23 | 02 | 2023

A não contratação do seguro RCTR-C pelo Transportador Rodoviário de Cargas gera multa?

Em junho de 2022, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) publicou nova resolução acerca dos procedimentos para inscrição e manutenção no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Carga (RNTRC). Trata-se da Resolução n. 5.982/2022,[1] cujo artigo 25 revogou a Resolução n. 4.799/2015, que disciplinava o tema.

Dentre outras regras, a normativa de 2015 continha disposições acerca do seguro obrigatório do transportador:

  • De acordo com o seu artigo 23, inciso X, o documento que caracteriza a operação de transporte deveria conter a “identificação da seguradora e o número da apólice do seguro e de sua averbação, quando for o caso”.[2]
  • No artigo 25, §4o, a resolução revogada dispunha que “a responsabilidade do transportador por perdas e danos causados à carga é limitada pelo valor consignado no documento que caracteriza a operação de transporte, acrescido dos valores do frete e do seguro correspondente”.[3]
  • O §7o do mesmo artigo 25 determinava que o transportador e os seus subcontratados estariam liberados de sua responsabilidade em razão de “contratação de seguro pelo contratante do serviço de transporte, na forma do inciso I do art. 13 da Lei no 11.442, de 2007”,[4] referindo-se à contratação do RCTR-C por estipulação.
  • A previsão da redação originária do artigo 13 da Lei de 2007 estava reproduzida, ainda que em termos distintos, no artigo 33 da Resolução n. 4.799/2015, segundo o qual,

sem prejuízo do seguro de responsabilidade civil contra danos a terceiros, previsto em Lei, toda a operação de transporte contará com seguro contra perdas ou danos causados à carga, de acordo com o que seja estabelecido no contrato de transporte, podendo o seguro ser contratado: I – pelo contratante do transporte, eximindo o transportador da responsabilidade; ou II – pelo transportador, quando não for firmado pelo contratante do transporte.[5]

  • No artigo 27, que tratava do direito de vistoria, havia igualmente uma referência às cláusulas do contrato do seguro.
  • Por fim, o artigo 36, inciso VIII, alíneas b e f, previa duas infrações e correspondentes multas relativas ao RCTR-C. O transportador que efetuasse transporte rodoviário de carga por conta de terceiro e mediante remuneração “sem indicar o número da apólice do seguro contra perdas ou danos causados à carga, acompanhada da identificação da seguradora na documentação que acoberta a operação de transporte”,[6] se sujeitaria à multa de R$ 550,00. Para o transportador que efetuasse o transporte “sem contratar o seguro contra perdas e danos causados à carga ou empreender viagem com apólice em situação irregular”,[7] a multa seria de R$ 1.500,00.

Embora tenha revogada a Resolução n. 4.799/2015, a Resolução n. 5.982/2022 não cuidou, em nenhuma de suas disposições, do seguro obrigatório do transportador. Portanto, desde 1o de setembro de 2022 (cf. art. 25 da Resolução n. 5.982/2022) o transportador rodoviário de carga não é mais obrigado a identificar a seguradora e o número da apólice do seguro obrigatório, não se sujeitando a qualquer multa a ser aplicada pela ANTT.

Nesse novo contexto, o RCTR-C continua a ser um seguro obrigatório?

Sim, em razão do disposto no artigo 20, alínea m, do Decreto-Lei n. 73/1966, segundo o qual são obrigatórios os seguros de “responsabilidade civil dos transportadores terrestres, marítimos, fluviais e lacustres, por danos à carga transportada”.[8]

A disciplina do seguro obrigatório do transportador rodoviário de carga (RCTR-C) encontra-se na Resolução CNSP n. 219/2010.[9] Além disso, o Decreto n. 61.867/1967 regulamenta os seguros obrigatórios previstos no artigo 20 do referido Decreto-Lei, e trata do “seguro obrigatório de responsabilidade civil dos transportadores em geral”[10] em seu artigo 10. Também deve ser mencionado o já citado artigo 13 da Lei n. 11.442/2007,[11] que recentemente foi objeto de alteração pela Medida Provisória n. 1.153/2022.[12]

Em nenhum desses documentos legais ou normativos há previsão de multa para a hipótese de não contratação do RCTR-C. Assim, a revogação da Resolução n. 4.799/2015 inviabiliza a aplicação de tal espécie de sanção de natureza administrativa. Todavia, ainda há, no ordenamento jurídico, a previsão de outras possíveis consequências para a não contratação do seguro obrigatório.

O artigo 22 do Decreto-Lei n. 73/1966 veda às instituições financeiras públicas a realização de operações ativas de crédito com pessoas jurídicas e firmas individuais que não tenham em dia os seguros obrigatórios por lei, salvo mediante aplicação da parcela do crédito que for concedido no pagamento dos prêmios em atrasos. Por sua vez, o Decreto n. 61.867/1967 determina, em seu artigo 2o, que “não poderá ser concedida autorização, licença ou respectiva renovação ou transferência, a qualquer título, para o exercício de atividades que estejam sujeitas a seguro obrigatório, sem prova da existência desse seguro”.[13] No mesmo Decreto, há a previsão de que nenhum veículo de transportador, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, poderá a partir da data fixada pelo CNSP trafegar com bens ou mercadorias sem que fique comprovada a efetiva realização dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil do transportador, conforme se lê de seu artigo 32. O dispositivo seguinte reza que nenhum veículo, ou qualquer equipamento de transporte, a partir de 1o de janeiro de 1968, poderá transportar pessoas, bens e mercadorias, sem que fique comprovada a efetiva realização dos seguros obrigatórios.

Além de não estarem amparadas em disposição prevista em lei, o que, em tese, afasta a sua legalidade, as consequências previstas no Decreto de 1967 encontrariam obstáculo prático na normativa do próprio Órgão Fiscalizador. A vigente Resolução n. 5.982/2022 da ANTT não exige como requisito para a inscrição ou para a manutenção do cadastro no RNTRC a comprovação da contratação de seguro obrigatório do transportador. Como já anotado, também não exige que, no documento que caracteriza a operação de transporte, sejam indicadas a apólice do seguro e a sua averbação. Por fim, a previsão do artigo 22 do Decreto-Lei n. 73/1966 não parece ser relevante para os transportadores rodoviários de carga e, mesmo se fosse, salvo melhor juízo não seria simples a verificação, pelas instituições financeiras públicas, da não contratação do seguro obrigatório.

Nesse cenário, embora vigente a previsão legal de obrigatoriedade de contratação do RCTR-C, atualmente, em razão da revogação da Resolução n. 4.799/2015 da ANTT, a não observância da imposição não encontra uma correspondente sanção administrativa no ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, do ponto de vista jurídico, as eventuais consequências negativas para o transportador rodoviário de carga que não contrata o RCTR-C limitam-se à esfera cível.

Primeiramente, se assim for estipulado no contrato de prestação de serviços de transporte, a não contratação do seguro obrigatório poderá configurar descumprimento contratual do transportador, o que ensejará, a depender do caso, a aplicação de multa contratual ou a resolução do contrato com fundamento na cláusula resolutiva expressa ou tácita (Código Civil de 2002 – CC/2002, arts. 474 e 475).[14] Em segundo lugar, na eventualidade de dano à carga em hipótese que estaria coberta pelo referido seguro, o transportador não disporá de uma garantia securitária, devendo arcar com todo o prejuízo. Por fim, deve-se considerar que a não contratação do seguro obrigatório configura um ilícito, malgrado a inexistência de uma correspondente sanção administrativa. A partir desse pressuposto, é possível cogitar se a não contratação de seguro obrigatório, notadamente quando reiterada, seria relevante para o fim de desconsideração da personalidade jurídica do transportador rodoviário de carga, caso o patrimônio da pessoa jurídica não seja suficiente para o pagamento das indenizações devidas aos embarcadores em razão de prejuízos à carga. Nas relações de consumo, não haveria dúvida quanto à relevância desse fato, uma vez que o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (CDC)[15] se refere à “infração da lei”. A questão torna-se mais difícil nos casos em que não há incidência da referida lei, pois seria aplicável o disposto no artigo 50 do CC/2002, que se refere a duas hipóteses, a saber: desvio de finalidade e confusão patrimonial.

Em resumo, o RCTR-C continua a ser um seguro obrigatório. Todavia, não se vislumbra, no atual contexto regulatório, uma efetiva sanção administrativa para a sua não contratação, pois revogada as infrações e multas previstas na Resolução n. 4.799/2015 da ANTT. Por outro lado, a não contratação do RCTR-C configura ilícito na esfera cível, com possíveis consequências nesse âmbito, como apontado acima.


[1] Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Transportes Terrestres (DC/ANTT). Resolução DC/ANTT n. 5.982, de 23 jun. 2022. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 jun. 2022. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=433069.htm. Aceso em: 25 jan. 2023.

[2] AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES (ANTT). Resolução ANTT n. 4.799, de 27 de julho de 2015. Regulamenta procedimentos para inscrição e manutenção no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas, RNTRC; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 jul. 2015. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=287658. Acesso em: 25 jan. 2023.

[3] Id., ibid.

[4] Id., ibid.

[5] AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES (ANTT). Resolução ANTT n. 4.799, de 27 de julho de 2015. Regulamenta procedimentos para inscrição e manutenção no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas, RNTRC; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 jul. 2015. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=287658. Acesso em: 25 jan. 2023.

[6] Id., ibid.

[7] Id., ibid.

[8] BRASIL. Decreto-Lei n. 73, de 21 de novembro de 1966. Dispõe sôbre o Sistema Nacional de Seguros Privados, regula as operações de seguros e resseguros e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 nov. 1966. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0073.htm. Aceso em: 25 jan. 2023.

[9] Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP). Resolução CNSP n. 219, de 6 dez. 2010. Dispõe sobre o Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário – Carga (RCTR-C). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 dez. 2010. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=433069.htm. Acesso em: 25 jan. 2023.

[10] BRASIL. Decreto n. 61.867, de 11 de dezembro de 1967. Regulamenta os seguros obrigatórios previstos no artigo 20 do Decreto-lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 dez. 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/d61867.htm. Aceso em: 25 jan. 2023.

[11] BRASIL. Lei n. 11.442, de 5 de janeiro de 2007. Dispõe sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração e revoga a Lei no 6.813, de 10 de julho de 1980. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 1, 8 jan. 2007. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11442.htm. Acesso em: 25 jan. 2023.

[12] BRASIL. Medida Provisória n. 1.153, de 29 de dezembro de 2022. Dispõe sobre a prorrogação da exigência do exame toxicológico periódico, altera a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, altera a Lei nº 11.442, de 5 de janeiro de 2007, quanto ao seguro de cargas, e altera a Lei nº 11.539, de 8 de novembro de 2007, quanto às cessões de Analistas de Infraestrutura e Especialistas em Infraestrutura Sênior. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 10, 30 dez. 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/mpv/mpv1153.htm. Acesso em: 25 jan. 2023.

[13] BRASIL. Decreto n. 61.867, op. cit.

[14] BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 1, 11 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 25 jan. 2023.

[15] BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 1, 12 set. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 25 jan. 2023.

Por

Guilherme Henrique Lima Reinig

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Atuação em Responsabilidade Civil e Seguros. Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina. Área: […]

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