31 | 05 | 2021

ICMS nas operações entre estabelecimentos da mesma empresa – a vez da ADC 49

Por Gabriel Collaço Vieira

Algumas controvérsias sobre matérias tributárias nunca saem de moda. É o caso da discussão quanto à incidência do ICMS nas transferências entre estabelecimentos da mesma empresa. Apesar de a jurisprudência ser favorável aos contribuintes há mais de 25 anos, a questão continua a movimentar o Poder Judiciário.

Esse tema, particularmente, chama atenção pela quantidade de decisões relevantes dos tribunais superiores favoráveis aos contribuintes. Ainda em 1996, os inúmeros precedentes sobre o assunto levaram o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a editar a Súmula 166, no sentido de que “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. Note-se que a referida Súmula foi editada quando o tema ainda era regulado pelo Decreto-Lei n. 406/1968.

Com a edição da Lei Kandir (LC n. 87/1996), diversos processos continuaram sendo levados ao Judiciário, de modo que, em setembro de 2010 (REsp 1125133/SP), o STJ posicionou-se, pela sistemática dos recursos repetitivos, no sentido de que “o deslocamento de bens ou mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa, por si, não se subsume à hipótese de incidência do ICMS, porquanto, para a ocorrência do fato imponível é imprescindível a circulação jurídica da mercadoria com a transferência da propriedade”.

Não bastasse o entendimento consolidado no âmbito do STJ, em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou o seu entendimento sobre o assunto. Sob a sistemática da Repercussão Geral (Tema 1.099), decidiu que “não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”.

Apesar desse contexto jurisprudencial, as fazendas estaduais insistem em exigir o ICMS nessas operações. Veja-se, para ilustrar, que, em dezembro de 2020, a Secretaria do Estado da Fazenda de Santa Catarina posicionou-se (Consulta COPAT 124/2020), em sentido contrário ao Judiciário, sobre questionamento relativo à base de cálculo do ICMS nas transferências entre centros de distribuição da mesma empresa.

E como a polêmica continua, em abril de 2021, foi publicado o acórdão da ADC 49, em que o STF julgou improcedente o pedido formulado pelo Governador do Rio Grande do Norte e declarou a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Kandir (LC n. 87/1996).

Para que fique claro, o STF julgou inconstitucionais os dispositivos que:

a) estabeleciam ser “autônomo cada estabelecimento do mesmo titular” (art. 11, §3º, II, da LC 87/96);

b) consideravam ocorrido o fato gerador do ICMS no momento da saída de um estabelecimento para outro da mesma empresa (art. 12, I, da LC 87/96); e

c) esclareciam qual a base de cálculo a ser adotada para cobrança do ICMS na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular (art. 13, §º 4º, da LC 87/96).

De todas as decisões já proferidas pelos tribunais superiores, essa tende a ser a mais relevante, na medida em que a Súmula 166 tratava de dispositivos atualmente revogados do DL 406/1964, ao passo em que os julgamentos do REsp 1125133/SP e do ARE 1.255.885 produziram eficácia restrita às partes do processo, embora tenham sido realizados, respectivamente, pela sistemática dos recursos repetitivos e repercussão geral, buscando uniformizar a jurisprudência dos órgãos.

A ADC 49, por sua vez, com efeito generalizado (erga omnes), declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Kandir que serviam de fundamento de validade para as leis ordinárias editadas por cada Estado e pelo Distrito Federal para regulamentar as operações entre estabelecimentos da mesma empresa. É importante ressaltar que essa decisão, isoladamente considerada, não é capaz de afastar a exigência do ICMS nas operações entre estabelecimentos da mesma empresa, pois a norma jurídica que impõe tal obrigação encontra fundamento na legislação ordinária de cada Estado e do Distrito Federal, não da Lei Kandir.

Assim, enquanto não houver alteração das legislações ordinárias que exigem o ICMS em cada ente federativo, os contribuintes ainda serão compelidos ao pagamento do imposto. Essa afirmação justifica-se pelo fato de nosso ordenamento exigir manifestação do Judiciário quanto à ilegalidade/inconstitucionalidade das normas jurídicas. Apesar de já ter sido definido que os dispositivos da Lei Kandir (LC 87/1996) – fundamento de validade para as legislações estaduais, repisa-se – são inconstitucionais, é necessário que as leis ordinárias sejam revogadas ou declaradas ilegais/inconstitucionais para que os contribuintes possam deixar de recolher o ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos.

É sabido que muitos estados já preveem o diferimento do ICMS nas operações internas entre estabelecimentos da mesma empresa; contudo, nas operações interestaduais, o imposto ainda é cobrado e não é recomendado que os contribuintes deixem de cumprir a exigência estadual, por iniciativa própria, sob pena de terem suas mercadorias apreendidas em postos fiscais das estradas brasileiras.

Diante desse panorama, enquanto os estados não adequarem as suas legislações ao conteúdo da decisão, quais serão os efeitos práticos da ADC 49 para os contribuintes? Nenhum. Primeiro, porque parcela significativa dos contribuintes não se importa de recolher o ICMS nas operações entre seus estabelecimentos – à exceção de bens de uso e consumo, produtos intermediários e/ou bens destinados ao ativo imobilizado –, em virtude da neutralidade da carga tributária gerada pelo princípio da não cumulatividade; segundo, pois o não recolhimento do ICMS na transferência entre estabelecimentos localizados em entes da federação distintos pode desencadear procedimentos de fiscalização e eventualmente terão que ingressar com ações judiciais para afastar a exigência do imposto pelas legislações estaduais.

Embora antes da ADC49 o argumento da não incidência do ICMS nas operações em comento já fosse bastante forte, face à necessidade de prática de negócio jurídico mercantil para incidência do imposto, agora, com a declaração de inconstitucionalidade da lei complementar que servia de fundamento de validade para as referidas normas, o argumento dos contribuintes tornou-se ainda mais sólido.

Nesse panorama, acrescente-se que, enquanto não houver alteração nas leis ordinárias por parte dos estados e Distrito Federal, nos casos em que a incidência do ICMS se mostra prejudicial aos contribuintes, como é o caso de transferências de materiais para uso e consumo ou imobilizado e até mesmo nas operações realizadas por empresas que possuem crédito presumido de ICMS em substituição ao crédito efetivo, a obtenção de decisão judicial ainda é necessária.

Por fim, para os contribuintes preocupados com eventual estorno dos créditos advindos das operações entre estabelecimentos da mesma empresa, na medida em que o ICMS foi recolhido com base nas legislações estaduais, é oportuno destacar que a ADC49 não tem o condão de, por si só, autorizar que os estados proíbam aos estabelecimentos destinatários das mercadorias o aproveitamento do crédito do ICMS recolhido das operações, porquanto os créditos de ICMS decorrem da entrada de mercadoria em que o imposto foi anteriormente cobrado.
O crédito permanece sendo um direito do contribuinte, decorrente do princípio constitucional da não cumulatividade, enquanto vigente lei ordinária estadual ou do Distrito Federal exigindo o ICMS nas operações em comento e enquanto o imposto for recolhido pelas empresas.

A discussão relativa à incidência do ICMS nas operações entre estabelecimentos da mesma empresa, como visto, é antiga e, ao que parece, vai perdurar ainda por algum tempo, obrigando aos contribuintes que se sintam lesados recorrerem ao Poder Judiciário. Aos estados resta encontrar uma estratégia para balancear os créditos de ICMS, sem exigir o imposto nas operações que não se caracterizam como negócio jurídico mercantil.

O tema é relevante e merece atenção. O momento demanda dos entes federativos uma solução cooperativa que (i) preserve a não cumulatividade do imposto, (ii) busque segurança jurídica e, talvez mais importante, (iii) não coloque o peso da guerra fiscal nas costas dos contribuintes. O que não há como se admitir – ao menos não sem comprometer o bom funcionamento do sistema – são soluções ad hoc que não conversem com a federação, não sendo demais relembrar o ensinamento de Rubens Gomes de Sousa: “o governo pode ser federado, mas o contribuinte é unitário”.

Por

Gabriel Collaço Vieira

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Mestre em Direito pela UFSC. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Ex-conselheiro do Tribunal Administrativo […]

Gabriel Collaço Vieira - Menezes Niebuhr

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