26 | 07 | 2022

Os descontos condicionais e as repercussões no PIS e COFINS  – Parte 1      


 

A receita bruta tributável é sempre definida pela nota fiscal?     

O evolver social nos obriga, a todo instante, à revisão dos conceitos empregados para a compreensão das coisas da vida. Não raro o conhecido é assim identificado por ser reiteradamente assim anunciado, não por ser, de fato, conhecido. Retendo essa ideia, retomamos essa série desafiando a orientação predominante de um tema tão antigo quanto controverso.     


Trata-se da discussão que se convencionou chamar de tributação pelas contribuições sociais dos descontos condicionais e incondicionais, tema que ganha especial relevância com o programa de Conformidade Tributária, lançado pela Superintendência Regional da Receita Federal, vinculada ao Serviço de Monitoramento dos Maiores Contribuintes, que tem gerado autuações e movimentado debates na política comercial dos varejistas no país.      


É notável que os arranjos contratuais contemporâneos, que amarram a composição do preço praticado pela indústria/distribuidor com o varejista, sejam indistintamente chamados de descontos condicionais ou incondicionais.  


Existe um certo consenso que resume o desconto incondicional àquele que consta no documento fiscal nota e que independe de evento futuro e incerto. Estes descontos não são oferecidos à tributação e sobre isso não há grandes controvérsias. Já os descontos condicionais são os que dependem de evento futuro e incerto, cuja implementação é representativa de receita para o beneficiário, independentemente da forma como a vantagem é materializada (depósito, bonificação, desconto). Se a redução no valor do pagamento estiver associada ao pagamento da dívida com o industrial/distribuidor antecipada, então essa redução assume a feição de receita financeira, ao passo que as demais modalidades de desconto ou benefícios devem compor a base de cálculo das contribuições no regime não cumulativo. Essa é a compreensão predominante, objeto das provocações deste texto.  

      
Alguns casos exploram a questão por outras categorias, como se as doações, receitas financeiras, serviços (publicidade, logística, etc.), ajustes de custo, entre outros, fossem espécies pertencentes ao gênero dos descontos. É notável que, ao entender a questão por essa perspectiva deste parâmetro binário (condicional ou incondicional) – e sobre eles atribuir determinados efeitos – , somos convidados a encaixar o benefício nesta ou naquela hipótese. Estes acordos, somente para ilustrar com alguns exemplos, compreendem, (i) verba de rebaixa de preço, (ii) recomposição de margem (sell in ou sell out), (iii) desconto em título de crédito, (iv) bonificação em mercadoria, sejam (iv.a) vinculadas ou (iv.b) desvinculadas contratualmente, (v) verba de marketing, (vi) verba/desconto logístico(a), (vii) aquisição de espaços privilegiados no estabelecimento varejista (gôndolas, ilhas, espaços), (viii) prêmios de exclusividade, (ix) acordos de recomposição de perda/não devolução, (x) acordos de aniversário, (xi) verbas/mercadorias de inauguração de estabelecimento, (xii) acordos de lançamentos de novos produtos/introdução, (xiii) prêmios por atingimento de metas (rapel), sejam elas de (xiii.a) compras ou (xiii.b) de vendas, (xiv) acordos de e-commerce, (xv) verbas de promotores e, enfim, as mais diversas formas que benefícios recíprocos que possam ser pensadas.     


Passando os olhos nestes quinze formatos de contratos, eleitos aleatoriamente para fins didáticos, já é possível concluir que este parâmetro binário é míope e incapaz disciplinar reflexos tributários que acompanham os direitos e deveres recíprocos desta cadeia de valor. A despeito da ausência de uniformidade na nomenclatura destes contratos, a criatividade do varejista, do industrial e do distribuidor convergem para o mesmo objetivo: fomentar práticas comerciais que induzam o consumo, movimentar os estoques e evitar a ociosidade da capacidade de produção industrial. São formas contratuais que se enlaçam desde a aquisição da matéria-prima para o processo de transformação industrial até a sacola do consumidor final. É assim, repisa-se, que as categorias desconto condicional ou incondicional se mostram insuficientes para exprimir essa complexa realidade.   

  
Os descontos incondicionais, como mencionado, não compõem a base de cálculo do PIS/COFINS, da CPRB e do lucro presumido[1]. Nos termos da IN n. 51/1978, estes descontos representam “parcelas redutoras do preço de vendas, quando constarem da nota fiscal de venda dos bens ou da fatura de serviços e não dependerem de evento posterior à emissão desses documentos”. É da essência do desconto a redução do valor que será recebido pela contraprestação do contrato.  


Se bem observarmos o que ocorre na prática comercial, fica evidente que diversos contribuintes não informam os descontos em notas fiscais por diversos motivos, seja pela preservação de informações sobre a margem praticada ou, ainda, pela impossibilidade de conhecer a margem específica daquela operação, não raro a operação de venda é vinculada a uma série de outras operações comerciais.
A despeito da insuficiência destas classes para exprimir essa complexidade, é precisamente por esse motivo que a vinculação ao documento fiscal – que afasta possibilidade de se promover os ajustes de receita – para a composição da receita bruta tributável, utilizado pela Receita Federal, seguida pelo CARF e tribunais superiores, é insatisfatório para orientar a questão[2].      


Alguns precedentes têm alçado a discussão ao nível que ela merece, afastando a vinculação à nota fiscal como critério determinante. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por exemplo, afastou a exigência das contribuições por restar demonstrado, no bojo de prova pericial em ação anulatória, que os benefícios concedidos ao contribuinte repercutiram diretamente no valor das operações realizadas, mostrando-se indevida, então, a inclusão destes valores na base de cálculo do PIS/COFINS[3].  
Prevaleceu o entendimento de que, para fins de exclusão da receita bruta do vendedor, as bonificações financeiras/contratuais seguem a mesma regra dos descontos incondicionais, inclusive sendo desnecessário o registro em notas fiscais. Isso porque, no caso, “foi verificado, no trabalho pericial, a sua real vinculação às vendas realizadas, configurando ‘valores aportados pela autora aos seus clientes, ou de crédito/descontos em face de acordos comerciais previamente estabelecidos’, ou seja, em verdade, resultaram na redução do valor da operação. Afastam-se as referidas bonificações, portanto, do conceito de “receita ou faturamento”. Trata-se de um importante precedente, que capturou a verdadeira essência da operação e reconheceu a possibilidade de exclusão destes descontos da base de cálculo das contribuições ao PIS e COFINS.   

              
É que o conceito de receita, também abordado neste artigo desta série, impõe que alguns dispositivos sejam lidos de forma sistemática. Por mais que a legislação de regência das contribuições no regime não cumulativo (10.637 e 10.833) estabeleçam a incidência ocorre sobre o total das receitas auferidas, independentemente da classificação contábil, a legislação estabelece uma ordem de expedientes que deve ser seguida.

             
Primeiro, estabelece o DL n. 1.598/77 que o lucro real “deverá ser determinado com observância dos preceitos da lei comercial” (art. 6º), o que invariavelmente nos conduz à Lei n. 6.404/76, que subordina a apuração do resultado ao regime de competência e “aos princípios de contabilidade geralmente aceitos” (art. 177). Também por força do que estabelece a Lei n. 12.973/14, cujo objetivo, diz a exposição de motivos, é “a adequação da legislação tributária à legislação societária e às normas contábeis”, os tributos incidentes sobre o lucro, sobre a renda e sobre as receitas devem acomodar a disciplina contábil conforme previsto em lei (art. 1º). É assim que, pautados pela técnica do reenvio legislativo, vamos ao pronunciamento CPC n. 47, que disciplina o reconhecimento das receitas e substituiu o CPC n. 30, vigente à época da edição da Lei n. 12.973/14[4].          

     
Estabelece o pronunciamento que a entidade deve reconhecer como receita “o valor do preço da transação”, sendo necessário considerar os termos do contrato e suas práticas de negócios usuais. Justamente por essa razão, o item n. 51 estabelece que “o valor da contraprestação pode variar em razão de descontos, abatimentos, restituições, créditos, concessões de preços, incentivos, bônus de desempenho, penalidades ou outros itens similares.” Acrescenta o pronunciamento que “a contraprestação prometida pode variar também se o direito da entidade à contraprestação depender da ocorrência ou não ocorrência de evento futuro”. Também não é por outro motivo, e agora estamos no item n. 55, que disciplina o passivo de restituição e os ajustes ou reduções de receita.  
É certo que não existe uma fórmula única dimensionar as receitas decorrentes destes complexos acordos comerciais. Isso porque não se pode perder de vista que o contrato de compra e venda, estabelece o Direito Civil, é formado pelo consentimento das partes, pela coisa, e pelo preço, que deve ser determinado ou determinável por um critério fixado em contrato.

   
O importante é que se tenha em mente que o documento fiscal é um indicativo, não determinante, do preço praticado na operação. A receita decorrente do contrato de compra e venda é subordinada à disciplina dos negócios jurídicos. Assim, o preço “não tem de ser desde logo, preço determinado. Basta que, desde logo, seja determinável[5], como ensina Pontes de Miranda. Desse modo, se o valor da nota for incompatível com o valor pelo qual a obrigação é extinta, este prevalece perante aquele, porquanto só se leva à tributação o montante que efetivamente expressa a mutação patrimonial concreta e efetiva, quando realizado. Entendimento contrário, veja-se, também representaria a alteração da definição, conteúdo e alcance dos institutos, conceitos e formas do direito privado, para fins do dimensionamento do conceito de receita aplicável ao caso, o que não se admite também por força do artigo 110 do Código Tributário Nacional.         


Os conceitos jurídico e contábil de receita e a disciplina civilista sobre os elementos do negócio jurídico convergem para a possibilidade de serem promovidos, em alguns casos, os ajustes na receita bruta, mostrando-se indevida a vinculação da receita bruta tributável com o valor indicado em nota fiscal. Trata-se de uma perspectiva que não se dissocia da formação do custo de aquisição das mercadorias, tema que será objeto do próximo texto desta série.  

córdão nº 3401-002.117 (Indústria Cerâmica Fragnani) Rel. Julio César Alves Ramos, 1ª Turma Ordinária, 4ª Câmara, 3ª Seção, 31/01/2013 “No presente caso, o resultado da diligência demonstra que, não obstante as bonificações não tenham constado do corpo das notas fiscais de venda, uma parte delas teve a sua emissão na mesma data, ao mesmo cliente, com numeração sequencial imediata, envolveu o mesmo produto [com ressalvas feitas pela fiscalização quanto às referências dos mesmos, o que, para mim se mostra irrelevante], o mesmo transportador e as mesmas placas dos veículos transportadores.”

[1] Respectivamente: Art. 1º, § 3º, V, “a”, da Lei nº 10.637/2002 e da Lei nº Lei nº 10.833/2003, Art. 9º, § 7º, I, da Lei nº 12.546/2011. 3 Art. 25, I, da Lei nº 9.430/1996.

[2] Cosit no 542/2017, Cosit no 291/2017, Cosit no 380/2017, Cosit no 531/2017, Cosit 664/2017, Cosit no 290/2017, Cosit no 208/2019.  Acórdãos CARF n. 9303-010.101, 9303-010.247, 3301-006.965 / Precedentes: TRF4, AC 5016359-11.2017.4.04.7205, PRIMEIRA TURMA, Relator ROGER RAUPP RIOS, juntado aos autos em 10/10/2019, TRF4, AC 5009306-13.2016.4.04.7205, SEGUNDA TURMA, Relator SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, juntado aos autos em 23/07/2019, AgInt no REsp 1711603/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/08/2018, DJe 30/08/2018

[3] Dois precedentes merecem destaque, o primeiro, que anulou sentença por indeferimento de prova pericial, e o segundo, relativo ao comentário que acompanha esta nota de rodapé. Respectivamente: TRF-4 – Apelação Cível Nº 5000077-63.2010.4.04.7100. Relatora Luciane Amaral Corrêa Munch. Data de julgamento: 16/10/2013.
TRF-4 – APL: 50027215720164047103 RS 5002721-57.2016.404.7103, Relator: Jorge Antonio Maurique, Data de Julgamento: 05/04/2017

[4] Esse CPC foi, em atendimento ao reclamo do art. 58 da Lei n. 12.973/14, regulamentado pela IN SRFB n. 1.771/2017.

Por

Rodrigo Schwartz

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]

Rodrigo Schwartz Holanda - Menezes Niebuhr

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