04 | 07 | 2019

Ilegalidades nas Regras de Restituição do ICMS-ST em Santa Catarina

Artigo de autoria do sócio Carlos Gilberto Crippa Jr.

A) Decisão do STF concede novos rumos ao ICMS-ST

O Poder Constituinte Derivado, ao editar a Emenda Constitucional n. 3, de 1993, inseriu o parágrafo 7o no art. 150 da Constituição Federal, para autorizar ao legislador a implementação da substituição tributária progressiva, nos seguintes termos:

Art. 150 […]
§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993).

Se, enquanto regra geral, o nascimento da obrigação tributária somente surge após ocorrido o respectivo fato gerador do tributo, sob a sistemática da substituição tributária progressiva, fica autorizado ao legislador que estipule hipóteses para o nascimento da obrigação em momento anterior ao da sua ocorrência e eleja um dos agentes econômicos situado em dado elo da cadeia econômica (designado substituto tributário) como responsável pelo adimplemento da obrigação tributária relativa a fato gerador a ser praticado por agente situado na etapa posterior da cadeia econômica (designado substituído tributário).

Polêmicas à parte quanto à compatibilidade da substituição tributária progressiva no sistema constitucional tributário vigente, fato é essa técnica acarreta sensíveis vantagens à Administração Tributária, porque, ao concentrar os trabalhos da fiscalização em um número bem menor de contribuintes, normalmente sobre aqueles com maior capacidade contributiva, torna muito mais eficiente o trabalho da fiscalização.

Sendo uma metodologia utilizada para diversos tributos, a substituição tributária encontrou no ICMS um campo de relevante aplicação. Mas, desde a regulamentação da matéria por intermédio da Lei Complementar n. 87/1996, surgiu intensa controvérsia doutrinária acerca do direito à restituição do ICMS, já que o art. 10 do referido diploma passou a limitar o direito à restituição tributária apenas para as situações em que o fato gerador não ocorrer.

Isto equivale a dizer que, nas situações em que o valor do imposto por antecipação for recolhido a maior do que o valor do ICMS efetivamente devido, ou seja, nas situações em que a base de cálculo presumida do imposto for maior do que a base de cálculo efetiva, o contribuinte não tem direito algum à restituição do ICMS, embora tenha arcado, financeiramente, com o valor recolhido aos cofres públicos por antecipação, pois os custos da antecipação do imposto são repassados, pelo substituto ao substituído tributário, implicitamente no custo da mercadoria.

Pouco após a edição da Lei Complementar n. 87/1996, sobreveio o Convênio ICMS 13/1997, que, no mesmo sentido do art. 10 do mencionado diploma legal, previu que “Não caberá a restituição ou cobrança complementar do ICMS quando a operação ou prestação subsequente à cobrança do imposto, sob a modalidade da substituição tributária, se realizar com valor inferior ou superior àquele estabelecido” (Cláusula Segunda).

Passaram-se mais de 20 anos da vigência dessa regra até que o STF, revendo seu posicionamento firmado na ADI 1851/AL [1] , reconheceu a inconstitucionalidade das normas que vedam a restituição do ICMS, ao julgar o RE 593.849/MG, de relatoria do Min. Edson Fachin, sob a sistemática da repercussão geral, em julgamento realizado em 03.10.2017. Eis a ementa do julgado:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PROGRESSIVA OU PARA FRENTE. CLÁUSULA DE RESTITUIÇÃO DO EXCESSO. BASE DE CÁLCULO PRESUMIDA. BASE DE CÁLCULO REAL. RESTITUIÇÃO DA DIFERENÇA. ART. 150, §7º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REVOGAÇÃO PARCIAL DE PRECEDENTE. ADI 1.851.
1. Fixação de tese jurídica ao Tema 201 da sistemática da repercussão geral: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”.
2. A garantia do direito à restituição do excesso não inviabiliza a substituição tributária progressiva, à luz da manutenção das vantagens pragmáticas hauridas do sistema de cobrança de impostos e contribuições.
3. O princípio da praticidade tributária não prepondera na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS.
4. O modo de raciocinar “tipificante” na seara tributária não deve ser alheio à narrativa extraída da realidade do processo econômico, de maneira a transformar uma ficção jurídica em uma presunção absoluta.
5. De acordo com o art. 150, §7º, in fine, da Constituição da República, a cláusula de restituição do excesso e respectivo direito à restituição se aplicam a todos os casos em que o fato gerador presumido não se concretize empiricamente da forma como antecipadamente tributado.
6. Altera-se parcialmente o precedente firmado na ADI 1.851, de relatoria do Ministro Ilmar Galvão, de modo que os efeitos jurídicos desse novo entendimento orientam apenas os litígios judiciais futuros e os pendentes submetidos à sistemática da repercussão geral.
7. Declaração incidental de inconstitucionalidade dos artigos 22, §10, da Lei 6.763/1975, e 21 do Decreto 43.080/2002, ambos do Estado de Minas Gerais, e fixação de interpretação conforme à Constituição em relação aos arts. 22, §11, do referido diploma legal, e 22 do decreto indigitado.
8. Recurso extraordinário a que se dá provimento [2]. (grifos acrescidos)

Com fundamento nos princípios da isonomia, capacidade contributiva e vedação ao confisco, o relator consignou que a legislação do Estado de Minas Gerais – que, de forma semelhante à legislação catarinense, estipulava o direito à restituição do valor pago por força da substituição tributária desde que não houvesse a ocorrência da materialidade presumida do tributo – deve ser interpretada de forma que tal disposição também se aplique em relação ao aspecto quantitativo da obrigação, ou seja, nos casos em que a base de cálculo presumida foi superior à efetiva. Extrai-se do voto do relator:

Conclui-se, então, que uma interpretação restritiva do §7º do artigo 150 da Carta Constitucional, para fins de legitimar a não restituição do excesso, representaria injustiça fiscal inaceitável em um Estado Democrático de Direito, fundado em legítimas expectativas emanadas de uma relação de confiança e justeza entre Fisco e Contribuinte. Em suma, a restituição do excesso atende ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, tendo em conta a não ocorrência da materialidade presumida do tributo.

Ocorre que a o Estado de Santa Catarina, ao buscar adequar o Regulamento do ICMS ao novo regime de substituição tributária concebido a partir do aludido julgamento, de forma a permitir a restituição do tributo recolhido a maior por antecipação, deu causa a ilegalidades evidentes, as quais são pontuadas no item subsequente neste artigo.

B) Pontuando as Ilegalidades das Regras de Restituição do ICMS-ST

(i) Violação aos efeitos temporais da decisão

A Primeira ilegalidade que se revela, ao se apreciar as alterações das regras de substituição tributária de ICMS na legislação catarinense, consiste na violação à citada decisão do STF, em relação ao termo inicial que definiu para a fruição do direito à restituição do indébito tributário pelo substituído: enquanto o STF definiu que o termo inicial para fruição dos direitos à restituição consistiria na data de 27.10.2016, o Estado o definiu na data de 05.04.2017 (art. 25-C do Anexo 3 do Regulamento do ICMS).

No julgamento dos segundos Embargos de Declaração no RE 593.849, opostos tanto pelo contribuinte quanto pelo Estado de Minas Gerais, a Corte afastou os vícios suscitados pelas partes, mas acolheu o pedido para limitação dos efeitos temporais da decisão, para definir a publicação da ata de julgamento do Extraordinário como marco temporal para limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, pelas seguintes razões:

“No que diz respeito ao marco inicial para produção de efeitos jurídicos do assentado em tese de repercussão geral, a solução legal não dá margens a múltiplas interpretações.
Eis o teor do §11 do art. 1.035 do CPC/15:
“A súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no diário oficial e valerá como acórdão.”
Em seguida, o art. 1.040 da mesma legislação processual assim traz:
“Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma:
[…]
Por evidente, os referidos dispositivos se complementam e devem ser interpretados sistematicamente. Sendo assim, a formação de diretriz jurisprudencial para casos futuros oriundos de antecipação do pagamento de fato gerador realizado após o julgamento do paradigma deve ser considerada a partir da publicação da tese ou súmula da decisão em meio oficial. Dessa maneira, eventuais ações ajuizadas no interregno entre a publicação da ata de julgamento e a publicação da decisão embargada devem ser julgadas de acordo com o novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria.” [3] (grifos acrescidos).

Nota-se que o STF, ao definir a data da publicação da ata de julgamento como marco temporal para limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por imperativo lógico, também definiu que, a partir dessa mesma data, os contribuintes adquirem o direito constitucional à restituição dos tributos recolhidos a maior, no contexto da substituição tributária progressiva.

Para se identificar o referido termo inicial, visita-se o Diário de Justiça Eletrônico do STF n. 229 – divulgado em 26 e publicado em 27 de outubro de 2016 –, para se observar que a publicação da ata do julgamento do Recurso Extraordinário consta em sua página 9. É o que basta para se constatar a violação ao marco temporal para fruição do direito à restituição tributária reconhecido desde a Constituição Federal. Referido ato coator, de se ver, traduz-se em violações a diversos dispositivos normativos, além do próprio §7o do art. 150 da Constituição Federal.

(ii) Indefinição do prazo para restituição do ICMS

Outra questão da regulamentação legal do direito à restituição que caracteriza ilegalidade consiste na indefinição do prazo para restituição do tributo pago a maior, nas situações em que a base de cálculo presumida for maior do que a efetiva.

Cabe lembrar que, de acordo com a redação do §7o do art. 150 da Constituição Federal, o Poder Constituinte estabeleceu a imediata e preferencial restituição como requisito indispensável à substituição tributária progressiva – sem a qual tal exigência torna-se, em si mesma, inconstitucional, por indisfarçável afronta ao citado dispositivo constitucional.

Os prazos para restituição do ICMS estão disciplinados no art. 26-C do Anexo 3 do Regulamento do ICMS, que assim estabelece:

Art. 26-A. Para efetuar o pedido de restituição ou ressarcimento nas hipóteses previstas nos incisos do caput do art. 25 deste Anexo, deve ser observado o seguinte:
I – o crédito pleiteado deve estar apurado no demonstrativo previsto no art. 26 deste Anexo e devidamente validado pelo SAT;
II – a habilitação do crédito para fins de ressarcimento ou restituição dependerá de análise e manifestação da autoridade fiscal, no prazo de até 30 (trinta) dias, contados da data da validação prevista no inciso I do caput deste artigo; e
III – não havendo manifestação da autoridade fiscal no prazo previsto no inciso II do caput deste artigo, o crédito será habilitado automaticamente.
§ 1º A SEF poderá instituir outras condições para habilitação do crédito para fins de ressarcimento ou restituição.

Nota-se, da leitura do citado dispositivo que, enquanto o inc. II estabelece o prazo para habilitação do crédito em até 30 dias contados da validação dos créditos, por outro lado, não estabelece prazo algum para que ocorra essa validação, o que leva à conclusão de que, a rigor, não há prazo concedido pela legislação estadual para a restituição do ICMS nessas circunstâncias.

Ainda que a Secretaria da Fazenda atenda ao prazo de 30 dias para habilitação a partir da validação prevista no inc. I do citado dispositivo regulamentar, não haverá dúvidas de que o §7o do art. 150 da Constituição Federal será violado se este procedimento de validação não for realizado de forma imediata e preferencial. Afinal, se a mora para restituição é condição suficiente para tornar inconstitucionais as antecipações do ICMS, a inexistência de prazo parece ser condição muito relevante para tanto.

C) Considerações Finais

Quadra destacar, por fim, que o Estado de Santa Catarina, além de reconhecer o direito à restituição do ICMS em sua legislação, também instituiu o dever de complementação do imposto, a recair sobre uma parcela relevante de contribuintes, para as situações em que a base de cálculo presumida for menor do que a efetiva. Outras ilegalidades das regras de complementação, como a violação à reserva de lei complementar e à garantia da anterioridade, surgem a reboque dessa novidade normativa.

É verdade, pois, que as duas ilegalidades identificadas neste artigo não encerram todos os problemas legais ocasionados pela regulamentação das novas regras do ICMS-ST. Escolheu-se este dois pontos justamente por se tratarem dos vícios legais mais, aparentemente, incontroversos relativos às regras de restituição, sendo certo que todas essas ilegalidades consubstanciarão o enredo de novas disputas entre Fisco e contribuinte nos tribunais.

* O autor é especialista em Direito Tributário pelo IBET, pós-graduando no curso L.L.M. de Direito Tributário no Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER) e sócio da Menezes Niebuhr Advogados Associados


Referências

[1] “O fato gerador presumido, por isso mesmo, não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo a restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não realização final.” (ADI 1851/AL, Rel.  Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, j. em 08.05.2002, DJ 22.11.2002).

[2] RE 593849 AgR, rel.  Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 22.09.2017, DJ 03.10.2017.

[3] RE 593849 ED-segundos, Relator(a):  Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 08/11/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-263 DIVULG 20-11-2017 PUBLIC 21-11-2017.

Por

Carlos Gilberto Crippa Júnior

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Pós-graduado no curso L.L.M. de Direito Tributário no Instituto […]

Carlos Gilberto Crippa Júnior - Menezes Niebuhr

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