05 | 04 | 2021

O usufruto e a dedução dos juros sobre capital próprio

Por: Rodrigo Schwartz Holanda

Os juros sobre o capital próprio (JCPs) veiculam uma forma de retribuição do capital investido. Numericamente, o benefício do pagamento dos JCPs consiste na “troca” de 34%, a título de dedução do IRPJ/CSLL do lucro real, por 15% na modalidade de tributação definitiva, quando o pagamento é direcionado às pessoas físicas[1].

Há, dessa forma, economia de aproximadamente 19% (ou mais, a depender da alíquota atividade da entidade pagadora). Via de regra, essa forma de remuneração pode não ser tão atrativa quando o quadro societário é composto por pessoas jurídicas e físicas. Nesse contexto, a figura do usufruto comparece como alternativa para viabilizar essa forma de redução da carga tributária e endereçar eventual conflito de agência. Na outorga das quotas de capital gravadas com usufruto, o usufrutuário, na condição de beneficiário dos frutos produzidos pela coisa, passa a ser o titular do rendimento decorrente do direito cedido.

Há muito essa alternativa é conhecida e praticada no mercado. Sucede que a decisão por utilizar esse mecanismo normalmente vem acompanhada de alguns receios. A outorga de usufruto para fins de pagamento dos JCPs é objeto de diversas autuações pela Receita Federal do Brasil.

O primeiro ângulo da controvérsia, no âmbito do CARF, é relativo à dedutibilidade. No Acórdão n. 1.401.004.212, por exemplo, a questão consiste em saber se a dedução do IRPJ/CSLL pode, ou não, ser mantida quando os pagamentos são direcionados ao usufrutuário. A Administração Fazendária federal, pautada pela ideia de que o JCPs é um incentivo fiscal, argumenta que o artigo 9º da Lei n. 9.249/1995 deve ser interpretado de forma literal (artigo 111 do CTN), sendo vedada a interpretação ampliativa da expressão “sócios e acionistas”. A glosa da dedução dos JCPs decorre do fato de que o pagamento não é direcionado ao “sócio e acionista”, mas ao usufrutuário.

Nesse ponto, é oportuno lembrar que a dedutibilidade dos JCPs não é um benefício fiscal. A introdução dessa dedução no ordenamento pátrio buscou estimular a busca de financiamento com capital (equity), ao invés de dívida (debt)[2]. Mesmo se estivéssemos a tratar de um benefício fiscal, na acepção técnica do termo, o usufrutuário assumiria a condição de “sócio ou acionista”, mostrando-se indevida tal interpretação.

Sem esgotar as possíveis reflexões nesse aspecto, o segundo ângulo da controvérsia – tratado por Thales Stucky neste artigo do JOTA – está concentrado no beneficiário dos pagamentos. Os procedimentos de fiscalização consideram o usufruto uma convenção realizada entre particulares e, portanto, inoponível à fazenda pública (artigo 123 do CTN). A despeito de o pagamento dos JCPs ser direcionado ao usufrutuário, a Receita Federal autuava os sócios ou acionistas por considerá-los beneficiários, sob o fundamento de omissão de receitas/rendimentos.

Sobre esses temas, em janeiro de 2021, a Receita Federal do Brasil se pronunciou em Solução de Consulta (COSIT n. 137/2020). Na oportunidade, o contribuinte dirigiu à Receita três questionamentos: (i) o usufrutuário pode ser considerado o beneficiário dos JCPs das quotas gravadas com usufruto? (ii) os JCPs pagos ao usufrutuário são dedutíveis? (iii) os JCPs pagos ao usufrutuário de quotas gravadas com usufruto estarão sujeitos à incidência do imposto sobre a renda retido na fonte à alíquota de 15%?

Atualmente, a posição da Receita Federal[3] e o entendimento predominante no CARF convergem para a licitude de seu pagamento aos usufrutuários.

No entanto, fora do terreno dos JCPs surge uma nova discussão. Alguns contribuintes (pessoas físicas) estão sendo autuados a título do Imposto sobre a Renda das Pessoa Físicas (IRPF) pela própria outorga do usufruto. Os autos de infração são fundamentados no artigo 47, IV, do Regulamento do Imposto sobre a Renda de 2018 (RIR/2018), que prevê que também são tributáveis “os rendimentos recebidos na forma de bens ou direitos, avaliados em dinheiro, pelo valor que tiverem na data da percepção”.

Tais autuações não resistem a um exame crítico. O usufruto é nada mais do que “o direito de usar uma coisa pertencente a outrem e de perceber-lhes os frutos, ressalvada sua substância”[4]. A questão que se apresenta é que a tributação do usufruto equivale à exigência do imposto sobre renda potencial ou, indo além, sobre a capacidade de adquirir a renda. Trata-se de uma situação que não congrega os elementos basilares da tributação da renda.

Sobre esse aspecto, cabe lembrar que o artigo 43 do CTN prescreve que o Imposto sobre a Renda tem como fato gerador a “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica”. É pressuposto para a tributação da renda que o acréscimo patrimonial gravado pelo imposto esteja acoplado ao patrimônio de forma definitiva, sem reservas ou condicionantes.

O usufrutuário tem direito à posse, ao uso, à administração e à percepção dos frutos, mas não pode dispor da titularidade jurídica em sua plenitude. Além disso, os termos constantes da outorga do usufruto podem impor condições que limitem ou modifiquem os direitos concernentes às deliberações que acompanham a participação societária, reservando os direitos políticos exclusivamente ao titular da nua-propriedade. Não há, portanto, disponibilidade plena da propriedade e, em alguns casos, tampouco do poder de decisão sobre a percepção dos frutos que acompanham a participação. A disponibilidade só se manifesta quando a renda está – e o pleonasmo é proposital – disponível.

Aqui, como de costume, os ensinamentos do professor Paulo de Barros Carvalho são valiosos. É indispensável que a base de cálculo esteja em sintonia com o verbo que compõe o critério material do tributo. Partindo da ideia de que a outorga de usufruto constitui um rendimento tributável, qual seria a base de cálculo? O patrimônio líquido (PL) da empresa? O valor de mercado? Os JCPs/dividendos recebidos? O usufruto teria o mesmo valor da propriedade em sua plenitude?

E mais, considerando-se que a percepção dos frutos da participação societária passa por, pelo menos, três momentos (outorga do usufruto, deliberação pelo pagamento dos JCPs/dividendos e o efetivo recebimento), qual seria o critério temporal? E como conciliar a resposta a essa pergunta nos casos em que os direitos políticos das participações sobre as quais incide o usufruto são exercidos exclusivamente pelo nu-proprietário? É possível considerar que a implementação do usufruto representa o evento crítico que configura a realização da renda no regime de caixa?

São perguntas que, veja-se, quedam sem respostas e denunciam que a mera outorga de usufruto é incompatível com a tributação da renda das pessoas físicas. Demais disso, a outorga de usufruto decorre de um ato unilateral do proprietário das participações sobre as quais o usufruto será exercido. Assim, ausente o caráter contraprestacional, não há como interpretar o art. 47, IV, do RIR/2018 fechando os olhos para o art. 6º, caput, inciso XVI, da Lei n. 7.713/1988, que estabelece que o valor dos bens adquiridos por doação é desonerado do IRPF. Nesse aspecto, é oportuno relembrar que os “acréscimos-transferência”, tomando emprestadas as palavras de Bulhões Pedreira[5], não se compaginam com a tributação da renda.

O cenário atual de pagamento dos JCPs aos usufrutuários apresenta mais fatores positivos do que negativos. O recente posicionamento da Receita Federal é vinculante e confere maior segurança jurídica ao nu-proprietário e ao usufrutuário que se utilizam desse expediente. No que tange aos lançamentos de ofício que conferem ao usufruto a natureza de rendimentos na forma de direitos para fins de IRPF, espera-se que o controle de legalidade manejado pelo CARF e pelo Poder Judiciário conduza ao cancelamento desses atos. Vamos aguardar os próximos pronunciamentos sobre a matéria.


[1] O pagamento dos JCPs permite à pessoa jurídica submetida ao lucro real deduzir dos tributos incidentes sobre a renda o pagamento feito aos sócios e acionistas, a título de remuneração do capital próprio (art. 9º, §1º, da Lei n. 9.249/1995). A opção por essa forma pagamento acarreta a incidência do imposto de renda retido na fonte à alíquota de 15%, assumindo feição de antecipação do imposto devido no caso de beneficiário pessoa jurídica tributada com base no lucro real (art. 9º, §3º, I, da Lei n. 9.249/1995). Em se tratando de beneficiário optante do lucro presumido, os JCPs recebidos devem ser adicionados à base de cálculo estimada (art. 51 da Lei n. 9.430/1996). Com relação ao pagamento de JCP aos sócios e acionistas pessoas físicas, os valores são gravados na modalidade de tributação definitiva na fonte pagadora, não sendo oferecidos à tributação pelo beneficiário (art. 9º, §3º, II, da Lei n. 9.249/1995).

[2] Muito embora a OCDE e os participantes de discussões sobre a tributação da renda corporativa não vejam os JCPs com bons olhos e, invariavelmente, acabem por chamar atenção para a vantagem fiscal que deles decorre, o enquadramento jurídico como incentivo fiscal não parece ser o mais adequado. Toda norma tributária é, em maior ou menor grau, indutora de comportamentos. A redução da carga tributária resultante dos pagamentos dos JCP surgiu na década de 1990, momento em que o Brasil combatia a inércia inflacionária, para equilibrar a extinção da correção monetária do balanço, como mecanismo de correção do patrimônio líquido da empresa. Demais disso, consta do parecer da Comissão de Finanças e Tributação sobre o projeto de lei que culminou na Lei n. 9.249/1995 que os JCPs visam a “estimular o autofinanciamento das empresas, pela redução da diferença de tratamento que a atual legislação confere ao capital próprio e ao capital de terceiros”.

[3] Com relação ao primeiro ponto, foi respondido que “o usufrutuário será o beneficiário dos rendimentos produzidos pelas cotas, incluídos os juros sobre o capital próprio, uma vez que o instituto do usufruto resulta na alteração do beneficiário do rendimento produzido pela coisa”. No que toca ao segundo tema levantado pelo contribuinte, a Receita concluiu que os JCPs pagos ou creditados “poderão ser deduzidos pela pessoa jurídica para efeitos da apuração do lucro real, uma vez que mantêm a sua natureza primária, quer sejam pagos ou creditados ao usufrutuário titular do rendimento, ao sócio, ou ao acionista”. A terceira orientação segue a mesma linha. O posicionamento é de que os JCPs pagos ao usufrutuário estão sujeitos à incidência do imposto sobre a renda retido na fonte à alíquota de 15%.

[4]GONÇALVES, C. R. Direito das Coisas. 5.ed. SP: Saraiva, 2012. p. 478.
Não que o direito de uso não tenha valor. A própria legislação tributária prevê expedientes parecidos – tal como a controversa tributação da renda sobre a cessão gratuita de imóvel, prevista pelo artigo 41, §1º, do RIR/2018. Sobre o tema: GUTIERREZ, M. D. Da Renda Imputada. Revista Direito Tributário Atual,SP, n. 23, 2009.

SILVA, F. C. A. F. da. A Tributação da Renda na Cessão Gratuita de Uso de Imóveis. Revista Direito Tributário Atual,São Paulo, n. 39, 2018.

[5]PEDREIRA, J. L. B. Imposto sobre a renda – pessoas jurídicas. V. I. Rio de Janeiro: Justec-editora, 1979, p. 117. Nesse aspecto, cabe mencionar que o termo utilizado pela legislação (isenção) parece não ser o mais apropriado para as doações. Sobre a tributação das transferências patrimoniais: OLIVEIRA, R. M. de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: QuartierLatin, 2008, p. 162.

Por

Rodrigo Schwartz

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]

Rodrigo Schwartz Holanda - Menezes Niebuhr

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