24 | 04 | 2024
Regra geral, a concepção do fato jurídico observa um itinerário. Primeiro, o legislador cria uma hipótese dotada de abstração e generalidade, estabelecendo situações que, se verificadas, desencadearão os efeitos prescritos pela norma. Depois, o agente competente constrói a norma em seu intelecto, identifica a ocorrência do fato previsto pela hipótese no plano social e, então, converte-o em linguagem apta a ser processada pelo Direito. A partir daí, os sujeitos são individualizados e é prescrita a relação jurídica correlata.
Nesse contexto, é importante ter em mente que os registros contábeis compõem a linguagem que se relaciona com o Direito. Os fatos contábeis são os suportes linguísticos que refletem comportamentos atingidos pelo Direito e que permitem dimensionar economicamente o signo presuntivo de riqueza a ser oferecido à tributação.
É assim que os registros contábeis devem ser compatíveis com a “realidade” experimentada pelo sujeito passivo. Se alguém auferir renda, devem ser cumpridos os deveres instrumentais, representados pela escrituração do resultado nas demonstrações financeiras e pela transmissão da informação na forma devida e no prazo previsto na lei.
Em decorrência disso, havendo saldo positivo, deve ser o Imposto sobre a Renda oferecido à tributação. O imposto, por sua vez, será calculado a partir do relato contábil nos termos do regime de apuração aplicável e, se for o caso, conforme os ajustes (adições, exclusões) legalmente previstos.
Em alguns casos, porém, o relato contábil assume não só a função de relatar o fato tributável. Entre os muitos exemplos que poderiam ser ofertados, comparece o lucro arbitrado como uma hipótese que estabelece que o contribuinte que não mantiver a escrituração na forma das leis comerciais e fiscais ou deixar de elaborar as demonstrações exigidas estará, então, obrigado ao arbitramento [1].
É interessante notar que, não raramente, a discussão sobre o relato do fato em linguagem contábil se descola daquele que lhe é subjacente. Vejamos, para iniciar nossas digressões sobre o tema, um caso em que, ao que tudo indica, o contribuinte auferiu renda, mas não transmitiu as devidas informações à fiscalização.
A questão passou a se concentrar em se houve, ou não, o relato na linguagem gabaritada pelo ordenamento. Mais importante, discute-se se o fato contábil é, ou não, linguagem de prova suficiente para permitir a manutenção do lançamento de ofício.
No Acórdão nº 1401-002.652, por exemplo, a matéria controvertida passou a ser se a linguagem contábil permitiria, ou não, que a autoridade fazendária apurasse o lucro pela modalidade arbitrada, restando definido que o arbitramento é uma medida extrema, aplicável somente quando é impossível apurar o tributo por outro regime de apuração [2].
Sobre o lucro arbitrado, Maria Rita Ferragut aponta que a documentação do sujeito passivo pode se encontrar viciada sem que isso impeça que os elementos necessários ao lançamento do IR possam ser identificados por meio de outros suportes físicos, registrando que o “que importa para o Fisco quando a função administrativa estiver voltada para a investigação da ocorrência fática do evento descrito no fato jurídico-tributário, é saber se o evento descrito no fato ocorreu, não sendo qualquer dificuldade que o exonerará do dever de lançar baseando-se em provas diretas” [3].
É precisamente nesse contexto que as hipóteses normativas (1) tributárias, (2) presuntivas, (3) as que obrigam o sujeito passivo a relatar a conduta mediante a linguagem contábil (habilitada a ser processada pelo Direito) e (4) as sancionatórias se enlaçam de tal modo que, em algumas circunstâncias, não mais se discute se ocorreu a conduta descrita pela hipótese, mas se o relato contábil é suficiente, ou não, para se alcançar aquele fato, subordinando à validade de um ato à validade do outro.
No Acórdão nº 1401-002.292, a discussão deixou de analisar a (in)existência da conduta que deflagra a obrigação de pagar o tributo. O conselheiro relator consignou que, apesar de, em seu entendimento, estar-se diante de uma manobra contábil fraudulenta, o lançamento pela administração fazendária deveria ser declarado inválido. Manifestou, ainda, que “é lamentável proferir tal decisão uma vez que, da análise dos documentos e dos autos, estou plenamente convencido da existência do esquema fraudulento” [4].
Apesar de supor a ocorrência do fato descrito, considerou o relator que a hipótese normativa contábil (dever instrumental) relacionada à obrigação foi insuficiente para justificar o lançamento[5]. Em termos lógicos, a regra em jogo era a seguinte: se há “renda”, então deve haver “escrituração na forma das leis comerciais e fiscais” e, então, deve ser “obrigação tributária (renda pelo regime de apuração ordinário)”. Se há “renda”, mas descumprido o dever de “escrituração na forma das leis comerciais e fiscais”, então deve ser “obrigação tributária” (renda pelo regime de apuração arbitrada).
O mesmo raciocínio pode, aliás, conjugar essa regra sob outra perspectiva lógica. É o caso do Acórdão nº 1401.101-727, em que a conselheira Aurora Tomazini Carvalho consignou que “não compete à Fiscalização eleger que forma de apuração dos tributos adotar, quando diante de caso em que não há competente escrita fiscal”, bem como que, “nestas hipóteses, por expressa determinação da lei, deve ser feita a apuração dos tributos devidos com fundamento no lucro arbitrado”, de modo que essa “é a única interpretação possível da regra do art. 47 da Lei nº 8.981/1995” [6]. É pertinente o destaque de alguns trechos do precedente administrativo:
“A regra do artigo, que regulamenta as situações do arbitramento enuncia: ‘será’, não ‘poderá’. Em termos semânticos, o vocábulo “será” corresponde logicamente ao modal ‘obrigatório’, enquanto o ‘poderá’ ao facultativo. O legislador era livre para escolher o termo ‘poderá’, mas escolheu o ‘será’. De modo que, se for a ocorrência de algumas das situações enunciadas acima o arbitramento não é uma faculdade (permissão), é uma obrigação do fisco perante o sujeito passivo tributário e um direito deste em relação ao fisco.
[…]
A hipótese normativa é bem delimitada: H: Se a escrituração a que estiver obrigado o contribuinte revelar indícios de fraude ou contiver vícios, erros ou deficiência que a tornarem imprestáveis para determinar o lucro real; deve ser – C: o dever de o fisco efetuar o lançamento pelo lucro arbitrado” [7].
Ambos os casos culminaram na declaração de invalidade da norma individual e concreta que traduzia a obrigação tributária. O primeiro, porque o dever instrumental (fato contábil) que relata obrigação tributária foi devidamente transmitido à fiscalização e vertido em linguagem competente, então não poderia ser exigido o imposto pela hipótese normativa do lucro arbitrado.
O segundo, ao contrário, porque o contribuinte não transmitiu a escrituração adequada à fiscalização, então, necessariamente, o imposto não poderia ter sido apurado pela linguagem das provas ou por qualquer outro mecanismo, mas necessariamente pelo lucro arbitrado.
O eixo central desses casos, veja-se, não é se o sujeito praticou o fato previsto pela hipótese de incidência, mas se a linguagem contábil é, ou não, suficiente para relatá-lo, ainda que o objetivo último e final de ambas as normas seja alcançar — nos termos da hipótese de incidência do imposto — o acréscimo patrimonial efetivamente experimentado pelo sujeito passivo.
[1] Conforme a Lei nº 8.981/1995: “Art. 47. O lucro da pessoa jurídica será arbitrado quando: I – o contribuinte, obrigado à tributação com base no lucro real ou submetido ao regime de tributação de que trata o Decreto-Lei nº 2.397, de 1987, não mantiver escrituração na forma das leis comerciais e fiscais, ou deixar de elaborar as demonstrações financeiras exigidas pela legislação fiscal” (BRASIL. Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995. Altera a legislação tributária Federal e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 957, 23 jan. 1995. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8981.htm. Acesso em: 2 ago. 2022).
[2] “APURAÇÃO PELO LUCRO ARBITRADO. IMPRESTABILIDADE DA ESCRITA CONTÁBIL NÃO COMPROVADA. INSUBSISTÊNCIA DO LANÇAMENTO. O arbitramento do lucro é uma medida extrema, só aplicável quando não há possibilidade de apurar o imposto o por outro regime de tributação. Não procede o arbitramento do lucro quando as razões indicadas pela fiscalização não são determinantes para fundamentar e comprovar a imprestabilidade da escrituração contábil. LANÇAMENTO PELO LUCRO ARBITRADO INSUBSISTENTE. CANCELAMENTO DO AUTO DE INFRAÇÃO. Sendo inaplicável a forma de apuração do lucro utilizada pela autoridade autuante, não é possível manter o lançamento por outro regime” (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Acórdão nº 1401-002.652. Contribuinte: Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Relator: Lívia de Carli Germano. Seção de 12.06.2018. Disponível em: https://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudencia/listaJurisprudencia.jsf?idAcordao=7375841. Acesso em: 2 ago. 2022).
[3] FERRAGUT, Maria Rita. Crédito tributário, lançamento e espécies de lançamento tributário. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.). Curso de especialização em Direito Tributário. Estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 328.
[4] MINISTÉRIO DA FAZENDA. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Primeira Seção de Julgamento. Acórdão nº 1401-002.292. 4ª Câmara. 1ª Turma Ordinária. Sessão de 13 mar. 2018, p. 24. Disponível em: https://acordaos.economia.gov.br/acordaos2/pdfs/processados/16095720117201526_5859054.pdf. Acesso em: 2 ago. 2022.
[5] Nesse caso, entendeu-se que o contribuinte descumpriu a obrigação de escriturar as operações e, por essa razão, o lançamento é inválido, pois foi desconsiderado pela fiscalização o descumprimento desta hipótese, razão pela qual o lançamento necessariamente deveria ter sido promovido pelo lucro arbitrado. Segue a ementa do julgado: “LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO. LUCRO REAL. HIPÓTESE DE ARBITRAMENTO. É legal o lançamento com base no lucro real nas hipóteses em que a escrita contábil do contribuinte tornasse imprestável, devendo a autoridade administrativa proceder o arbitramento, nos termos dos arts. 529 e 530 do RIR e art. 47 da Lei nº 8.981/1995. ANULAÇÃO DO LANÇAMENTO. MODIFICAÇÃO DE REGIME JURÍDICO. A modificação do regime jurídico de apuração do tributo do lucro real para o arbitrado não é um mero ajuste na base calculada do imposto lançado, caracteriza-se como erro na fundamentação jurídica do lançamento, cuja resolução implica incidência de outra norma jurídica” (MINISTÉRIO DA FAZENDA. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Primeira Seção de Julgamento. Acórdão nº 1401-001.727. 4ª Câmara. 1ª Turma Ordinária. Sessão de 15 set. 2016. p. 1. Disponível em: https://acordaos.economia.gov.br/acordaos2/pdfs/processados/19515720865201347_5729809.pdf. Acesso em: 2 ago. 2022).
[6] MINISTÉRIO DA FAZENDA. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Primeira Seção de Julgamento. Acórdão nº 1401-001.727. 4ª Câmara. 1ª Turma Ordinária. Sessão de 15 set. 2016. p. 7. Disponível em: https://acordaos.economia.gov.br/acordaos2/pdfs/processados/19515720865201347_5729809.pdf. Acesso em: 2 ago. 2022
[7] MINISTÉRIO DA FAZENDA. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Primeira Seção de Julgamento. Acórdão nº 1401-001.727. 4ª Câmara. 1ª Turma Ordinária. Sessão de 15 set. 2016. p. 7. Disponível em: https://acordaos.economia.gov.br/acordaos2/pdfs/processados/19515720865201347_5729809.pdf. Acesso em: 2 ago. 2022.
O artigo foi publicado no portal Consultório Jurídico, no dia 10 de abril de 2024.
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Pós-graduada em Processo Civil. Especializanda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG […]
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