) – 500.000.
C – Fornecedores (Passivo Circulante) – 500.000.
Ajuste de margem, alternativa 2:
D – (-) Ajuste de margem (Conta redutora de Fornecedores – PC) – 100.000.
C – (-) Reversão de valor do estoque (Conta redutora de Estoque – AC) – 100.000.
Venda da mercadoria por 450.000,00.
D – Clientes (Ativo Circulante) – 450.000.
C – Receita de venda de mercadorias (DRE – Resultado) – 450.000.
Baixa dos ativos sacrificados com a venda das mercadorias, na alternativa 2:
D – Custo das Mercadorias Vendidas (DRE – Resultado) – 400.000.
D – (-) Reversão de valor do estoque (Conta redutora de Estoque – AC) – 100.000.
C – Estoque (Ativo Circulante) – 500.000.
Reconhecimento do recebimento pelas vendas, na alternativa 2:
D – Caixa (Ativo Circulante) – 450.000.
C – Clientes (Ativo Circulante) – 450.000.
Pagamento da dívida:
D – Fornecedores (Passivo Circulante) – 500.000.
C – (-) Ajuste de margem (Conta redutora de Fornecedores – PC) – 100.000.
C – Caixa (Ativo Circulante) – 400.000.
Resultado da apuração: Lucro de 50.000.
Note-se que, nas duas alternativas, o resultado é o mesmo: o lucro é de R$50 mil. Se observarmos os negócios jurídicos que compõem o resultado da entidade, perceberemos que o lucro foi alcançado mediante o auferimento de receita de R$450 mil e com o confronto do dispêndio dos ativos sacrificados (estoque), de R$400 mil. Esses são os fatos que acrescem e diminuem o patrimônio e é sobre eles que deverá recair a tributação.
Esse é só um exemplo simples, sendo certo que a mesma lógica seria alcançada se os valores fossem lançados diretamente como redutores de custo (CMV). O objetivo é demonstrar que o ajuste no valor levado a resultado é o que realmente reflete a realidade econômica da operação. Receita, para fins tributários, é decorrente da venda, não da preservação do patrimônio mediante menor desembolso na compra.
Assim, também parece ser inadequada a caracterização de receita quando se recebem mercadorias sem custo (bonificações) ou em dinheiro. Veja-se que essa situação pode gerar graves distorções na base de cálculo das contribuições. Pode, inclusive, desencadear a dupla tributação da mesma mercadoria: a primeira, na entrada, a segunda, na revenda. É certo que a sistemática de créditos no regime não cumulativo também é relevante para apreciar o tema – que será objeto de reflexões no próximo texto. Trata-se da tributação de “dupla receita”, incompatível com a realidade experimentada pelo contribuinte.
Esse é o motivo pelo qual o Pronunciamento Técnico CPC nº 16, vocacionado ao estoque, disciplina a matéria nesse mesmo sentido. Veja-se que o pronunciamento disciplina o valor, os métodos e os critérios para atribuir custos aos estoques, como ativo, e o subsequente reconhecimento desse custo como despesa em resultado. Estabelece o item nº 11 que o custo de aquisição do estoque compreende o preço de compra, tributos não recuperáveis, assim como “os custos de transporte, seguro, manuseio e outros diretamente atribuíveis à aquisição de produtos acabados, materiais e serviços. Descontos comerciais, abatimentos e outros itens semelhantes devem ser deduzidos na determinação do custo de aquisição”.
Nos últimos anos, esse tema tem desencadeado autuações e questionamentos pela Receita Federal do Brasil. A despeito de as decisões do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) serem predominantemente desfavoráveis aos contribuintes, alguns pronunciamentos recentes capturaram a essência da discussão e firmaram uma orientação adequada. No Acórdão nº 9303-013.338, da 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do CARF, julgado em setembro deste ano, por exemplo, foi decidido que “tais bonificações, modalidades de descontos incondicionais, e os descontos comerciais não possuem natureza jurídica e contábil de receita passível de tributação pelo PIS e Cofins”.
A decisão é precisa ao aludir à natureza “jurídica e contábil”. É que a disciplina contábil possui a vocação de demonstrar o custo da operação, ao passo que a norma tributária – que, por essência, busca manifestações de riqueza – é endereçada aos fato-acréscimo da geração de riqueza de uma entidade. Perceba-se que ambas convergem nesse ponto. No caso, muito embora os descontos fossem calculados com base em um percentual fixo sobre a nota fiscal ou mediante valores pré-determinados, foi considerado o valor efetivamente praticado pelas partes, não aquele constante do documento fiscal.
No âmbito judicial, as discussões permanecem em aberto, existindo precedentes para todos os lados. No Processo nº 5052835-04.2019.4.04.7100, recentemente julgado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), foi decidido que “ao comprar com desconto, o contribuinte reduz o seu custo de aquisição e isso não tem a natureza jurídica de receita para efeitos de incidência das contribuições ao PIS e Cofins”.
Nessa linha, na operação de recebimento de mercadorias adquiridas para revenda, o registro da compra dar-se-á no exato preço ajustado com o fornecedor, acrescido dos demais gastos suportados até a entrada no estabelecimento. Independentemente da forma como a vantagem constante do contrato seja materializada, o custo da mercadoria vendida deve corresponder ao valor efetivamente suportado para compor o estoque. Não é o lançamento contábil ou o documento fiscal, vale repetir, que define o valor da compra de mercadorias para revenda, é o instrumento contratual.
Assim, a melhor prática contábil – entendida aqui como aquela que serve a seus usuários da melhor maneira possível – é aquela que evidencia as operações como ajuste no custo de aquisição nos exatos termos estabelecidos em contrato.
Contabilmente, na hipótese de concessão de desconto comercial e/ou outros itens semelhantes posteriores à emissão da nota fiscal, o custo de aquisição/preço de compra será contabilizado em valor superior ao efetivamente acordado, sendo necessário promover ajustes para reduzir o valor do custo inicialmente contabilizado. Esse ajuste contábil para ajuste do custo é efetivado mediante registro a crédito em uma conta redutora daquela lançado quando da aquisição. Seria ilógico, portanto, que essa parcela excedente do custo fosse considerada como receita. Nessa ordem de ideias, a classificação dos ajustes de descontos comerciais como redutores do custo comparece como uma alternativa consistente para fins contábeis e tributários [3].
Como se vê, considerando as definições jurídica e contábil de receita e a disciplina para a composição dos estoques, os descontos comerciais, por estarem vinculados ao acordo comercial, são redutores de custos do estoque para o adquirente, sendo incabível seu enquadramento como receitas. É por isso que, para concluir, vale repetir: não há incidência de PIS/COFINS sobre as vantagens comerciais obtidas com o objetivo de ajustar o custo da operação, independentemente da forma de operacionalização do benefício (pagamento, mercadoria, desconto), desde que vinculadas ao contrato de compra e venda.
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[1] As circunstâncias do desconto podem assumir a natureza de receita financeira.
[2] “Insistimos não se poder falar em auferir receita na operação que entabula a compra de mercadoria ou de matéria-prima, pelo simples fato de restar dispensado o subsequente pagamento. […] Receita provém do ingresso pela venda e não da ausência de desembolso da compra” (MINATEL, 2005, p. 245).
[3] Trecho do Acórdão n. 9303-005.849, de 17 de outubro de 2017, que analisou a matéria:“Asbonificaçõesedescontos comerciaisobtidos têm tratamento contábil de redução de custos,sendo que devem ser reconhecidos à conta de resultado ao final do período, se o desconto corresponder a produtos já efetivamente comercializados, ou à conta redutora de estoques, se o desconto se referir a mercadorias ainda não comercializadas pela entidade. Não podem ser reconhecidas como receita pelo adquirente assim como não são custos pelo comprador. A pretensão de reconhecer as bonificações ou descontos como receita pelo comprador contraria inteiramente os princípios contábeis aceitos, pois ao mesmo tempo seria receita do vendedor (que não pôde deduzir por proibição fiscal – já que não se trata de ‘desconto incondicional’ e do comprador” (CARF, 2017, p. 12).
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 1, 17 dez. 1976. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm.Acesso em: 9 dez. 2022.
COMITÊ DE PRONUNCIAMENTOS CONTÁBEIS (CPC). Pronunciamento Técnico CPC nº 16 (R1) – Estoques. Brasília: CPC, 8 maio 2009. Disponível em: http://static.cpc.aatb.com.br/Documentos/243_CPC_16_R1_rev%2013.pdf.Acesso em: 9 dez. 2022.
CONSELHO ADMINISTRATIVO DE RECURSOS FISCAIS (CARF). Acórdão nº 9303-013.338 – CSRF / 3ª Turma. Assunto: Contribuição para o PIS/PASEP. 20 set. 2022. Acesso em: 9 dez. 2022.
CONSELHO ADMINISTRATIVO DE RECURSOS FISCAIS (CARF). Acórdão nº 9303005.849 – 3ª Turma. Assunto: Contribuição para o financiamento da seguridade social COFINS. 17 out. 2017. CARF. Acesso em: 9 dez. 2022.
COORDENAÇÃO DO SISTEMA DE TRIBUTAÇÃO (CST). Parecer Normativo CST nº 347, de 8 de outubro de 1970. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 9216, 29 out. 1970. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=121612.Acesso em: 9 dez. 2022.
MINATEL, José Antonio. O conteúdo do conceito de receita. São Paulo: MP, 2005.
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO (TRF4). Apelação/Remessa Necessária nº 5052835-04.2019.4.04.7100/RS. Tributário. Contribuições ao PIS/COFINS. Apuração de débitos. Bonificações e descontos na aquisição de mercadorias para revenda. [2022].
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]
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