23 | 11 | 2020

A responsabilização dos aplicativos de delivery no mercado de consumo

Por Michel Scaff e Vitor Esmanhotto

A responsabilidade civil é uma das áreas do Direito que mais precisou se adequar à mudança dos tempos, aos novos riscos e a situações concebidas pela sociedade. Com as novas tecnologias e formas de interação entre consumidor e fornecedor, é necessária a análise de como as normas existentes no ordenamento se relacionam com os fatos, em nome da coesão do sistema e da segurança jurídica.

Uma das grandes revoluções está na maneira com que se consome sem sair de casa. Nos últimos anos, surgiram os aplicativos para smartphone e, com eles, as novas formas de se contratar um serviço de delivery de alimentos, bebidas e outros bens de consumo. Exemplos desses fornecedores são o iFood, Uber Eats e o Rappi, que ganharam ainda maior notoriedade e importância com a pandemia do novo coronavírus.

A inovação na forma de consumir propiciou, também, o surgimento de uma nova relação consumidor-fornecedor. Nela, existe (i) o estabelecimento comercial, que pode ou não ser um restaurante, mas que sempre é a empresa que produz o bem de consumo; (ii) o aplicativo de delivery no qual o consumidor faz o pedido e (iii) os entregadores, que são cadastrados no aplicativo.

Essa configuração cria situações a serem enfrentadas à luz do regime de responsabilidade civil estabelecido no Código Civil e, sobretudo, no Código de Defesa do Consumidor. Seriam as regras existentes suficientes para tutelar o novo modelo de consumo, em que existe um aplicativo intermediador, um estabelecimento comercial e um entregador, todos envolvidos na prestação do serviço? É o que se passa a analisar.

Com o surgimento do Código de Defesa do Consumidor, microssistema de normas voltado à proteção dos consumidores, foi estabelecido o vínculo direto entre o fabricante/fornecedor e o produto/serviço, devendo o primeiro responsabilizar-se pelos danos que o segundo vier a causar – sem a necessidade de comprovação de culpa. Trata-se da aplicação direta da teoria do risco do empreendimento, segundo a qual todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder de maneira objetiva pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos. Houve a transferência, portanto, dos riscos do consumo do consumidor para o fornecedor.

Para a atração da sistemática, não é necessário que se trate de uma atividade de risco (nesse caso a responsabilidade objetiva já é disposta pelo parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, dispensando-se a utilização da legislação especial), mas tão somente que o fornecedor de bens e serviços se disponha a produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos ou executar determinados serviços.

Veja-se como se configura a relação de consumo nas compras feitas através desses aplicativos: utilizando o sistema fornecido por esses desenvolvedores, o usuário que realiza seu pedido pelo aplicativo torna-se consumidor em face de alguns fornecedores, podendo assumir essa faceta (i) o restaurante/lanchonete/estabelecimento comercial; (ii) a empresa que gerencia o aplicativo e (iii) o próprio entregador.

Pois bem. Mas quais as implicações práticas e diretas desse entendimento para os aplicativos?

Já têm sido percebidas manifestações do Poder Judiciário no sentido de responsabilizá-los por fatos do produto ou do serviço causados pelo estabelecimento comercial ou pelos entregadores. Como explicitado, o entendimento é de que a reparação pelos danos causados aos consumidores é de responsabilidade de todos aqueles que participam da cadeia de fornecimento. Somente após a resolução da situação com a vítima é que se averigua a proporção de culpa de cada um dos agentes no ocorrido, para que o agente responsabilizado judicialmente possa obter reparação junto àquele que deu causa aos danos.

Exemplo disso foi o caso julgado pela 42ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, no âmbito de ação proposta por condomínio em face da empresa que gerencia o aplicativo iFood. O entregador, chamado por pedido realizado pelo aplicativo, furtou um capacete que se encontrava no estacionamento do condomínio.

Em que pese o entregador tenha agido sozinho para cometer o crime, o magistrado responsabilizou também a empresa intermediária pelos danos suportados pelo condomínio (autos n. 1067867-23.2019.8.26.0100). Utilizou, para tanto, o artigo 932, inciso III, do Código Civil, que dispõe que o empregador ou comitente é responsável por seus empregados, serviçais e prepostos no exercício do trabalho que lhes competir. O dispositivo é citado pelo magistrado para fundamentação da condenação do iFood a reparação dos danos causados pelo crime cometido pelo entregador:

Por tudo isso, aplicável, em relação à ré iFood, o disposto nos artigos 186 e 932, III, ambos do Código Civil, os quais impõem a responsabilidade objetiva do empregador sobre ato de seus prepostos/empregados. Aplicável, outrossim, o disposto no artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor, o qual equipara a consumidor toda a vítima do evento, como o condomínio demandante. Deve tal ré, por tudo isso, indenizar o dano no incontroverso valor de R$ 1.749,90 (Sentença nos autos n. 1067867-23.2019.8.26.0100).

Não se deve ignorar o fato de que, como bem se sabe, em razão das recentes manifestações dos entregadores de aplicativo (#BrequeDosApps), não existe relação de trabalho entre os aplicativos e os motoristas parceiros. Inclusive, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região julgou ação civil pública (ACP n. 1000100-78.2019.5.02.0037) em que definiu como legítimo e regular o modelo de negócio dos aplicativos, dispondo inclusive que os entregadores prestam serviço na forma de trabalho autônomo.

Logo, incoerente o entendimento pela aplicação do artigo 932, inciso III, do Código Civil ao caso do aplicativo. Se a Justiça do Trabalho entende que se trata de trabalho autônomo, podendo os entregadores oferecerem seu trabalho para diversas empresas de delivery, não há que se falar em responsabilização da empresa pelos atos de seus “empregados, serviçais e prepostos”, sendo que os entregadores não se enquadram em qualquer das categorias. A sentença exarada ainda aguarda o julgamento de recurso por parte do iFood.

Causa surpresa que, atualmente, não são somente os danos causados pelos entregadores que podem ser imputados aos aplicativos. O Juizado Especial Cível de Brasília enfrentou caso em que a consumidora pleiteava indenização por encontrar uma barata no pedido realizado pelo aplicativo de entrega (autos n. 0700575-49.2020.8.07.0016). Nesse caso, a empresa gerenciadora do aplicativo foi condenada não só à restituição do valor do pedido, mas também à reparação de danos morais no valor de R$ 2.000,00 por acidente de consumo.

O mesmo ocorreu em caso no qual o consumidor encontrou uma lesma em sua comida, também pedida por meio do aplicativo de entrega. O Juizado Especial Cível de Águas Claras/DF entendeu pela responsabilização solidária do estabelecimento comercial e do aplicativo de entrega para o pagamento de danos morais no valor de R$ 2.000,00 (autos n. 0709691-04.2019.8.07.0020).

Verifica-se, portanto, que os acidentes de consumo, ainda que de culpa exclusiva do estabelecimento parceiro ou do entregador, são considerados falha na prestação de serviço também da empresa que gerencia o aplicativo que intermediou a relação. Nesse sentido, tanto em casos mais extremos, como do furto cometido pelo entregador, quanto em casos mais corriqueiros, como problemas com a comida, o aplicativo corre o risco de ser responsabilizado.

Em que pese a argumentação exposta a favor da responsabilização, há de se ponderar se, de fato, a condenação dos aplicativos em casos como esses é sempre a resposta mais adequada. Que ingerência o iFood, a Uber Eats ou a Rappi efetivamente possuem sobre o produto a ser recebido pelo consumidor?

Salutar que se evite a confusão entre uma empresa que presta serviço de transporte de alimentos e a empresa que gerencia o aplicativo.

O que a última faz é disponibilizar plataforma virtual na qual trabalhadores autônomos (entregadores) se conectam com consumidores e restaurantes para que aceitem, se assim desejarem, realizar o transporte do produto.

Portanto, o intermediador da relação não possui controle ou ingerência sobre o que está sendo fornecido ou como será fornecido, limitando-se apenas a facilitar, intermediar, a relação para todas as partes envolvidas: o consumidor efetiva o pedido por seu smartphone, o restaurante recebe os pedidos individualizados e os entregadores têm a oportunidade de aceitar entregas.

O aplicativo ainda disponibiliza sistema de avaliações a serem realizadas pelo consumidor em relação tanto ao restaurante quanto ao entregador. Se o produto é ruim, é possível deixar um comentário para evitar que outros passem pela mesma situação. Se houve algum problema com a entrega, o consumidor pode avaliar o entregador, fazendo com que seja mais difícil que ele seja aceito para prestar outros serviços.

Tendo em vista que a atividade da empresa intermediadora consiste tão somente no fornecimento dessa plataforma virtual por meio da qual as partes se comunicam para realizar o pedido, a preparação e o transporte, há que se analisar a real pertinência de condenações por “corpos estranhos” no alimento ou condutas danosas praticadas pelos entregadores.

É preciso analisar as situações com a visão atual da relação entre as partes, e não com um entendimento engessado de como as relações de consumo se davam quando da promulgação do Código de Defesa do Consumidor, em 1990. Se não há envolvimento da empresa que administra o aplicativo na preparação da refeição e não há relação jurídica de emprego ou preposição para com o entregador, é de se notar que não há base para a sua responsabilização.

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já considerou que a Uber Eats não tem responsabilidade por um “corpo estranho” na comida do consumidor, tendo em vista que apenas realiza o transporte do alimento (Recurso Cível n. 71007972573).

O Tribunal de Justiça de São Paulo também já prolatou decisão em que esclarece que o aplicativo, na qualidade de mero intermediário entre consumidores e restaurantes, sem exercer ingerência no preparo das refeições, não responde por eventuais atrasos na entrega ou cancelamento de pedido (Apelação Cível n. 1011381-15.2019.8.26.0004). No julgado, afirma a impossibilidade de aplicação da teoria da aparência à luz do Código de Defesa do Consumidor, justamente por se tratar de empresa intermediária que não compartilha funções com o restaurante fornecedor:

No presente caso, não se mostra verossímil a aplicação da teoria da aparência à luz do Código de Defesa do Consumidor, em razão das funções exercidas por cada empresa ser demonstrada de forma nítida e evidente. Apesar de o consumidor efetuar a compra através do aplicativo, se mostra claro a função do restaurante em preparar a comida e do aplicativo de entregar, posto que os valores também são pagos de forma separadas (fl. 20) (Acórdão nos autos n. 1011381-15.2019.8.26.0004)

Percebe-se, à vista disso, que o Poder Judiciário também expressa preocupação acerca dos casos em que cabe ou não a responsabilização dos aplicativos. Ao que parece, não é regra que haverá sempre a imputação de responsabilidade – a abordagem deve ser caso a caso.

Impossível negar, contudo, que já houve decisões em que o Poder Judiciário decidiu seguir a linha de responsabilização dos aplicativos por falhas na prestação de serviço de estabelecimentos parceiros ou entregadores, fazendo com que esses fornecedores, ainda que em posição de intermediadores, corram verdadeiro risco na nova configuração das relações de consumo.

Prova disso é a notícia recentíssima de que o Procon Estadual de São Paulo impôs sanção administrativa em face do iFood no valor de 2,5 milhões de reais pelo chamado “golpe do entregador” ou “golpe do delivery”. A fraude consiste na cobrança, por parte do entregador, de taxa adicional quando chega ao destino, mas se utilizando de máquina de cartão com o visor quebrado. Como não estão visíveis os dados da cobrança, o perpetrador da manobra insere valor muito superior ao informado.

A multa, contudo, não foi imposta somente por isso. Segundo o órgão administrativo, o iFood infringe o Código Consumerista ao permitir cláusulas abusivas aos consumidores, como a permissão aos estabelecimentos parceiros para impor um valor mínimo para finalização do pedido e a afirmação de que não se responsabiliza pela prestação do serviço contratado pelo consumidor (infrações aos incisos I e IV do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor).

Como foi possível notar, persiste a incerteza acerca da forma com a qual o Poder Judiciário e os órgãos administrativos de proteção do consumidor tratam os aplicativos de intermediação. Cabe às empresas que os administram que demonstrem a posição de real intermediador da relação de consumo e a consequente impossibilidade de evitar eventual fato ou vício do produto ou serviço passível de indenização.

O tema é novo e a jurisprudência ainda não está pacificada, o que estabelece uma verdadeira janela de oportunidade para que se determine como o direito brasileiro tutelará a atuação do sistema de aplicativos de delivery no mercado de consumo.

Por

Michel Scaff Junior

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Especialista em Direito do Consumidor. Graduado em Direito pelo CESUSC. Membro do Tribunal de Justiça […]

Michel Scaff - Menezes Niebuhr

Por

Vitor Esmanhotto da Silva

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Pós-graduado em Relações de Consumo e Compliance nos Mercados pela PUC/PR. Membro da Comissão de […]

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