13 | 03 | 2023
Os corredores do TCU devem estar mais quentes nas últimas semanas, com o dissenso frontal aberto entre os Ministros Antonio Anastasia, da Segunda Câmara, e Benjamin Zymler, da Primeira Câmara, sobre o conceito de ‘erro grosseiro’, sua associação à culpa grave e a utilização da baliza do “administrador médio” para responsabilizar os agentes públicos. São questões que atingem o cerne da atuação da Corte de Contas, propriamente a régua que deve ser usada para distinguir os agentes públicos que merecem sanções e imputação de débito daqueles que não as merecem.
Indo ao ponto, a discussão é sobre o artigo 28 do Decreto-Lei n. 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB), cujo teor prescreve que agentes públicos somente podem ser responsabilizados em casos de dolo ou de erro grosseiro – dispositivo que foi acrescido à LINDB pela Lei n. 13.655/2018, resultante de Projeto de Lei n. 349/2015, proposto pelo então Senador Antonio Anastasia.
O Acórdão n. 2.391/2018,[1] do Plenário do TCU, relatado pelo Ministro Benjamin Zymler, foi o leading case acerca do que se deve entender por erro grosseiro. Segundo o Ministro, o erro grosseiro
[…] é o que poderia ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal, ou seja, que seria evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, consideradas as circunstâncias do negócio. Dito de outra forma, o erro grosseiro é o que decorreu de uma grave inobservância de um dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave (TCU, 2018, online).
Até então, o TCU avaliava a responsabilidade dos agentes públicos sob a régua do “administrador médio”, uma espécie de adaptação para a Administração Pública do “bonus pater famílias”, homem comum ou médio que costuma adotar grau de diligência normal. O racional do TCU era que o agente público deveria ser responsabilizado se sua conduta fugisse do grau de diligência normal, que se esperava de um “administrador médio”, o que corresponde ao grau de culpa leve. Com a Lei n. 13.655/2018, diante do artigo 28 da LINDB, a régua não poderia mais ficar na altura do “administrador médio”, porque a responsabilização dependeria de uma desatenção acima da média, “além do ordinário”. Agora, conforme o Acórdão n. 2.391/2018, a responsabilização do agente público demandaria culpa grave, caracterizada por falta de diligência extremada, quase que intencional – culpa lata dolo aequiparatur (culpa grave é equiparada ao dolo).
Sem embargo, o mesmo Acórdão n. 2.391/2018 trouxe outra discussão muito sensível. Os ministros entenderam que a LINDB não poderia limitar a responsabilidade dos agentes públicos aos casos de dolo ou erro grosseiro no tocante à reparação de dano ao erário. O argumento é que o §6º do artigo 37 da Constituição Federal enuncia que a obrigação de reparação de dano ao erário dependeria apenas da culpabilidade do agente público, não importando o grau de culpa. Daí que, por força da Constituição Federal, qualquer grau seria o bastante para fazer com que os agentes públicos fossem obrigados a reparar o dano ao erário. O dolo e o erro grosseiro seriam condicionantes apenas à aplicação de outras sanções, como multas e suspensões de direitos.
O argumento do TCU merece ser refutado por, pelo menos, duas razões. A primeira é que o legislador infraconstitucional pode perfeitamente estabelecer balizas e condicionantes às normas constitucionais, inclusive distinguindo graus de culpa para a responsabilização de agentes públicos.[2] Note-se que o próprio legislador infraconstitucional limitou a responsabilidade de magistrados, membros do Ministério Público e ministros de tribunais de contas, que também são agentes públicos, a casos de dolo ou fraude (inciso I do artigo 143 e artigo 181, ambos da Lei n. 13.105/2015 – Código de Processo Civil – CPC, e artigo 73 da Lei n. 8.443/1992 – Lei Orgânica do TCU), curiosamente sem notícias de arguição de inconstitucionalidade por parte do aparato de controle. A segunda razão é que o §6º do artigo 37 da Constituição Federal trata literalmente da responsabilidade de agentes públicos diante de danos causados a terceiros e não à própria Administração Pública.[3] Logo, o §6º do artigo 37 não poderia ser utilizado como fundamento para qualificar como inconstitucional o condicionante ao dolo e ao erro grosseiro da obrigação de reparar o dano ao erário causado diretamente à Administração Pública e não a terceiros.
O fato é que essa tese do TCU desidrata em muito a dimensão do artigo 28 da LINDB. Ora, a medida de responsabilização de agentes públicos mais significativa é a reparação de dano ao erário; as demais sanções acabam sendo secundárias. Por exemplo, no caso do Acórdão n. 2.391/2018, Plenário, discutiu-se a responsabilidade de um ex-diretor da Funasa, acusado de negligência em relação aos procedimentos de liquidação de despesa. Reconheceu-se que ele não incorreu em erro grosseiro/culpa grave, o que o eximiu da multa. Contudo, mesmo assim, ele foi condenado ao ressarcimento do valor supostamente liquidado de forma indevida. No final das contas, não escapou da condenação à reparação do dano ao erário, que é a mais pesada.
O quadro que se seguiu no TCU posteriormente ao Acórdão n. 2.391/2018 não é dos mais auspiciosos: há um déficit de motivação enorme e a qualificação do erro grosseiro acabou sendo reduzida e confundida com a mera ilegalidade. Além disso, as premissas afirmadas nesse Acórdão foram sendo postas de lado. Retomou-se, aos poucos, o parâmetro pré-LINDB do “administrador médio”, associado à culpa leve. Esse termo “administrador médio” foi reaparecendo e reproduzindo-se sem que o referido Acórdão fosse negado ou revisitado. Simplesmente sem qualquer anteparo teórico ou explicação, de mansinho, o “administrador médio” voltou à cena.
A retomada ao padrão do “administrador médio” foi assumida de vez no Acórdão n. 2.012/2022,[4] da Segunda Câmara, da relatoria do Ministro Antonio Anastasia. O Acórdão traz um breve apanhado da jurisprudência do Tribunal sobre o assunto, com remissão a um primeiro Acórdão, n. 1.628/2018,[5] do Plenário, de relatoria do Ministro Benjamin Zymler, em que se havia considerado o erro grosseiro sob a régua do “administrador médio”. Na sequência, mencionou o Acórdão n. 2391/2018, já citado e aqui tomado como paradigmático, que vincula o erro grosseiro à culpa grave e não ao padrão do “administrador médio”. No entanto, o Ministro Anastasia observou que a Corte de Contas tem aplicado com predominância o parâmetro do “administrador médio”, listando diversos julgados, inclusive da relatoria do Ministro Benjamin, que estaria retomando o seu entendimento original. O Ministro Anastasia abraçou o “administrador médio” como parâmetro para identificar a culpa grave.
É de registrar que, no mesmo Acórdão n. 2.012/2022, o Ministro Anastasia admitiu conhecer a tese do TCU de que o erro grosseiro somente limitaria a responsabilidade de agentes públicos no tocante às multas (sanções), e não à reparação de dano ao erário, o que, como salientado, representa um enorme esvaziamento da LINDB. Afora externar o conhecimento, o Ministro Anastasia não se opôs nem sinalizou qualquer ressalva a tal entendimento, o que autoriza concluir que concorda com ele.
Parece que o Ministro Benjamin não se animou com as considerações do Ministro Anastasia. Ele relatou o Acórdão n. 63/2023,[6] da Primeira Câmara, que se opôs aos termos do supracitado Acórdão n. 2012/2022, da Segunda Câmara. O Ministro Benjamin marcou posição no sentido de que o erro grosseiro deve ser associado à culpa grave e que a baliza do “administrador médio” não é adequada:
[…] associar culpa grave à conduta desviante da que seria esperada pelo homem médio significa tornar aquela absolutamente idêntica à culpa comum ou ordinária, visto que este sempre foi o parâmetro para se aferir tal modalidade de culpa. Além de inadequada, essa posição parece negar eficácia às mudanças promovidas pela Lei. 13.655/2018, que buscou instituir um novo paradigma de avaliação da culpabilidade dos agentes públicos, tornando mais restritos os critérios de responsabilização.
O Ministro Benjamin está certo.
A divergência, no entanto, pode ser positiva. Talvez provoque uma avaliação mais rigorosa e a definição de um entendimento coeso por parte do TCU, que passe segurança e previsibilidade. Pelo menos o assunto deve ser tratado de frente e não de forma lateral, com observações soltas, ora para um lado, ora para outro, como vem ocorrendo nos últimos anos. O bom mesmo seria se o TCU já aproveitasse a oportunidade e encarasse as feridas da sua jurisprudência, revisse seu entendimento sobre a reparação de dano ao erário, bem como fizesse uma autocrítica e passasse a motivar suas decisões sobre responsabilização de agentes públicos de forma mais bem estruturada, sem reduzir o erro grosseiro à ilegalidade. Os Ministros Antonio Anastasia e Benjamin Zymler são dos mais destacados, devem superar essa divergência e abrir caminhos juntos para o avanço. Lembrando Aristóteles: “a esperança é o sonho do homem acordado”.
[1] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Acórdão n. 2.391/2018 – Plenário. Tomada de contas especial instaurada em razão […]. Relator: Benjamin Zymler, 17 out. 2018a. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/2391%252F2018/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0/%2520. Acesso em: 24 fev. 2023.
[2] Esse argumento, em linhas gerais, foi apresentado pelo Professor Clóvis Beznos, no XV Congresso Goiano de Direito Administrativo, evento realizado no Auditório do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, em Goiânia (Goiás), de 5 a 7 de novembro 2018.
[3] FERRAZ, Luciano. Alteração na LINDB e seus reflexos sobre a responsabilidade dos agentes públicos. ConJur, São Paulo, 29 nov. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-nov-29/interesse-publico-lindb-questao-erro-grosseiro-decisao-tcu. Acesso em: 3 ago. 2021.
[4] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Acórdão n. 2012/2022 – Segunda Câmara. Embargos de declaração interposto por Ary José Vanazzi […]. Relator: Antonio Anastasia, 3 maio 2022. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/Ac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%2520n%25C2%25BA%25202012%252F2022/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/4/%2520. Acesso em: 24 fev. 2023.
[5] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Acórdão n. 1.628/2018 – Plenário. Auditoria realizada com o objetivo de avaliar a […]. Relator: Benjamin Zymler, 18 jul. 2018b. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/Ac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%25201.628%252F2018/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/9/%2520. Acesso em: 24 fev. 2023.
[6] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Acórdão n. 63/2023 – Primeira Câmara. Tomada de contas especial instaurada pelo Ministério do Desenvolvimento […]. Relator: Benjamin Zymler, 24 jan. 2023. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/Ac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%2520n%25C2%25BA%252063%252F2023/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/1/%2520. Acesso em: 24 fev. 2023.
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