01 | 02 | 2019

Salseiro institucional: a queda de braço entre OAB e TCU

Artigo de autoria do sócio Joel de Menezes Niebuhr trata sobre a decisão do Tribunal de Contas da União que considera a Ordem dos Advogados do Brasil uma autarquia, “pelo que se sujeita à sua jurisdição e deve-lhe prestar contas”. Texto publicado no portal Direito do Estado em 16/12/2018.

O TCU decidiu que a OAB é uma autarquia, pelo que se sujeita à sua jurisdição e deve-lhe prestar contas, da mesma forma que os demais conselhos profissionais, como os dos engenheiros, médicos, administradores etc. (Acórdão n. 2.573/2018, de 07/11/2018, relatado pelo Ministro Bruno Dantas). O Presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, em nota oficial, afirmou que o Acórdão do TCU não tem “validade constitucional” e, embora não diga com todas as letras, dá a entender que não se curvará. Armou-se um salseiro institucional.

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A OAB é realmente uma autarquia. O artigo 44 do Estatuto da Advocacia (Lei Federal n. 8.906/1994) prescreve, sem qualquer sutileza, que ela é “serviço público”, dotada de poderes de polícia sobre a atividade profissional da advocacia. Se fosse de natureza privada, como defendida por alguns, não poderia protagonizar o exercício de poderes de polícia. Soma-se que a OAB é sustentada por recursos de origem tributária, como são todas as contribuições sociais instituídas em favor de categorias profissionais, nos termos do preceituado no artigo 149 da Constituição Federal.

A OAB também não se livra do TCU com a tese de que é entidade especial, não comparada aos demais conselhos profissionais porque tem missão institucional e porque foi prestigiada com referências a si no texto da Constituição Federal. Não há conexão lógica causal entre a inquestionável relevância institucional da OAB e uma pretensa imunidade ao controle do TCU. Claramente, uma coisa não leva à outra.

A autonomia necessária para o desempenho da missão institucional da OAB não é prejudicada com o controle do TCU, que não assume status de poder hierárquico ou algo que o valha. A OAB não tem de prestar contas sobre o mérito das suas ações. Tem de prestar contas apenas da aplicação dos seus recursos, angariados em razão da força do Estado, que obriga a todos os advogados.

Tanto isso é verdade que o Poder Judiciário e o Ministério Público se sujeitam ao controle do TCU e isso jamais afetou as suas autonomias, garantidas constitucionalmente com igual ou maior intensidade do que a da OAB. Se a tese da OAB fosse verdadeira, o Poder Judiciário e o Ministério Público não poderiam responder ao TCU, algo que sequer se cogita.

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Há, no entanto, uma questão técnico-processual, que se desvela como o grande argumento da OAB. A alegação é que o TCU, no Acórdão n. 2.573/2018, desobedeceu ao STF, mais especificamente ao julgado na ADI 3.026/DF, de 08/06/2006, cujo teor reconheceu que a OAB não é autarquia.

Pois bem, a ADI 3.026/DF teve por objeto a constitucionalidade do caput e do § 1º do artigo 79 do Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/1995), acerca do regime dos empregados da OAB. O Ministério Público pretendia a aplicação do Direito Público sobre o pessoal da OAB. A decisão do STF foi pela improcedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade. Sem embargo, na motivação do Acórdão da ADI 3.026/DF, os ministros do STF compreenderam que a OAB não integra a Administração Pública, que ela é “serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro”, diante de suas missões institucionais. Então, concluíram que ela “não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada”.

O TCU, no Acórdão n. 2.573/2018, atribuiu à OAB a natureza de autarquia e, assim sendo, deu de ombros para as razões jurídicas deduzidas pelos ministros do STF na ADI 3.026/DF, seguindo linha diametralmente contrária. Em suma, o Acórdão do TCU não ofendeu a parte dispositiva do Acórdão da ADI 3.026/DF, do STF, que prestigia, repita-se, a constitucionalidade do caput e do § 1º do artigo 79 do Estatuto da Advocacia. Ofendeu, indisfarçadamente, a sua motivação.

Via de regra, consoante o inciso I do artigo 504 do Código de Processo Civil, o dispositivo da sentença faz coisa julgada e não “os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença”. Entretanto, o inciso III do artigo 988 do Código de Processo Civil admite a reclamação para “garantir a observância […] de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade”. O § 4º do mesmo artigo esclarece que a hipótese do inciso III abrange “a aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam”.

O supracitado § 4º do artigo 988 do Código de Processo Civil consagra a teoria da transcendência dos motivos determinantes, de acordo com a qual as decisões proferidas em ações de controle concentrado de constitucionalidade vinculam juízes e tribunais em relação às suas partes dispositivas e também aos seus motivos determinantes. Registre-se que, nada obstante as disposições do Código de Processo Civil, a jurisprudência do STF vacila em admitir a teoria. (contra: Rcl 30.367/TO, de 11/09/2018, da relatoria do Ministro Dias Tofolli; a favor: Rcl 22.328/RJ, de 06/03/2018, da relatoria do Ministro Roberto Barroso).

O TCU afastou a aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes em relação ao Acórdão da ADI 3.026/DF, sob a escusa de que as considerações externadas pelo STF naquela oportunidade sobre a natureza jurídica da OAB seriam obter dicta, incidentais e feitas de passagem, e não constituiriam a sua ratio decidendi, a sua verdadeira razão de decidir.

O entendimento do TCU é equivocado. A natureza jurídica da OAB foi a discussão central e determinante para o julgamento da ADI 3.026/DF. Ainda que se discorde, a pedra de toque do Acórdão da ADI 3.026/DF é que a OAB não é autarquia, não se insere no universo da Administração Pública, sendo-lhe autônoma e independente. Essa foi a razão lógica para a improcedência do pedido, que visava à aplicação do regime de Direito Público ao pessoal da OAB.

* * *

O TCU, na tentativa discursiva de escapar da ADI 3.026/DF, ressaltou que o próprio STF, no julgamento do RE 595.332/PR, de 31/08/2016, da relatoria do Ministro Marco Aurélio, teria reconhecido a natureza autárquica da OAB.
Nesse Recurso Extraordinário, discutiu-se a competência da Justiça Federal para processar os feitos envolvendo a OAB. A ratio decidendi foi que a natureza jurídica da OAB é de autarquia corporativista federal. Por isso a competência da Justiça Federal.

Ressalva-se que, no julgamento, o Ministro Luís Roberto Barroso confessou que tinha dúvidas sobre a natureza jurídica da OAB, em que pese não discordar da competência da Justiça Federal para processar os seus litígios. Não foi acompanhado pelos demais ministros e não teceu qualquer tipo de explicação sobre as razões pelas quais a competência seria da Justiça Federal se a OAB não fosse qualificada como autarquia federal.

O TCU utilizou o RE 595.332/PR para reforçar a tese de que, na ADI 3.026/DF, os debates sobre a natureza jurídica da OAB foram obter dicta:

Não se pode juntar argumentos esparsos mencionados obter dicta para tentar ampliar a eficácia de um julgamento, ao arrepio da lei, pois isso significa usar palavras soltas sem saber o contexto em que foram usadas.
Embora não desconheçamos a teoria da transcendência dos motivos determinantes no controle abstrato de constitucionalidade, essa teoria diz respeito à ratio decidendi, jamais à obter dicta.
[…]
Portanto, com as devidas vênias, discordo do parecer do ilustre Subprocurador-Geral Lucas Rocha Furtado no sentido de que eventual julgamento desta Corte a obrigar a OAB a prestar contas ao TCU afrontaria a ‘coisa julgada’ na ADI 3.096/DF, em razão do ‘entendimento do Supremo Tribunal Federal assentado na ementa’.
Ademais, a entender que os fundamentos da ADI 3.096/DF pudessem ser transportados ‘descolados’ do pedido, chegaríamos à incoerente conclusão de que o próprio STF afrontou ‘coisa julgada’ advinda de própria deliberação contida no RE 595332/PR, proferido em 31/8/2016, que deixou assentada a competência da Justiça Federal para processar e julgar ações em que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) figure como parte (conteúdo da parte dispositiva da deliberação).

O TCU está, mais uma vez, equivocado. As discussões sobre a natureza jurídica da OAB não foram obter dicta em ambos os julgamentos, na ADI 3.026/DF e no RE 595.332/PR.

A causa de pedir da ADI 3.026/DF foi o regime de pessoal da OAB, se devia ou não obediência ao Direito Público. A conclusão foi que não, porque, essencialmente, se considerou que ela não é autarquia e que, por conseguinte, a sua natureza jurídica não é de Direito Público. O raciocínio do STF foi estruturado num silogismo bem simples: (i) o regime de Direito Público aplica-se para a Administração Pública; (ii) a OAB não é autarquia e não faz parte da Administração Pública; (iii) logo o regime do seu pessoal é privado. A natureza jurídica da OAB foi, escancaradamente, a premissa lógica direta da decisão (ratio decidendi).

A causa de pedir do RE 595.332/PR foi a competência para processar os feitos que envolvem a OAB, se a Justiça Comum ou a Federal. A conclusão foi pela Justiça Federal, porque, essencialmente, se considerou que a OAB é uma autarquia federal. O raciocínio do STF, mais uma vez, foi estruturado num silogismo bem simples: (i) a Justiça Federal é competente para julgar os feitos das autarquias federais: (ii) a OAB é uma autarquia federal; (iii) logo a Justiça Federal é competente para julgar as causas que têm como parte a OAB. A natureza jurídica da OAB foi, novamente, a premissa lógica direta da decisão (ratio decidendi).

Está-se diante de duas decisões, ambas do Plenário do STF, com razões jurídicas totalmente discrepantes. Nos termos da ADI 3.026/DF, a OAB não é uma autarquia. Já nos termos do RE 595.332/PR, a OAB é uma autarquia. O STF, no RE 595.332/PR, ignorou a ADI 3.026/DF, que não foi sequer mencionada no Acórdão, e valeu-se de motivação contrária. É um absurdo, mas, sim, o absurdo aconteceu. Então, o que resta é tratar dos efeitos jurídicos do absurdo.

* * *

O efeito jurídico atribuído pelo TCU é equivocado. O fato do STF ter proferido um julgamento em recurso extraordinário que ignora e nega a motivação de um julgamento anterior não desqualifica a sua ratio decidendi. A ratio decidendi de uma decisão judicial não é afetada ou transformada em razão de outra decisão judicial que lhe é posterior e, logo, externa. A ratio decidendi depende apenas da fundamentação da própria decisão, pouco importam fatores externos, como é o caso de uma decisão posterior.

Nessa linha, a motivação vertida no Acórdão posterior não desfaz a do Acórdão anterior. Elas são contraditórias, mas ambas são válidas e produzem as suas consequências, que variam em face da natureza de cada uma delas.
Pela sistemática constitucional e processual civil, o grau de vinculação da decisão proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade é superior ao grau de vinculação de uma decisão de recurso extraordinário.
Como estabelece o § 4º do artigo 988 do Código de Processo Civil, a tese jurídica de julgado prolatado em sede de controle concentrado de constitucionalidade é vinculante, tanto que sua aplicação indevida abre a possibilidade de reclamação. A tese jurídica de julgado oriundo de recurso extraordinário não é vinculante. E o ponto é que, em ambos os Acórdãos, da ADI 3.026/DF e do RE 595.332/PR, a natureza jurídica da OAB aparece apenas na motivação e não na parte dispositiva.

Na prática, a motivação do Acórdão mais recente, externada no RE 595.332/PR, não vincula. A motivação do Acórdão mais antigo, externada na ADI 3.026/DF, vincula e o TCU, por via de consequência, precisava tê-la respeitado, o que não ocorreu. Quer dizer que a OAB tem razão quanto a esse particular: o TCU desprezou os motivos encartados em Acórdão proferido em sede controle concentrado de constitucionalidade pelo STF, o que desborda da sua competência.

* * *

A OAB é autarquia e deve prestar contas ao TCU. No fundo, no fundo, o TCU está certo. O problema é que não é o TCU quem deve dizê-lo, mas só o STF. O TCU não poderia ter desobedecido ao julgamento da ADI 3.026/DF, cuja motivação, apesar de equivocada, foi categórica em negar à OAB a natureza jurídica de autarquia. A Corte de Contas deveria prestar deferência ao Poder Judiciário e, com mais ênfase, aos julgamentos proferidos em sede de controle concentrado de constitucionalidade pela Corte Constitucional. Essa falta de deferência diz muito.

De todo jeito, o TCU deu a notícia que exerce controle sobre 550 conselhos profissionais, que gerenciam recursos da ordem de 3,3 bilhões de reais anuais. Não faz sentido que apenas a OAB seja dispensada do controle do TCU, que ela seja uma espécie de entidade “privilegiada” a pairar acima das amarras institucionais, para o bem ou para o mal. Ficam as perguntas: Por que a OAB resiste ao controle do TCU? A OAB tem medo do quê?

Joel de Menezes Niebuhr é doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UFSC. Professor de cursos de pós-graduação. Ex-Presidente do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). Autor de artigos publicados em revistas especializadas e de seis livros na área do Direito Administrativo e sócio e fundador da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados.

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Advogado inscrito na OAB/SC sob o nº 12.639. Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre […]

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