12 | 01 | 2024

A antecipação de efeitos restritivos à propriedade de não indígenas na pendência de conclusão o processo de demarcação de terras indígenas

Resumo

O artigo trata da natureza e dos efeitos jurídicos do processo administrativo de demarcação de terras indígenas. O problema investigado consiste em saber se é juridicamente viável impingir restrições aos direitos de não indígenas eventualmente estabelecidos em áreas reivindicadas como de ocupação tradicional por indígenas enquanto pendente de conclusão o processo de demarcação de terras indígenas. São indicados, basicamente, dois argumentos que subsidiariam esse tipo de providência, a saber, (i) o fato dos índigenas possuírem direitos originários sobre as terras por si ocupadas e que, em função disso, (ii) a demarcação de terras indígenas é providência meramente declaratória. Demonstra-se, na presente análise, o conteúdo material e a finalidade do processo demarcatório, bem como se esclarece o fato de que o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas não dispensa a comprovação do preenchimento dos requisitos legais para o reconhecimento deste direito. Conclui-se ser antijurídica a precipitação, a abreviação ou a dispensa do processo demarcatório para efeito de se impor medidas restritivas aos direitos de não indígenas, especialmente se pendente de conclusão o processo demarcatório. O método empregado foi dedutivo, a partir de pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: demarcação de terras indígenas; devido processo legal administrativo; direito originário.

Abstract


The article deals with the nature and legal effects of the administrative process of demarcating indigenous lands. The problem investigated is whether it is possible to impose restrictions on non-indigenous eventually established in areas claimed as traditionally occupied by indigenous people, while the process of demarcating indigenous lands is pending completion. Basically, two arguments are indicated that would subsidize this type of measure, namely, (i) the fact that indigenous people have original rights over the lands they occupy and that, as a result, (ii) the demarcation of indigenous lands is a measure. merely declaratory. In the present analysis,  it is demonstrated the material content and the purpose of the demarcation process, as well as the fact that the original right to lands traditionally occupied by indigenous people does not dispense the proof of fulfillment of the legal requirements for the recognition of that right. It is concluded that is anti-legal the precipitation, abbreviation or exemption of the demarcation process in order to impose restrictive measures on non-indigenous rights while the demarcation process is pending completion. The method used was deductive, based on bibliographic research.

Keywords: Demarcation of indigenous lands; administrative due legal process; original right.

Sumário: 1) Introdução; 2) O procedimento e a finalidade do processo de demarcação de terras indígenas; 3) O problema decorrente do possível comprometimento, na pendência da conclusão do processo demarcatório, da preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos indígenas e das condições necessárias ao desenvolvimento de sua atividade produtiva e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições; 4) A conclusão do processo demarcatório não é mera formalidade; 5) O direito originário dos índios às terras por si tradicionalmente ocupadas não significa a dispensa da comprovação dos requisitos legais ao reconhecimento da ocupação tradicional; 6) Precedentes judiciais destacados que reconhecem a inviabilidade da antecipação de efeitos restritivos a direitos de não indígenas ocupantes ou proprietários de imóveis localizados sobre a área reivindicada como terra indígena, na pendência da conclusão do processo de demarcação; 7) Considerações finais. Referências bibliográficas.

1 Introdução

É incontroverso o dever atribuído ao Estado de proteger a organização social, os costumes, as línguas, as crenças, as tradições e as terras dos povos indígenas. Mais que um postulado constitucional, a assistência, a proteção e a promoção dos direitos dos indígenas decorre de um imperativo ético, uma medida de justiça em face da perseguição e exclusão que os povos não indígenas e suas organizações sociais e políticas historicamente impuseram àqueles.

A proteção e a promoção dos direitos dos indígenas, todavia, deve se dar no estrito contorno definido pela ordem jurídica vigente e nunca às custas da violação de direitos dos não indígenas.

Trata-se de premissa importante. Especificamente em relação à proteção das terras indígenas, a ânsia pela devida reparação e compensação das injustiças historicamente impingidas aos índios tem levado, em alguns casos, à abreviação do devido processo legal, antecipando-se efeitos restritivos à propriedade privada dos não indígenas mesmo enquanto ainda pendente a conclusão de processos demarcatórios de terras indígenas.

O raciocínio, basicamente, é o seguinte. A Constituição da República assegura aos índios o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam; as terras por eles tradicionalmente ocupadas, além de destinadas à sua posse permanente, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. O processo de demarcação dessas terras, diante desse contexto, seria meramente declaratório. Na pendência da conclusão dessa formalidade, meramente declaratória, o Poder Público deveria adotar medidas tendentes a proteger o direito dos indígenas sobre suas terras, impedindo a perpetuação de ocupações não indígenas na área, em qualquer modalidade.

Decisões judiciais têm sido prolatadas, nesse contexto, para impor restrições a direitos de não indígenas eventualmente estabelecidos na área reivindicada como terra indígena. Se é certo que essas providências são legítimas após o reconhecimento formal e definitivo do direito dos indígenas sobre a terra por eles reivindicada como de ocupação tradicional, o assunto é controverso enquanto essa condição (reconhecimento formal e definitivo do direito à terra indígena) não se concretiza.

O presente artigo examina justamente a juridicidade de restrições aos direitos dos não indígenas enquanto ainda pendente de conclusão o processo de demarcação de terras indígenas. A hipótese trabalhada é no sentido de que é contrária à ordem jurídica vigente a antecipação de efeitos restritivos aos direitos de propriedade dos não indígenas enquanto ainda pendente de conclusão o processo de demarcação. Através de pesquisa bibliográfica realizada pelo método dedutivo, busca-se, neste ensaio: (i) examinar o procedimento e compreender a finalidade das etapas e do próprio processo de demarcação de terras indígenas; (ii) apontar a existência de divergência jurisprudencial acerca da (im)possibilidade de antecipação de restrições à propriedade privada enquanto pendente a conclusão do processo de demarcação; (iii) identificar os argumentos que subsidiam o entendimento da inviabilidade jurídica de tais medidas.

2 O procedimento e a finalidade do processo de demarcação de terras indígenas

A norma-base que confere aos indígenas os direitos às terras por eles tradicionalmente ocupadas é o artigo 231 da Constituição Federal[1]. Dela se extrai que não é todo e qualquer espaço ocupado por indígenas que faz jus ao reconhecimento como terra indígena. A Constituição Federal dispõe que o Estado deve demarcar e proteger as terras “tradicionalmente ocupadas” pelos indígenas que são, na dicção do §1º do seu artigo 231:

[…] As por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Disso se deduz que a mera reivindicação, da comunidade indígena ou de entidades representativas de seus interesses, de dado espaço como terra indígena não é suficiente para o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação, e por consequência para sua qualificação como tal, com todos seus consectários legais[2].

Da apresentação do pleito deve-se seguir um conjunto preordenado de atos administrativos destinados a examinar, investigar e confirmar, comprovadamente, com adequado grau de segurança jurídica, a satisfação do requisito da tradicionalidade da ocupação[3].

Esses atos se sucedem em um processo administrativo específico, previsto no artigo 19 da Lei n. 6.001/1973 (Estatuto do Índio)[4] e regulamentado pelo Decreto n. 1.775/1996. Das etapas do processo destaca-se o “estudo antropológico de identificação” que compreende, além dos levantamentos antropológicos, análises de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação (artigo 2º do Decreto n. 1.775/1996). O estudo de identificação deve dar origem a um “relatório circunstanciado de identificação e delimitação”. Esses documentos, em essência, apontam se a ocupação satisfaz ou não o requisito de tradicionalidade, inclusive nos contornos delimitados pelo Supremo Tribunal Federal na Petição 3.388/RR, para que se possa prosseguir com o processo demarcatório.

Após a aprovação do relatório circunstanciado pela Funai e sua publicação é instaurada a etapa de contraditório, em que os interessados e afetados podem se manifestar para “pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior” (§8º do artigo 2º do Decreto n. 1.775/1996).

O processo é, então, enviado ao Ministério da Justiça para adoção de uma das três alternativas possíveis: (1) declaração, por portaria, dos limites da terra indígena determinando a demarcação; (2) realização de diligências complementares para adequada instrução do processo; (3) desaprovação da identificação (§10 do artigo 2º do Decreto n. 1.775/1996).

Se o processo estiver apto a avançar, o mesmo deve ser encaminhado pela Presidência da República para homologação por decreto (artigo 5º do Decreto n. 1.775/1996) e, depois, providenciado o registro da demarcação no cartório imobiliário e Secretaria de Patrimônio da União (artigo 6º do Decreto n. 1.775/1996).

À exceção do ato de homologação, nenhuma das etapas antecedentes do processo de demarcação, isoladamente, é suficiente para atribuir, à ocupação reivindicada pelos indígenas, o status de terra indígena. Desde o estudo antropológico de identificação, passando pelo relatório circunstanciado de identificação e delimitação, pela etapa de contraditório, pela análise do Ministério da Justiça e pela avaliação final da Presidência da República, todos esses atos, em conjunto, possuem o complementar escopo de confirmar se a ocupação reúne os requisitos constitucionais para ser qualificada como tradicional, nos termos definidos no artigo 231 da Constituição Federal.

O estudo de identificação, o relatório circunstanciado, a análise do Ministério da Justiça e a avaliação final pela Presidência da República são atos administrativos complementares produzidos por diferentes órgãos e entidades administrativas que, somados, prestam-se a dar certeza (ou o mais próximo disso que a ciência, a técnica e as provas permitem chegar) justamente à conclusão pela tradicionalidade da ocupação.

A decisão final de demarcação, em virtude do exposto, consubstancia-se num ato administrativo complexo[5]. Como aponta a doutrina administrativista:

Os atos administrativos são complexos quando a vontade da Administração se produz pela conjugação da atuação de órgãos distintos, de molde que cada sujeito participante desempenha atividade qualitativamente diversa da dos demais (JUSTEN FILHO, 2018, p. 299).

Em síntese, no processo de demarcação, os atos produzidos por diferentes órgãos e entidades não subsistem isoladamente. Por isso que, insista-se, até que ocorra a homologação final da demarcação pela Presidência da República é indevido e precipitado concluir pela tradicionalidade da ocupação, ainda que elementos dessa tradicionalidade tenham sido eventualmente colhidos ou reconhecidos nas etapas anteriores.

Essa, aliás, é uma consideração relevante. Inclusive o ato de homologação é provido de importante conteúdo material, dado que nele se confirma o cumprimento dos requisitos exigidos em lei (formais e materiais) para a prática do ato; a recusa da homologação, em sentido contrário, pressupõe o não cumprimento daqueles. Disso se retomará adiante.

O essencial, até aqui, é o seguinte: para se afirmar pelo direito dos indígenas sobre a terra por eles ocupada é indispensável a efetiva conclusão (por homologação) do processo de demarcação, dado que o cumprimento dos requisitos de tradicionalidade e a observância ao devido processo legal é atestado e confirmado, preordenada e complementarmente, por distintas e sucessivas análises feitas por diferentes órgãos.

3 O problema decorrente do possível comprometimento, na pendência da conclusão do processo demarcatório, da preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos indígenas e das condições necessárias ao desenvolvimento de sua atividade produtiva e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições

A morosidade do processo de demarcação pode ser (e normalmente o é) um grave problema na perspectiva dos indígenas. É só a partir da homologação da demarcação que se deflagram os atos necessários para a desocupação eventual de não índios sobre o território. Os títulos de propriedade dos não indígenas prevalecem válidos, nos termos do §2º do artigo 1.245 do Código Civil, até a declaração de invalidade e seu cancelamento[6], que ocorreria (em situação de normalidade) com a homologação da terra indígena e sua anotação no Registro de Imóveis. A rigor, enquanto perdurarem os efeitos dos títulos de propriedade dos não índios, esses detêm o pleno domínio da propriedade[7]; não podem coexistir dois títulos válidos sobre a mesma área.

Portanto, a demora do reconhecimento formal do direito dos indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas permite, entre seus possíveis efeitos, a continuidade do uso do espaço pelos não indígenas. Esse uso da terra, por não índios, pode comprometer a própria finalidade de se assegurar aos índios os direitos sobre os territórios por si tradicionalmente ocupados.

Recorde-se que o propósito da proteção das terras indígenas é, de acordo com a intelecção do §1º do artigo 231 da Constituição Federal, prover condições para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos indígenas e das condições necessárias ao desenvolvimento da sua atividade produtiva e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. A consolidação de usos rurais ou urbanos por não índios no local, na pendência do processo de demarcação, é capaz de esvaziar, portanto, a finalidade e utilidade da demarcação nos termos delineados pelo §1º do artigo 231 da Constituição Federal.

A demora da União em tramitar o processo de demarcação pode, nesse contexto, ser objeto de discussão judicial[8]. E nesse cenário é provável que, a pretexto de se preservar o resultado útil da ação, sejam deduzidos pedidos para restringir, ainda que provisoriamente, direitos dos não indígenas relacionados ao uso, gozo e fruição das propriedades imobiliárias, tudo de modo a evitar o comprometimento da finalidade do processo de demarcação.

O raciocínio é o seguinte: se providências não forem tomadas mesmo na pendência da conclusão do processo de demarcação, a alteração do ecossistema pelos não índios pode inviabilizar, após a homologação da demarcação, o aproveitamento do espaço pelos indígenas para o desenvolvimento de suas atividades produtivas e das necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Pense-se, por exemplo, na consolidação do perímetro urbano sobre a área ou no aproveitamento substancial da cobertura vegetal nativa existente para fins rurais.

Aqui se caracterizaria a urgência necessária para a antecipação dos efeitos do processo demarcatório. É nesse contexto que se costuma cogitar, dentre medidas restritivas aos direitos de propriedade dos não índios, a averbação da informação do processo demarcatório no registro imobiliário de imóveis, a vedação de novas alterações antrópicas e construções na área, o bloqueio de matrículas, até, eventualmente, o desfazimento de benfeitorias já realizadas.

Os argumentos jurídicos para fundamentar tais providências são, basicamente, dois, diretamente relacionados entre si. Como o direito dos índios sobre as terras por si tradicionalmente ocupadas é originário, isto é, ele existiria independentemente de demarcação da terra indígena. A conclusão da demarcação, uma providência meramente formal, declaratória, não poderia ser empecilho para a asseguração dos direitos dos indígenas.

O acórdão prolatado no Agravo de Instrumento n. 0120304-63.2000.4.01.0000, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ilustra bem o raciocínio. Naquela ocasião, o alegado reconhecimento da tradicionalidade da ocupação indígena não teria decorrido da regular conclusão de processo demarcatório. O trecho da decisão agravada citado como fundamento do acórdão pelo relator em seu voto sintetiza o argumento:

Muito embora a área não esteja demarcada pela União, esse fato não retira da nação indígena o seu direito, pois o direito à terra do índico [sic] é um direito congênito, imprescritível, não dependendo, portanto, de ato constitutivo, mas apenas declaratório […]

Em decorrência dos estudos entranhados nos autos, no mínimo posso dizer que há suficientes indícios de que se trata de área tradicionalmente ocupada pelos índios Paresi. O fato de não mais residirem na área, porque foram removidos ou expulsos, não desnatura a natureza dessa mesma área, que continua sendo imprescindível para a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.[9]

O raciocínio, respeitosamente, é inconsistente. O fato da demarcação ser um declaratório e dos índios possuírem direito originário sobre às terras por si tradicionalmente ocupadas não significa dizer que o processo é uma mera formalidade. O processo demarcatório tem relevantíssimo conteúdo material, que é a comprovação e certificação do preenchimento dos requisitos (estabelecidos em lei e definidos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal) para o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação e dos direitos dos índios sobre a terra. Qualquer efeito que pretenda se antecipar dessa certificação pode se revelar intoleravelmente prematuro. É disso que se tratará nas próximas sessões.

4 A conclusão do processo demarcatório não é mera formalidade. Avaliações técnicas, manifestações da Funai ou do Ministério da Justiça não são suficientes para, isoladamente, deduzir o direito dos indígenas à terra reivindicada como indígena

            Um pressuposto fundamental para sustentar a imposição de restrições aos não índios enquanto ainda pendente de conclusão o processo de demarcação é reputar como suficiente para reconhecer o direito dos indígenas à existência de uma avaliação técnica que eventualmente aponte a tradicionalidade da ocupação.

            A partir de um elemento técnico (às vezes só pretensamente técnico) indicando a tradicionalidade da ocupação, a percepção parece ser de que as etapas subsequentes do processo demarcatório consistem em mera formalidade, sem cunho material relevante. O raciocínio, levado ao extremo, dispensaria até mesmo que esse elemento técnico fosse produzido dentro de um processo de demarcação. Pareceres, laudos ou congêneres apresentados pela acusação, em processos judiciais, seriam suficientes para essa finalidade. Esses elementos forneceriam a necessária verossimilhança das alegações para subsidiar o pleito contra não indígenas, mesmo enquanto pendente de conclusão o processo demarcatório.

            Essa percepção parte de juízos preestabelecidos enviesados ou, em alguma medida, distorcidos da realidade.

Enviesados[10] quando supõem ou assumem que um parecer eventualmente favorável à pretensão dos indígenas representa a defesa do interesse público (representação do bem), em contraposição ao interesse privado de não indígenas (representação do mal). E mais, que nessa condição, de representantes do bem, de guardiões do interesse público, tais afirmações são verossímeis bastante para retratar a realidade dos fatos. 

Distorcidos da realidade quando não cogitam a possibilidade da conclusão técnica de tradicionalidade da ocupação, justamente por expressar o trabalho de seres humanos (falíveis, por essa mera condição), ser equivocada.

Tanto em um quanto em outro caso, a ideia de se combinar a manifestação de  distintas instâncias sobre o mesmo fenômeno – apuração e confirmação da tradicionalidade da ocupação – parte, justamente, da premissa de que as análises técnicas e manifestações, mesmo que da Funai, podem, eventualmente, não ser suficientemente neutras, idôneas e suficientemente embasadas para informar a decisão final. As etapas subsequentes do processo de demarcação prestam-se, exatamente, a neutralizar ou minimizar a possibilidade de avaliações tendenciosas ou equivocadas informarem de forma decisiva a decisão administrativa final.

Por essa razão, só na sequência dos estudos realizados no âmbito da Funai é que se instaura a fase do contraditório, a ser resolvida por outra instância (supostamente dotada de maior neutralidade) que é o Ministério da Justiça. E, ainda na sequência, é que se justifica uma última avaliação, ainda mais abrangente e distante dos fatos, a ser realizada em sede de homologação do procedimento pela Presidência da República.

Se um estudo técnico fosse suficiente para confirmar a tradicionalidade da ocupação, efetivamente as etapas posteriores (ou todas as etapas, no extremo) poderiam ser dispensáveis. Elas não são dispensáveis justamente porque se prestam a reduzir as chances da tomada de decisões tendenciosas, mal ou deficientemente informadas.

Nesse contexto, os dois juízos subsequentes ao trabalho técnico antropológico (quais sejam, a manifestação do Ministério da Justiça e da Presidência) são fundamentais para se atribuir o maior grau de segurança possível à futura decisão do processo de demarcação.

A decisão do Ministério da Justiça reexamina o trabalho realizado na Funai e pondera os elementos de informação apresentados pelos particulares em geral, na etapa de contraditório, a respeito do estudo e do relatório circunstanciado de identificação e delimitação. Por essência, é nesse momento, no contraditório, que o trabalho técnico é posto à prova. Esse teste é que permite, inclusive, validar o trabalho técnico como uma proposição científica. Os terceiros em geral podem, na etapa de contraditório, colocar em cheque as premissas, dados, informações, metodologia e conclusões aportadas pelos técnicos no processo de demarcação. Daí a essencialidade da etapa: o estudo e o relatório circunstanciado de identificação e delimitação devem “sobreviver” à impugnação de terceiros; se algum de seus elementos relevantes for falseado, a conclusão que ele aporta não é uma conclusão necessariamente científica.

Recorde-se que é da essência do método científico buscar não apenas evidências para fundamentar a confirmação da hipótese, mas, sobretudo, evidências de que ela está errada[11].O enunciado não submetido à falseabilidade não se pode pretender científico; trata-se, sim, de uma percepção subjetiva, uma convicção, uma crença.Não por outra razão, Karl Popper (1975, p. 43) afirma que “[…] uma experiência subjetiva, ou um sentimento de convicção, jamais pode justificar um enunciado científico e de que, dentro dos quadros da ciência, ele não desempenha papel algum”.

E, respeitosamente, opinião ou crença não é bastante para instruir ou determinar a demarcação de terras indígenas.

Igual relevância deve-se atribuir ao juízo realizado no âmbito da Presidência da República. A atribuição legal para demarcar a terra indígena carrega consigo o poder-dever, do Presidente da República, de avaliar a prática dos atos antecedentes que informam a decisão final de demarcação. Essa avaliação envolve não só juízo sobre aspectos formais, mas também materiais. Trata-se da possibilidade de a autoridade competente verificar equívocos ou irregularidades produzidas no âmbito da Funai (pense-se na produção de um relatório por profissionais impedidos ou suspeitos, ou a negativa de levar em consideração uma prova, robusta, contrária à pretensão dos indígenas, por exemplo) ou do próprio Ministério da Justiça (toma-se, também como exemplo, a desconsideração injustificada de relevantes argumentos de impugnação apresentados por terceiros na etapa de contraditório). Esse juízo, do Presidente da República (que é a autoridade competente para decretar a terra como indígena) justifica-se, sobretudo, diante do fato de que ele não pode ser compelido a praticar um ato contrário à lei, em qualquer dimensão, ainda que induzido por decisões de outras entidades ou órgãos que lhe assessoram.

Daí que reduzir as etapas posteriores dos estudos da Funai à mera formalidade mostra-se equivocado. Repita-se: todas as etapas, em conjunto e de forma complementar, prestam-se a garantir maior acerto e segurança jurídica à decisão final de demarcação, inclusive e especialmente naquilo que envolve a caracterização do requisito da tradicionalidade da ocupação. Por isso que a supressão de uma ou de outra etapa não só torna prematuro a dedução da existência de direito dos indígenas sobre a área por eles reivindicada, mas desautoriza essa conclusão, para qualquer efeito.

5 O direito originário dos índios às terras por si tradicionalmente ocupadas não significa a dispensa da comprovação dos requisitos legais ao reconhecimento da ocupação tradicional

            Uma confusão aparentemente comum na defesa da antecipação de efeitos restritivos aos não indígenas enquanto pendente de conclusão o processo demarcatório reside na circunstância de os índios possuírem direito originário à terra por si tradicionalmente ocupada, sendo inoponível a este os títulos de propriedade e posse dos não indígenas.

A confusão que se faz é deduzir, do direito originário dos indígenas à terra por si tradicionalmente ocupada, a desnecessidade de conclusão do processo demarcatório para fazer surtir efeitos dessa condição (terra indígena).

Dizer que os índios possuem direito originário às terras que tradicionalmente ocupam não significa dispensar a necessidade de comprovação dos requisitos para o reconhecimento desse direito, especialmente na qualidade e extensão pretendidas pelos indígenas. O direito originário se refere ao modo de aquisição da propriedade, que de fato independe e é oponível a qualquer outro título (diferentemente do que ocorre no modo de aquisição derivado)[12].

Isso não significa, em absoluto, que todo espaço reivindicado por indígenas como seu território de fato assim o seja, pelo menos do ponto de vista jurídico-constitucional. Do contrário, o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas não teria qualquer sentido ou valia; bastaria a manifestação unilateral dos índios para que a propriedade fosse originalmente por si adquirida. A demarcação tem a finalidade de confirmar a legitimidade da pretensão indígena, o cumprimento dos requisitos constitucionais e legais, além de indicar, precisamente, os limites dessa pretensão.

Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2004, p. 692 e seguintes) explica:

Tais direitos são originários. Não se trata de direitos adquiridos, pois não pressupõem uma incorporação ao patrimônio (econômico e moral), embora, ressalvadas as peculiaridades constitucionais, devam ser tratados em harmonia com esses. Cabe aqui a mencionada noção de indigenato, entendido por João Mendes Junior como título distinto da ocupação (ob. cit., p. 49) e que tem por base a noção de habitat, equilíbrio ecológico entre o homem e seu meio. Nesse sentido, não é fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior depende de requisitos que o legitimem […].

Ademais, a demarcação não engendra nenhum direito às terras, pois tal direito é declarado originário (antecede à demarcação). Mas tem o sentido de conferir certeza e segurança ao exercício do direito, no que se refere ao seu conteúdo (faculdades) e objeto (terras ocupadas tradicionalmente). […]

Problema distinto deste é o do sentido do próprio ato de demarcar. Sem este ato, o exercício dos direitos originários (faculdade) fica incerto quanto ao seu objeto (as terras tradicionalmente ocupadas). Assim, se a demarcação não legitima o título (ele é anterior à demarcação), só pela demarcação é possível determinar quais as terras objeto do direito. […]

Mutatis mutandi, a demarcação funciona como uma condição para o exercício do direito reivindicado pelos indígenas, de plena posse da área. Essa condição (conclusão do processo demarcatório) assegura que a terra em questão pertence, originariamente, aos indígenas. Enquanto essa certificação não ocorre, é juridicamente inviável o exercício dos direitos de posse pelos indígenas, pelo menos na extensão pretendida enquanto terra indígena[13].

6 Precedentes judiciais destacados que reconhecem a inviabilidade da antecipação de efeitos restritivos a direitos de não indígenas ocupantes ou proprietários de imóveis localizados sobre a área reivindicada como terra indígena, na pendência da conclusão do processo de demarcação

            Ainda que para efeito retórico, revela-se útil a análise da fundamentação emprestada a alguns precedentes destacados em que os Tribunais reconheceram a antijuridicidade da antecipação de efeitos restritivos de direitos de não indígenas na pendência da conclusão do processo de demarcação[14].

Nos autos do Agravo de Instrumento n. 5027343-38.2017.4.04.0000/RS, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região debruçou-se sobre a pretensão da Funai de ser imitida na posse de imóvel localizado em área que já havia sido declarada como terra indígena pela Portaria n. 3.895 do Ministério da Justiça.

Na ocasião do julgamento do agravo de instrumento, a relatora Desembargadora Federal Vivian Josete Pantaleão Caminha levou em consideração o fato de já haver sido realizado inclusive o relatório final de levantamento fundiário cadastral da terra indígena, entendendo, no entanto, que a ausência de homologação pelo Presidente da República impedia a antecipação de etapas e o reconhecimento da posse da área pelos indígenas.[15]

Já nos autos da Apelação/Reexame Necessário n. 5003370-33.2013.404.7004/PR, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a União, Funai e Ministério Público Federal recorreram da sentença que havia reintegrado não indígenas em imóveis alegadamente esbulhados por índios. A Funai, apesar de reconhecer que os trabalhos de identificação e delimitação das terras indígenas não haviam sido concluídos, defendeu a notoriedade da tradicionalidade da ocupação, supostamente reconhecida por estudos e levantamentos históricos já produzidos pela literatura especializada.

O voto do Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, relator originário dos recursos, foi no sentido de que ao mesmo tempo em que a Funai não fez prova de que o imóvel se localizava dentro de terra indígena, os não indígenas também não fizeram prova contrária, no sentido de que seus imóveis não se localizavam em terra tradicionalmente ocupada pelos índios, situação que determinaria o julgamento pela improcedência dos pedidos. A Desembargadora Federal Marga Inge Barth Tessler instaurou divergência, que prevaleceu no julgamento, no sentido de que enquanto a Funai não promovesse os estudos antropológicos próprios, “os legítimos proprietários devem permanecer em suas terras”. A maioria reputou que bastava, para reconhecer o direito à reintegração, que os não indígenas comprovassem o exercício da posse anterior, o que foi feito, dispensando-os de produzir prova negativa da ausência de tradicionalidade da ocupação indígena na região.[16]

Por fim, nos autos da Apelação Cível n. 2005.04.01.000728-1, também do Tribunal Regional da 4ª Região, a ação de reintegração de posse movida por não indígenas contra alegado esbulho indígena contou com laudo pericial produzido, na primeira instância, que teria confirmado a posse indígena da área.

O acórdão, em remissão aos termos da sentença que foi mantida, reputou que o reconhecimento dos direitos dos indígenas dependia da efetiva conclusão do processo demarcatório, providência considerada indispensável para privar os não indígenas dos bens até então tidos como seus. O voto destaca um argumento pragmático, no sentido de que, se permitida a posse indígena independente dos atos do processo de demarcação, produzir-se-ia intolerável insegurança jurídica. [17]

Os precedentes destacados, apesar de referentes a ações possessórias, tem ratio em tudo aplicável ao argumento ora defendido. Ainda que tomados a título ilustrativo, os julgados indicam que têm guarida no Judiciário o entendimento de ser indispensável a conclusão do processo demarcatório para o acolhimento da pretensão de indígenas sobre a terra por eles eventualmente ocupadas.

7 Considerações finais

O presente estudo pretendeu investigar a juridicidade da antecipação de efeitos restritivos à propriedade de não indígenas, em favor dos índios, enquanto ainda pendente a conclusão de processos demarcatório de terras indígenas.

Após o exame do procedimento e a exposição da finalidade das etapas e do próprio processo de demarcação de terras indígenas, tratou-se de sumariar os principais fundamentos lançados para a defesa da antecipação de efeitos do processo demarcatório, especialmente o fato dos direitos dos indígenas serem originários sobre suas terras e, por isso, a demarcação se tratar de providência meramente declaratória.

Defendeu-se que os argumentos declinados pela antecipação de efeitos ou pela dispensa do processo demarcatório não preponderam ou prevalecem sobre a finalidade e a natureza material da decisão final do processo demarcatório, bem como que o direito originário dos índios às terras por si ocupadas não dispensa, em absoluto, a demonstração do preenchimento dos requisitos legais para caracterização da alegada tradicionalidade.

Concluiu-se, nessa linha de raciocínio, ser juridicamente inválida a abreviação ou a dispensa das etapas do processo de demarcação para se antecipar a restrição de direitos de não indígenas enquanto pendente de conclusão o referido expediente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGHIARIAN, H. Curso de Direito Imobiliário. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.

BADIN, L. A. Sobre o conceito constitucional de terra indígena. Arquivos do Ministério da Justiça, Brasília, v. 51, p. 127-141, 2006.

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BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AC 2005.04.01.000728-1. Terceira Turma, Relator Desembargador Nicolau Konkel Júnior, D.E. 16/12/2009.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AG 5027343-38.2017.4.04.0000. Quarta Turma, Relatora Desembargadora Vivian Josete Pantaleão Caminha, juntado aos autos em 29/09/2017.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. APELREEX 5003370-33.2013.4.04.7004. Órgão Julgador: Terceira Turma, Relator Desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, juntado aos autos em 23/05/2014.

FERRAZ JÚNIOR, T. S. A demarcação de terras indígenas e seu fundamento constitucional. Revista brasileira de direito constitucional, v. 3, n. 1, p. 689-699, 2004.

FREITAS, J. A hermenêutica jurídica e a ciência do cérebro: como lidar com os automatismos mentais. Revista da AJURIS, v. 40, n. 130, p. 223-244, 2013.

GALVÃO, I. Terras indígenas. In: BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Doutrina: Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa. Brasília: STJ, 2005. v. 15. p. 473-492.

JUSTEN FILHO, M. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2018.

POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2013.

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SANTOS, J. A. dos. Contraditório administrativo na demarcação de terras indígenas. 20 fev. 2020. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/27592/contraditorio-administrativo-na-demarcacao-de-terras-indigenas. Acesso em: 20 fev. 2020.


[1] “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ‘ad referendum’ do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.”

[2] É o que defende Luiz Armando Badin (2006, p. 137): “Obviamente, não se pode chegar ao exagero de afirmar que os próprios índios devem definir, de modo unilateral, quais as terras que tradicionalmente ocupam. Por isso é que para tal definição não se pode prescindir do conhecimento científico, tampouco da oitiva das partes interessadas, especialmente dos próprios índios”.

[3] O procedimento de demarcação serve, precipuamente, para confirmar a tradicionalidade da ocupação, necessária porque, na percepção de Ilmar Galvão (2005, p. 491), “não há considerar terra de índios aquelas em que se encontrem eles, em dado momento histórico, em caráter eventual ou por efeito de deslocamento recente. O índio, na verdade, não está investido do poder de transformar em terra pública federal aquela em que vai pondo os pés, por efeito de eventuais perambulações, como se fossem os reis Midas dos tempos modernos, numa versão indígena e fundiária.”

[4] “Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.

§ 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras.

§ 2º Contra a demarcação processada nos termos deste artigo não caberá a concessão de interdito possessório, facultado aos interessados contra ela recorrer à ação petitória ou à demarcatória”.

[5] “A demarcação de terras indígenas é ato administrativo complexo, demandando atuação do órgão federal de assistência ao índio, do Ministro da Justiça e de homologação, via decreto, do Presidente da República.” (SANTOS, 2020).

[6] “Art. 1.245 […] § 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”.

[7] “O ato de registro de imóveis – de natureza essencialmente constitutiva – atribui definitividade, exclusividade e oponibilidade do titular do registro, em face de terceiros, isto é, a qualidade inquestionável do domínio ali afirmado, declarado, em face deste determinado ente de direitos, natural ou jurídico, privado ou público” (AGHIARIAN, 2009, p. 61).

[8] A título de exemplo, toma-se o Recurso Especial n. 1114012/SC, relatado pela Ministra Denise Arruda em 10/11/2009. Na ocasião, apesar de se reconhecer que o procedimento de demarcação é de “alta complexidade, que demanda considerável quantidade de tempo e recursos diversos para atingir os seus objetivos” e “conquanto não estejam estritamente vinculadas aos prazos definidos na referida norma, não podem permitir que o excesso de tempo para o seu desfecho acabe por restringir o direito que se busca assegurar”. No caso concreto, reputou-se que o transcurso de aproximadamente 10 anos do processo administrativo sem conclusão revelaria violação ao princípio da duração razoável do processo. Entendeu-se, na ocasião, como viável e estipulação judicial de prazo (vinte e quatro meses) para a identificação e demarcação das terras indígenas em questão ou, se inexistente a tradicionalidade das terras ocupadas pelos índios, para a criação de reservas indígenas (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1114012/SC. Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 10/11/2009, DJe 01/12/2009).

[9] PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TERRAS INDÍGENAS. LIMINAR. REQUISITOS: FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA. 1. A Constituição Federal reconhece aos índios os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, assim consideradas as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (art. 231, caput e 11). 2. Verificado, mediante estudos técnicos, que a área objeto do litígio caracteriza-se como tradicionalmente ocupada por silvícolas, satisfeitos estão os requisitos para o deferimento da medida liminar determinando a suspensão de obras de construção de hidrelétrica em tais terras. 3. Agravo improvido. (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. AG 0120304-63.2000.4.01.0000. Juiz Daniel Paes Ribeiro, Sexta Turma, DJ 17/09/2001).

[10] Sobre vieses cognitivos no âmbito jurídico, leia-se Juarez Freitas (2013, p. 231-232): “Nesse panorama, o irracionalismo arbitrário resulta do predomínio – como sucede em julgamentos vergonhosos – que o sistema primitivo confere às conclusões (falsas) que confirmam crenças (espúrias) subjacentes, incorrendo naquilo que se chama de enviesamento da confirmação, quando o cérebro procura ver somente aquilo que quer ver no objeto, hipnotizado por impressões iniciais, aparências, vícios e inclinações.

Justamente por isso, temerário subestimar que o sistema primitivo gratifica- se pela coerência (falsa) das estórias que consegue criar, nada importando a quantidade e a qualidade dos dados coligidos. Quer dizer, a coerência torna-se cúmplice da perpetuação do erro. Assim, se o intérprete não estiver compenetrado em checar os dados em fontes de informações independentes, a coerência jurídica, tão valorizada (por relevantes considerações), não encontrará respaldo no sistema reflexivo, que terá sido eclipsado pelo sistema primitivo, vítima de excessiva confiança nas próprias crenças. Vítima, por igual, da ojeriza às dúvidas e da propensão de suprimir ambiguidades por decreto, no mau vezo de só perceber o que quer”.

[11] “[…] a objetividade dos enunciados científicos reside na circunstância de eles poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste” (POPPER, 2013, p. 41).

[12] É o que assentou o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Petição 3.388. Do voto do relator Ministro Carlos Ayres colhe-se: “O termo ‘originários’ a traduzir uma situação jurídico subjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não índios. Termo sinônimo de primevo, em rigor, porque revelador de uma cultura pré-europeia ou ainda não civilizada. A primeira de todas as formas de cultura e civilização genuinamente brasileiras, merecedora de uma qualificação jurídica tão superlativa a ponto de a Constituição dizer que “os direitos originários” sobre as terras indígenas não eram propriamente outorgados ou concedidos, porém, mais que isso, “reconhecidos” (parte inicial do art. 231, caput); isto é, direitos que os mais antigos usos e costumes brasileiros já consagravam por um modo tão legitimador que à Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 não restava senão atender ao dever de consciência de um explícito reconhecimento. Daí a regra de que “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto a benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”. Pelo que o direito por continuidade histórica prevalece, conforme dito, até mesmo sobre o direito adquirido por título cartorário ou concessão estatal.” (BRASIL, 2009a).

[13] O que não impede o exercício de posse comum ou a aquisição da propriedade por usucapião pelos indígenas.

[14] A citação dos precedentes ora apresentados serve como mero reforço argumentativo. O fato dos precedentes destacados serem oriundos do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decorre de mera coincidência.

[15] Da ementa destaca-se: “O devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF) – que vincula indígenas e não indígenas – impede a antecipação indevida de etapas, daí decorrendo que, somente após a definição final de que as terras ocupadas pelos agravados são indígenas – se houver -, é que a posse pelos silvícolas tornar-se-á legítima, não sendo admitida, no ordenamento vigente, a imissão (ainda que provisória) na posse de área que, em princípio, é particular Brasil (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AG 5027343-38.2017.4.04.0000. Quarta Turma, Relatora Desembargadora Vivian Josete Pantaleão Caminha, juntado aos autos em 29/09/2017).

[16] A decisão foi assim ementada: “DIREITO CIVIL E ADMINISTRATIVO. ESBULHO. INDÍGENAS GUARANIS. DESOCUPAÇÃO. ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NÃO FINALIZADOS. INSUFICIÊNCIA DOS INDÍCIOS DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL GUARANI NA ÁREA. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. 1. A União é legítima para figurar no polo passivo da demanda porquanto detém responsabilidade subsidiária na missão da FUNAI. 2. A menção à existência de procedimento administrativo para identificação e delimitação de terras indígenas na região de Guaíra e Terra Roxa não justifica a manutenção dos índios nas áreas invadidas. Primeiro, porque não há qualquer evidência de que a ocupação indígena primeva tenha se prolongado no tempo (até a 1988), mesmo que se considere a principal característica das tribos Guarani, seu nomadismo. 3. Também, não há evidências que os indígenas tenham migrado para outras regiões e retomado periodicamente ao lugar com intenção de recuperá-lo, nem que tenham sido expulsos pelos brancos. 4. Não cabe ao Judiciário fazer estudos antropológicos e sim à FUNAI em processo próprio. Enquanto tal não ocorrer, os legítimos proprietários devem permanecer em suas terras e colher o que plantaram, dando-lhes destinação que cumpre a função social. 5. Admitir o contrário é estimular invasões e a justiça de mão própria, o que o estado de direito não tolera. 6. Noventa dias (90) se afigura prazo bem dilargado para a saída dos invasores que devem permanecer em suas áreas já demarcadas, aguardando os processos demarcatórios” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. APELREEX 5003370-33.2013.4.04.7004. Órgão Julgador: Terceira Turma, Relator Desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, juntado aos autos em 23/05/2014).

[17] Leia-se da ementa: “Os direitos garantidos ao povo indígena não podem ser extrapolados a ponto de contrariar outros direitos também previstos constitucionalmente. A demarcação por parte do Poder Executivo, elaborada após um procedimento administrativo, o qual abrange o estudo antropológico necessário para verificação da efetiva ocupação tradicional indígena, é essencial para a devida verificação do direito de posse. Apelação improvida” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AC 2005.04.01.000728-1. Terceira Turma, Relator Desembargador Nicolau Konkel Júnior, D.E. 16/12/2009).


Artigo publicado na REVISTA DE DIREITO ECONÔMICO E SOCIOAMBIENTAL, v. 12, p. 319-339, 2021.

Por

Pedro de Menezes Niebuhr

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Professor dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC, onde leciona, pesquisa e […]

Pedro de Menezes Niebuhr

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