27 | 05 | 2021
Por Rodrigo Schwartz Holanda
As controvérsias envolvendo as aproximações e os distanciamentos da contabilidade com a tributação acompanham a vida do contribuinte há algum tempo. Trata-se de uma disciplina que, cada vez mais, tem despertado interesses e movimentado debates, especialmente após as alterações promovidas na Lei das Sociedades por Ações (LSA) pela Lei n. 11.638/2007. A despeito de ainda existirem dúvidas quanto à correta interpretação do novo regime tributário, atualmente disciplinado pela Lei n. 12.973/2014, é inquestionável que a introdução das normas internacionais de contabilidade (IFRS) no Brasil alterou significativamente a dinâmica de negócios e estreitou ainda mais as relações entre as duas disciplinas.
Essa temática já foi objeto de duas séries (essa e essa sobre o reconhecimento de receitas), de inúmeros artigos e de uma coluna no JOTA, além de figurar no palco das principais instituições dedicadas ao Direito Tributário no país. A interdisciplinaridade privilegia ideias mais completas e soluções mais criativas no que tange à tributação, representando uma quebra de paradigma que contribui para o aperfeiçoamento da relação entre o Fisco e o contribuinte.
Este texto faz parte de mais uma série quinzenal cujo objetivo é trazer ao debate a tributação nas reorganizações societárias e a interação da Contabilidade com o Direito Tributário. Sem a pretensão de esgotar o assunto, a ideia é examinar as premissas utilizadas pela Administração Fazendária e algumas ideias levantadas na academia para a condução dessas questões.
A análise é oportuna, porque, se bem observarmos a fundamentação utilizada pela Receita Federal do Brasil para solucionar algumas questões levantadas pelos contribuintes, perceberemos que a compreensão sobre o inter-relacionamento da tributação com as orientações contábeis não é uníssona. A pretensão é contribuir com o debate nesse aspecto.
Para exemplificar a falta de homogeneidade na interpretação das controvérsias jurídico-contábeis, veja-se (i) a COSIT n. 415/2017, que trata de redução de capital e a tributação dos valores registrados em subconta a partir da avaliação a valor justo, (ii) a COSIT n. 318/2018, que trata da Equivalência Patrimonial de cotas de fundos, (iii) a COSIT n. 198/2019, que trata de ganhos contabilizados diretamente no patrimônio líquido (alienação sem perda de controle), (iv) a COSIT n. 39/2021, cujo objeto é o tratamento de ganhos e perdas com variação cambial de investimento em controlada no exterior, (v) a COSIT n. 223/2019, que relaciona o termo inicial da amortização do goodwill e, falando nele, (vi) a COSIT n. 39/2020, que cuida da possibilidade de reconhecimento e amortização do goodwill na aquisição de participação adicional[1].
Muito embora todos esses pronunciamentos, isoladamente considerados, sejam consistentes, os fundamentos invocados para acomodar as normas contábeis e tributárias diferem significativamente. As soluções apresentadas apontam para uma falta de harmonia interpretativa. Nesse contexto, o fio condutor da análise nesta série será a forma como a contabilidade comparece na composição da base de cálculo dos tributos e dialoga com a hipótese de incidência.
Muito embora a contabilidade seja a linguagem que relata o fato que deflagra a obrigação de pagar o tributo, a porta de entrada do ordenamento jurídico é a hipótese normativa, que elege fatos sociais com a finalidade de torná-los jurídicos.
Assim, a interação do Direito Tributário com a Ciência Contábil – como é também com qualquer outra ciência do conhecimento humano – pressupõe influxos que tenham ingressado no sistema jurídico pelo canal por ele eleito e convertido em linguagem competente, apta para ser processada pelo sistema do direito positivo.
É oportuno rememorar que, desde a introdução das normas internacionais de contabilidade (IFRS) no Brasil, instaurou-se o debate sobre a necessidade de ajustar as informações contábeis para neutralizar seus reflexos na base de cálculo dos tributos. Nessa busca pela tão almejada neutralidade, há que reconhecer que alguns tributos possuem maior intimidade com a contabilidade do que outros. Os mais íntimos, por certo, são os que gravam o acréscimo patrimonial das pessoas jurídicas, o que se conclui pela simples observação do figurino constitucional e da circunstância de que o IRPJ recai sobre o “lucro líquido do exercício ajustado” e a CSLL sobre o “valor do resultado do exercício” (art. 6º do DL n. 1.598/1977 e art. 2º da Lei n. 7.689/1988, respectivamente).
Já nos tributos que gravam o “fato-acréscimo” da renda, a receita, como são, por exemplo, a contribuição ao PIS e a COFINS, deve ser oferecida à tributação “independentemente de sua denominação ou classificação contábil” (art. 1º das leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003), o que confirma a convergência conceitual relativa. Sobre esse ponto, também tratado neste artigo, a contabilidade (item 112A, CPC n. 47) também distancia as noções jurídica e contábil ao prescrever que “a entidade deve fazer uso de outras contas de controle interno, como, por exemplo, ‘Receita Bruta Tributável’, para fins fiscais”. Veja-se que essa linha também é seguida pelo Supremo Tribunal Federal, que, ao interpretar o dispositivo constitucional que empresta validade ao PIS/COFINS (art. 195, I, “b”), também manifestou o entendimento de que as contribuições não interagem com a informação contábil de forma acrítica, consignando que a contabilidade é o ponto de partida para a determinação das bases de cálculo, mas “de modo algum subordina a tributação” (RE n. 606.107).
A polêmica se acentua quando a questão passa a ser o papel da contabilidade na hipótese de incidência, no critério temporal e na composição da base de cálculo dos tributos tradicionalmente conhecidos como impostos incidentes sobre o consumo (ISS, ICMS, IPI). Afora a reserva de lei complementar para a definição do fato gerador e da base de cálculo prevista no texto constitucional, o Código Tributário Nacional – que assume essa feição – trabalha com noções como (i) valor da operação, (ii) preço corrente da mercadoria, (iii) preço da arrematação, (iv) preço do serviço (art. 47 do CTN, art. 7º da Lei Complementar n. 116/2003 e art. 13 da Lei Complementar n. 87/1996). Por mais que esses termos não sejam estranhos à contabilidade, as opções do constituinte e do legislador nos conduzem à conclusão de que a incidência desses impostos é pautada por critérios eminentemente jurídicos[2], sendo intrincada, portanto, a conciliação das disciplinas nessas situações e na resolução de conflitos de competência.
Nessa ordem de ideias, a neutralidade fiscal dos padrões IFRS deve ser observada com temperamentos próprios do Sistema Tributário Nacional. Há, como visto, maior predileção pelos tributos incidentes sobre a renda e sobre o lucro (IRPJ e CSLL), menor intensidade nos tributos incidentes sobre a receita (PIS, COFINS, CPRB e outras contribuições setoriais) e, com relação aos impostos, o rigor inerente ao exercício das competências tributárias comparecendo como um óbice intransponível à contabilidade, motivo pelo qual o inter-relacionamento das disciplinas, nessa situação, é meramente residual.
No que toca à tributação federal sobre a renda e sobre a receita, buscou-se a neutralidade, inicialmente, mediante a alteração da LSA pela Lei n. 11.738/2007 e, posteriormente, com a instituição do Regime Tributário de Transição (RTT) pela Lei n. 11.941/2009, que veiculava autorização ampla no sentido de que as receitas, os custos e as despesas, mapeados pela contabilidade, que não encontrassem respaldo legal poderiam ser afastados da tributação.
A evolução desse regime foi a Lei n. 12.973/2014, que franqueou um catálogo de previsões sobre como a interação das disciplinas deve ocorrer. Nesse novo contexto legislativo, é possível observar que algumas situações foram regulamentadas com o mesmo espírito, mas disciplinadas item a item. Veja-se, por exemplo, o regime de subcontas dispensado aos ajustes a valor justo e valor presente. Trata-se de um mecanismo previsto para evitar que a visão prospectiva que conduz os lançamentos contábeis seja indiferente para fins tributários até que o evento crítico seja experimentado pelo titular do patrimônio.
A neutralidade também foi transmitida para as alterações na contabilidade posteriores à edição da Lei n. 12.973/2014. É o que estabelece o artigo 58, ao prescrever que novos métodos ou critérios contábeis posteriores à publicação da norma não desencadearão reflexos até que a lei tributária regule a matéria. Afora essas duas formas de interação das disciplinas, a legislação incorporou algumas normas e conceitos utilizados pelos pronunciamentos contábeis, o que fica evidente, por exemplo, ao se conjugar a disciplina legal com o Pronunciamento CPC n. 15, com vocação às combinações de negócios.
E, por fim, há que mencionar o ambiente em que teorias e interesses se digladiam e as discussões se intensificam: o das lacunas. São as situações que não cuidam de prescrições sobre os reflexos dos IFRS, mas das omissões legislativas. Há diversos casos em que não se encontra uma solução apriorística, e a avaliação sobre o tratamento tributário demanda interpretação sistemática da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional. É esse o objeto desta série.
[1] Fora do contexto das reorganizações societárias, as lacunas entre a tributação e a contabilidadedesencadeiam questionamentos. Note-se a COSIT n. 659/2017, sobre o deemedcost, a COSIT n. 672/2017, sobre o impairment e os créditos de PIS/COFINS, COSIT n. 98/2019, sobre o crédito de PIS/COFINS nas concessões, 17/2018, sobre o valor justo como custo atribuído, COSIT n. 202/2017, cujo objeto é o reconhecimento de receitas na construção civil (POC), a COSIT n. 7/2021, que trata do regime de tributação de venda de imóveis no lucro presumido e a forma de contabilização de imóveis.
[2] Nesse aspecto, também merecem destaque as ponderações de Rinaldo Braga, Arthur Pitman e Fabio Pereira da Silva, que, examinando o pronunciamento contábil vocacionado ao reconhecimento de receitas e o conflito de competência entre o ISS e o ICMS, esclarecem que “o constituinte optou por erigir um sistema constitucional tributário pautado na segurança jurídica por intermédio da legalidade, ou seja, que o poder de tributar está fortemente delimitado por critérios eminentemente jurídicos, e não contábeis”(BRAGA, Rinaldo; PITMAN, Arthur; SILVA, Fabio Pereira da. O cpc n. 47 e o conflito de competência entre os tributos estaduais e municipais. jan./jun. 2020; PEIXOTO, Marcelo Magalhães; FERNANDES, Edison Carlos (coord.). Revista de Direito Contábil Fiscal, Associação Paulista de Estudos Tributários – APET, v. 2, n. 3. São Paulo: MP Editora, 2020).
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]
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