02 | 02 | 2021

Incidência do IPI na revenda de produto importado e relativização da coisa julgada

Ricardo Anderle e Bianca Moraes

Os efeitos decorrentes do novo posicionamento firmado pelo STF quando do julgamento dos Recursos Extraordinários ns. 979.626 e 946.648 (Tema 906) vão além dos facilmente vislumbrados no tocante à constitucionalidade da incidência do IPI tanto no desembaraço aduaneiro quanto na revenda, no mercado interno, de bens importados e não submetidos a processo de industrialização e seus reflexos na economia nacional. A problematização desencadeada pelo novo posicionamento que merece crucial atenção – e que parece estar longe dos holofotes da crítica jurídica – é o impacto direto que o novo paradigma refletirá sobre os efeitos da coisa julgada e a possibilidade de revisão de decisões já transitadas em julgado, transcendendo os limites do direito material ali posto à análise.

Nesse cenário, iniciando-se a exposição da matéria, é tema controverso nos tribunais superiores a possibilidade de processamento de ação rescisória para modificação da coisa julgada material em razão da superveniência de precedente repetitivo no STJ ou em repercussão geral no STF, inexistente na época da prolação do julgado rescindendo.

Isso porque, embora a coisa julgada material seja garantia constitucionalmente prevista no inc. XXXVI do art. 5o da CF, em função do vetor axiológico de segurança jurídica, ensejando, inclusive, a edição da Súmula 343 pelo STF[1], a partir da análise da jurisprudência é possível constatar uma falta de clareza e estabilidade sobre o assunto. Isto é, a revisão de decisões já transitadas em julgado com a consequente aplicação de novo precedente firmado pelo STF, decorrente de modificação do entendimento jurisprudencial, não necessariamente encontrará óbice na segurança jurídica do direito adquirido e no ato jurídico perfeito, visto que em diversos julgados a coisa julgada foi relativizada pelos tribunais superiores.

O STF posiciona-se no sentido de que, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado em interpretação controvertida, ou seja, anterior à orientação fixada pela Corte em repercussão geral, a incidência da Súmula 343/STF pode ser afastada quando se tratar de matéria constitucional – RE 328.812[2], AR 1478 e AR 1527. Nesses precedentes, o impedimento à propositura de ação rescisória e a garantia da coisa julgada foram afastados por revelarem-se afrontosos à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. Nos casos, não houve a modulação dos efeitos das decisões.

De modo contrário, o STJ, por sua vez, vem se posicionando pela impossibilidade de rescindir decisão quando o posicionamento consignado no acórdão rescindendo adotar uma das interpretações que se alternavam à época, fazendo incidir o entendimento consolidado na Súmula n. 343/STF (AgInt no AREsp 936359). Em harmonia com tal posicionamento, recentemente o Ministro Herman Benjamin, relator do EREsp 1.505.025 – que terá definição vinculante sobre a aplicação da referida Súmula -, entendeu que não cabe ação rescisória com fundamento na superveniência de alteração jurisprudencial, mesmo que o julgamento tenha ocorrido sob o rito dos recursos repetitivos ou no controle difuso de constitucionalidade. Segundo o Ministro, a jurisprudência se consolidou no sentido de que a Súmula 343/STF só pode ser afastada quando a evolução da jurisprudência decorrer de controle concentrado de constitucionalidade.

Entretanto, ainda no âmbito do STJ, um posicionamento extremamente relevante se refere às relações jurídicas de trato continuado, as quais, considerando a eficácia prospectiva inerente a essas decisões, a força normativa do princípio constitucional da isonomia impõe ao judiciário – e ao STF, particularmente – o dever de dar tratamento jurisdicional igual para contribuintes em situações iguais. Com fundamento nesse ideal, restou consignado no REsp 1.026.234 que há ofensa à literal disposição de lei, admitindo o cabimento de ação rescisória, com o afastamento da Súmula 343/STF, a qualquer interpretação contrária à que lhe atribuiu o STJ, seu intérprete infraconstitucional.

Sobre as relações tributárias continuadas e a relativização da coisa julgada, vale destacar que recentemente foi publicada Solução de Consulta n. 105 – COSIT pela Receita Federal, afastando, sem prévia análise judicial, decisão transitada em julgado para impedir a incidência do IPI na revenda de importados.

Entende a RFB que, em face de novo posicionamento firmado pelo STF – “a Fazenda Nacional retoma o direito de exigir o correspondente tributo, em relação aos fatos geradores praticados pelo contribuinte dali para frente, sem que haja necessidade de prévio pronunciamento judicial”. Mencionado posicionamento converge com as diretrizes firmadas no parecer apresentado pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional em 2011 – Parecer PGFN/CRJ n. 491 – o qual consignou, na oportunidade, que “o advento de precedente objetivo e definitivo do STF configura circunstância jurídica nova apta a fazer cessar a eficácia vinculante das anteriores decisões tributárias transitadas em julgado que lhe forem contrárias”.

Face à falta de clareza dos órgãos do poder judiciário sobre o assunto, no sentido de permitir ou não que as modificações jurisprudenciais tenham o poder de cessar os efeitos prospectivos das sentenças transitadas em julgado que regulem relações jurídicas de trato continuado – a exemplo do IPI e da maioria das relações tributárias sucessivas – os Recursos Extraordinários ns. 949.297 (Tema 881) e 955.227 (Tema 885) aguardam julgamento pela Corte Suprema, que definirá – assim se espera – os limites da segurança jurídica, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada.

O primeiro, Tema 881, versará sobre a extensão da coisa julgada em matéria tributária, diante de julgamento que declare a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional por decisão transitada em julgado; o segundo, Tema 885 – anteriormente pautado para julgamento no dia 28.10.2020 e excluído do calendário pelo presidente da Corte – analisará os efeitos das decisões do STF em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações de trato continuado.

Nesse ínterim, enquanto não há definição sobre a matéria, o julgado paradigmático que mais se aproxima ao assunto e que vem orientando os recentes julgamentos dos Tribunais é a decisão proferida no RE 730.462, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, onde, por unanimidade, assentou que as decisões tomadas em sede de controle concentrado de constitucionalidade não atingem decisões transitadas em julgado. Fixou-se a tese consoante a qual a decisão do STF que declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de norma não produz a automática reforma ou rescisão de decisões anteriores transitadas em julgado. Para tanto, o Supremo entendeu como indispensável o ajuizamento de ação rescisória. Esse é o entendimento que prevalece no STF até o momento.

Entretanto, em 2019, a Segunda Turma do STJ, em decisão inusitada – senão preocupante –, desconsiderou o precedente acima e dispensou a propositura de ação rescisória por parte da Fazenda Pública para desconstituir decisão transitada em julgado obtida pelo contribuinte, reconhecendo a aplicação imediata de novo precedente julgado em repercussão geral ao caso. A decisão, apesar de representar um posicionamento isolado, precisa ser analisada com cautela, vez que considerou, por tratar-se de relação jurídico-tributária continuada, que somente deveria prevalecer os efeitos da coisa julgada enquanto persistissem as razões de fato e de direito que a fundamentaram, sem deixar claro, todavia, a partir de qual momento o contribuinte poderia vir a ser demandado ao recolhimento do tributo (REsp 1.652.295/MG).

Paralelamente, enquanto ainda se aguarda a definição dos limites da coisa julgada em matéria tributária, colocando fim à disputa de princípios entre a Fazenda Nacional, que defende a igualdade de tratamento, e os contribuintes, que defendem a prevalência da segurança jurídica, a PGFN ajuizou ação rescisória em diversos casos que já haviam transitado em julgado de forma favorável aos contribuintes, referente à incidência do IPI na revenda, e que se encontram dentro do prazo decadencial de dois anos previsto pelo art. 975 do CPC. Para os demais casos, a Fazenda Nacional afirma que não é necessário apresentar nova ação para a desconstituição da coisa julgada face ao Parecer PGFN/CRJ n. 491, entretanto, caso assim se entenda, é possível utilizar-se de instrumento autônomo – ação própria – para desconstituir a coisa julgada e requerer que seja observado o novo paradigma firmado sobre o assunto pelo STF.

Nas ações próprias de revisão da sentença – ação revisional – referentes a relações continuadas, a Fazenda Pública, por meio de procedimento legal típico, tem pleiteado, a qualquer tempo, a revisão da sentença, visando desconstituir o que foi determinado pela decisão transitada em julgado, na forma no inc. I do art. 505 do CPC. Nesse caso, a ação revisional opera-se nos limites da coisa julgada cujo processo sofre mudanças dos suportes fáticos ou normativos e terá efeitos ex nunc, produzidos somente a partir da decisão de revisão, sem qualquer possibilidade de retroatividade (STJ, MS 11.045/DF). Outras espécies de ações – como ação de nulidade – já restaram rechaçadas pela jurisprudência, sob o argumento de se revelarem conflitantes com a garantia constitucional (STF, ARE 113.808 e RE 595.513).

Como se vê, a discussão é altamente relevante e impacta diretamente não só a matéria objeto dos Recursos Extraordinários ns. 979.626 e 946.648 – IPI na revenda de produtos importados no mercado interno –, mas a todas as outras situações e relações tributárias semelhantes, e a própria garantia constitucional da coisa julgada e segurança jurídica. Daí a extrema importância e necessidade de acompanhamento dos futuros desdobramentos, com a preocupação acerca de possíveis novas relativizações a outros limites constitucionais previstos.

[1] Súmula 343/STF: Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.

[2] Trecho do voto relator, Ministro Gilmar Mendes: “no que tange à inaplicabilidade da Súmula 343/STF, tenho reiteradamente observado nesta Corte que este verbete precisa ser revisto. Refiro-me, especificamente, aos processos que identificam matéria contraditória à época da discussão originária, questão constitucional, bem como jurisprudência supervenientemente fixada, em favor da tese do interessado. Não vejo como não afastarmos a Súmula 343, nestas hipóteses, como medida de instrumentalização da força normativa da Constituição”.

Por

Ricardo Anderle

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Doutor em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP. Ex-Conselheiro […]

Ricardo Anderle - Menezes Niebuhr

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Bianca Moraes

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Graduada em Direito […]

Bianca Moraes - Menezes niebuhr

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