26 | 07 | 2022

Mandado de segurança e restituição de indébito tributário via precatório

O mandado de segurança é uma garantia constitucional vocacionada a proteger o tutelado contra a ameaça ou violação de seus direitos pelo Estado. Considerando-se que a sua natureza é predominantemente mandamental, há uma grande controvérsia sobre os contornos das decisões em mandado de segurança em matéria tributária. Decisões recentes proferidas pelas turmas da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça vinham chamando a atenção ao consignar a impossibilidade de restituição via precatório em cumprimento de sentença proferida em sede de mandado de segurança que declare a ilicitude de exação tributária já paga [1].

O entendimento, já antecipado em 2017 [2] e recém-consolidado pela corte em julgamento de embargos de divergência [3], de que o indébito tributário é passível de compensação administrativa ou de restituição, exclusivamente pela via administrativa, parece ir de encontro à Súmula nº 461 do STJ, de 2010, segundo a qual “o contribuinte pode optar por receber, por meio de precatório ou por compensação, o indébito tributário certificado por sentença declaratória transitada em julgado” [4].

Trata-se de um entendimento pautado pelas Súmulas nº 269 [5] e 271 [6] do Supremo Tribunal Federal, ambas editadas no longínquo ano de 1963, antes mesmo da promulgação do Código Tributário Nacional. Em síntese, a Súmula n. 269 estabelece que “o mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança”, pois obstaria o cumprimento de sentença via precatório da concessão de segurança contra ato pretérito de cobrança tributária indevida. Em linhas gerais, a conclusão é a de que, nessas ocasiões, caberia ao contribuinte optar tão somente pela compensação ou restituição, ambas na via administrativa.

Se bem observarmos o enunciado sumular, veremos que o entendimento sobre o qual se funda o STJ, emitido há cerca de seis décadas, não se adéqua ao ordenamento jurídico brasileiro em sua atual conformação. Antes de abordarmos as mudanças legislativas que temperam a leitura da Súmula nº 269 do STF, convém tecer breves comentários a respeito da eficácia das sentenças, em especial no que diz respeito à sentença mandamental.

Em seu célebre “Tratado das Ações”, Pontes de Miranda já afirmava que “não há nenhuma ação, nenhuma sentença, que seja pura” [7]. Especificamente com relação ao mandado de segurança, ensinou o jurista: “a ação somente é mandamental porque preponderantemente o é. Não há ação mandamental pura. […] A declaratividade aparece, de ordinário, como eficácia imediata” [8]. É dizer: a sentença que concede a ordem de abstenção de prática de ato abusivo à autoridade pressupõe, lógica e juridicamente, a declaração da ilicitude do ato cuja prática se mandou cessar. Essa seria, em léxico pontiano, sua eficácia imediata. Também no que toca ao capítulo da sentença relativo ao pedido de repetição de indébito tributário, no qual a força de sentença seria de cunho condenatório e sua eficácia imediata a declarativa, a sua eficácia mediata seria, em relação às cobranças abusivas pretéritas, de cunho executivo (da repetição de indébito tributário), nos moldes do artigo 165 do CTN.

Em que pese Pontes de Miranda tenha adotado como critério de discrímen entre a eficácia condenatória imediata e a mediata, a (des)necessidade de ajuizamento de ação autônoma para sua execução [9], as alterações introduzidas com a nova legislação de regência do mandado de segurança, em 2009, e com o novo diploma processual civil, em 2015, repercutem na possibilidade de cumprimento de sentença, nos próprios autos, para executar a eficácia condenatória mediata da sentença concessiva de segurança.

A principal mudança em comento diz respeito à extensão do âmbito de executividade das decisões judiciais. O inciso I do artigo 584 do CPC/1973 considerava título executivo judicial “a sentença condenatória proferida no processo civil”. Com a nova redação do inciso I do artigo 515 do CPC/2015, temos que “são títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: as decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer, ou de entregar coisa”. Com isso, a executividade passou a ser atributo de todas as decisões judiciais (definidas naqueles termos), e não apenas daquelas imbuídas daquilo que se convencionou chamar de carga de eficácia condenatória. Com efeito, a exequibilidade de sentenças não condenatórias já havia sido reconhecida pela Corte Especial do STJ em 2016 [10]. Na ocasião, fixou-se a tese de que “a sentença, qualquer que seja sua natureza, de procedência ou improcedência do pedido, constitui título executivo judicial, desde que estabeleça obrigação de pagar quantia, de fazer, não fazer ou entregar coisa, admitida sua prévia liquidação e execução nos próprios autos”. Esse entendimento, fixado sob a sistemática do artigo 543-C do CPC, constitui um importante vetor axiológico para apreciar a Súmula nº 269 do STF como óbice ao cumprimento nos próprios autos (via precatório) de sentença concessiva de segurança que declarasse, por imperativo lógico-jurídico, o direito ao indébito tributário [11].

Assim, sendo verdadeira (1) a premissa de que a sentença constitui título executivo judicial (REsp nº 1.324.152) e (2) de que a sentença declaratória contém juízo de certeza representativo de “título executivo para a ação visando à satisfação, em dinheiro, do valor devido” (REsp nº 1.114.404), nada obstaria a operacionalização.

Demais disso, a própria Lei nº 12.016/2009 traz dispositivos que corroboram essa leitura. Seu artigo 19 [12], por exemplo, prescreve que a sentença denegatória de segurança que não decide o mérito não impede o ajuizamento de ação própria para pleitear o reconhecimento de direitos e de seus efeitos patrimoniais [13], ensejando a interpretação, por vias transversas, de que a sentença concessiva da segurança — que necessariamente enfrenta o mérito da questão — irradiam efeitos patrimoniais, a serem executados em cumprimento de sentença nos próprios autos. Essa interpretação converge com o §4º de seu artigo 14 [14], que afirma que o pagamento de vantagens pecuniárias a servidores públicos decorrentes da sentença mandamental será efetuado tão somente em relação às prestações devidas após o ajuizamento da ação, sugerindo, igualmente, a possibilidade de irradiação de efeitos patrimoniais pretéritos a partir de sentença concessiva de segurança relativa a qualquer outra matéria, inclusive no âmbito de pedido de repetição de indébito tributário em mandado de segurança.

Existem ainda outros argumentos a favor da viabilidade de cumprimento de sentença por precatório em mandado de segurança que declara a ilicitude de tributo e o pagamento pretérito indevido, que dizem respeito, essencialmente, ao princípio da isonomia, que se consubstancia na ordem cronológica que rege a sistemática de pagamentos por precatórios.

No ano de 2015 o STF já havia se posicionado no sentido de que “os pagamentos devidos pela Fazenda Pública estão adstritos ao sistema de precatórios, nos termos do que dispõe o artigo 100 da Constituição, o que abrange, inclusive, as verbas de caráter alimentar, não sendo suficiente a afastar essa sistemática o simples fato de o débito ser proveniente de sentença concessiva de mandado de segurança” [15].

Em que pese essa decisão tenha restringido os efeitos ao período “entre a data da impetração do mandado de segurança e a efetiva implementação da ordem concessiva” por ocasião do julgamento dos embargos declaratórios desse caso no ano de 2018 [16], a importância do regime de precatórios para a garantia do princípio constitucional da isonomia foi reforçada pela Suprema Corte quando do julgamento da ADPF nº 250/DF em 2019 [17].

É certo que a mitigação dos efeitos da antiga Súmula nº 269, à luz das alterações legislativas mencionadas e da relevância da sistemática de precatórios para a garantia da impessoalidade dos pagamentos da administração pública e de sua isonomia (conferida por sua ordem cronológica), ainda será objeto de muita controvérsia na jurisprudência nacional, podendo vir a ensejar a superação deste entendimento pelo STF.

Essa tese começa a ganhar força em alguns Tribunais Regionais Federais. Nesse sentido, o TRF-3 deferiu há poucos meses a expedição de precatórios em writ impetrado para excluir o ISS da base de cálculo da Contribuição ao PIS e da Cofins. Em seu voto, afirmou o desembargador Fed. Nelson dos Santos que, “justamente pela natureza do mandado de segurança como instrumento processual destinado ao exercício in natura do direito reconhecido, a ele há de conferir-se a maior efetividade possível, avultando, destarte, a desarrazoabilidade de exigir-se a propositura de nova demanda, de rito ordinário, a respeito de um direito já discutido e reconhecido na sede mandamental”. Há, ainda, que se destacar outra observação constante do julgado, no sentido de que “a propositura de nova demanda, de natureza condenatória, acarretaria ao Fisco, ainda, a condenação às verbas de sucumbência, inexistentes no mandado de segurança” [18].

Nesse contexto, também vale citar recentíssima decisão monocrática da lavra do desembargador federal Leandro Paulsen, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), na qual o professor e magistrado assume o mesmo entendimento, afirmando que, “diante [de] uma sentença em mandado de segurança que, dotada de eficácia mandamental e declaratória, certifica o direito de crédito do contribuinte que recolheu indevidamente o tributo e permite a restituição tributária, é possível ao contribuinte optar, no cumprimento do julgado do mandado de segurança, pela repetição via precatório” [19].

Ponderações desta ordem evidenciam a necessidade de superação das Súmulas nº 269 e 271 como fundamentos adotados pelo STJ para obstar a expedição de precatórios em mandado de segurança. Em que pese a vetustez desses enunciados sumulares, a questão foi reaberta e ainda está em estado incipiente de discussão jurisprudencial nas atuais conformações do ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se, sem dúvida, de tema que merece atenção da comunidade jurídica para possíveis mudanças de entendimento nas cortes superiores, com especial relevância para a recuperação de créditos tributários.


[1] STJ, REsp 1.873.758/SC, rel. ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 16/6/2020, DJe 17/9/2020; STJ, REsp 1.918.433/DF, rel. ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 2/3/2021, DJe 15/3/2021;

[2] STJ, REsp 1.642.350/SP, rel. ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 16/3/2017, DJe 24/4/2017.

[3] STJ, EREsp 1.770.495/RS, rel. ministro Gurgel De Faria, 1ª Seção, julgado em 10/11/2021, DJe 17/12/2021.

[4] Grifo acrescido.

[5] STF, Súmula nº 269 — O mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança.

[6] STF, Súmula nº 271 — Concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria.

[7] MIRANDA, P. de. Tratado das Ações. Tomo I. Ação, classificação e eficácia. Campinas: Bookseller, 1998, p. 137.

[8] Miranda, P. de. Op. Cit., p. 138-139.

[9] Cf. Miranda, P. de. Op. Cit., p. 153-154: “Uma vez que a mediatidade é no futuro, e não no passado, a execução tem de ser pedida, firmando-se nova relação jurídica processual […] a executividade simboliza a actio iudicati. Onde ele aprece há pretensão à execução de sentença. […] Não há execução nos mesmos autos, porque não se trata de executividade imediata. Tem-se de propor a ação executiva”.

[10] STJ – REsp 1.324.152/SP, rel. ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 4/5/2016, DJe 15/6/2016.

[11] Cf., por exemplo: STJ, AgRg no REsp nº 1.176.713/GO, rel. ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, julgado em 1/10/2015, DJe 7/10/2015.

[12] Lei nº 12.016/2009, art. 19. A sentença ou o acórdão que denegar mandado de segurança, sem decidir o mérito, não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais.

[13] Pontes de Miranda explica o sentido desse dispositivo com a argúcia que lhe é peculiar, relacionando a carga de eficácia da sentença ao nível de cognição que a sustenta: “Se a sentença não é em virtude da cognição completa, a ação tem eficácia mais intensa do que a eficácia da sentença, ou devido a lhe faltar força declarativa, ou mesmo eficácia imediata ou mediata de declaração: a declaratividade, que tem, é suscetível de novo exame. Então, a eficácia declarativa é 2 ou 1. Tal o que se passa com a sentença denegatória de mandado de segurança, se apenas foi denegado por não ser ‘certo e líquido’ o direito […]”.

[14] Lei nº 12.016/2009, artigo 14: “Da sentença, denegando ou concedendo o mandado, cabe apelação. […] §4º. O pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias assegurados em sentença concessiva de mandado de segurança a servidor público da administração direta ou autárquica federal, estadual e municipal somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial”.

[15] STF, RE 889.173 RG (Tema 831), rel. min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 7/8/2015, DJe 17/8/2015, voto do relator.

[16] STF, RE 889.173 RG-ED, rel.: min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, d.j em 5/10/2018, DJe-226 23/10/2018.

[17] STF, ADPF nº 250/DF, rel. min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 13/9/2019, DJe 26/9/2019.

[18] TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApelRemNec — Apelação / Remessa Necessária — 5015428-47.2020.4.03.6100, rel. desembargador federal Nery da Costa Junior, julgado em 20/6/2021, Intimação via sistema Data: 16/7/2021.

[19] TRF-4 5001204-56.2021.4.04.7001, 1ª Turma, relator Leandro Paulsen, juntado aos autos em 8/4/2022.

Por

Rodrigo Schwartz

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]

Rodrigo Schwartz Holanda - Menezes Niebuhr

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