12 | 01 | 2023

A (in)transmissibilidade das milhas aéreas segundo o STJ

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu a extinção dos pontos acumulados de maneira gratuita em programa de fidelidade instituído por uma companhia aérea, após o falecimento do cliente. Isso porque o colegiado se pautou na validade da cláusula do regulamento do referido programa de pontuação, que vedava a sucessão causa mortis das milhas.

A ação civil pública, que originou o recurso julgado pelo STJ, foi ajuizada por uma associação de consumidores na Comarca de São Paulo/SP, objetivando, dentre outras coisas, o reconhecimento da abusividade no contrato de adesão que regula o programa de fidelidade da companhia aérea ré, com a consequente declaração de nulidade da cláusula que determinava a extinção dos pontos com o falecimento do cliente.

Na primeira instância, o processo foi julgado procedente e, além de declarar a mencionada cláusula nula, o juízo determinou que os pontos de fidelidade (milhas aéreas) poderiam ser utilizadas em até cinco anos. A sentença de primeiro grau foi baseada, principalmente, no fato de terem as milhas natureza patrimonial, de modo que com a extinção dos pontos após o falecimento do cliente, estaria a companhia aérea locupletando-se à custa dos herdeiros, comportamento vedado pelo art. 884[1] do Código Civil, obtendo, assim,  vantagem manifestamente excessiva, o que também é rechaçado pelo inciso V, do artigo 39[2], do Código de Defesa do Consumidor.

Insatisfeita com a decisão de primeiro grau, a companhia aérea interpôs o respectivo recurso de Apelação. Na oportunidade do julgamento, o relator consignou sua opinião contrária à posição da turma julgadora, por entender que a extinção das milhas devido à causa mortis é decorrência lógica do caráter personalíssimo atribuído aos pontos. Em que pese o entendimento do desembargador relator, este teve seu voto vencido e o recurso foi provido em parte pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, reconhecendo-se a ilegitimidade da vedação de transferência da pontuação, porém reduzindo o prazo dos consumidores/herdeiros utilizarem os pontos de 05 para 02 anos.

A companhia aérea interpôs, então, Recurso Especial, alegando, em suma, a inexistência de abusividade na cláusula que veda a sucessão causa mortis dos pontos e a natureza não patrimonial das milhas, já que essas não podem ser caracterizadas como espécie de pagamento antecipado.

A decisão passa a ser, então, fundamentada pelo Ministro Relator Moura Ribeiro, sob a perspectiva de que o pedido inicial referia-se aos pontos adquiridos a título gratuito, ou seja, como bônus por sua fidelidade na aquisição de produtos ou serviços diretamente contratados com a companhia aérea ou seus parceiros comerciais.

Desse modo, segundo o Relator do caso, não se pode confundir os pontos gratuitos com as pontuações adquiridas onerosamente, nas quais o consumidor se inscreve em programa de aceleração de acúmulo de pontos. Nesse sentido, o julgamento ficou limitado a analisar a controvérsia tão somente em relação aos pontos recebidos de forma gratuita pelo consumidor, não se aplicando a decisão à segunda modalidade de aquisição.

Do mesmo modo, o Ministro sustentou que, em que pese se tratar de um contrato de adesão, também é notório que este gera obrigações somente à companhia aérea, pois o consumidor não precisa desembolsar nenhuma quantia para beneficiar-se do programa de fidelidade, não havendo, portanto, qualquer contraprestação pecuniária por parte do cliente.

Assim, o STJ entendeu que não tendo sido o consumidor obrigado a se cadastrar no referido programa de acúmulo de pontos, somado ao fato de que em sua adesão ao programa de recompensas de milhas houve a exposição clara das regras, obrigações e limitações, reconhecer a abusividade da referida cláusula seria o mesmo que “premiar” o cliente – cujas regras do jogo era conhecedor e ainda assim concordou em participar – impondo ao fornecedor gravames excessivos.

Importante destacar que os regramentos dos programas de fidelidades ofertados pelas companhias aéreas são conhecidos como “de adesão”, modalidade contratual que se caracteriza “pelo fato de o seu conteúdo ser determinado unilateralmente por um dos contratantes, cabendo ao outro contratante apenas aderir ou não aos seus termos”[3]. Dessa forma, comumente os regramentos de tais programas são encontrados no próprio site da respectiva companhia aérea, podendo suas disposições serem alteradas apenas pela empresa que os ofertam.

Sob tal perspectiva, o STJ destacou a característica unilateral do contrato de adesão, uma vez que, no caso em tela, este gera deveres e obrigações apenas à companhia aérea, motivo pelo qual a impossibilidade de transferência dos pontos após o falecimento do titular não acarretaria prejuízo aos herdeiros.

Além disso, a decisão aqui discutida ressaltou que o regulamento do programa de benefícios, além de ser um contrato de adesão unilateral, se trata de contrato gratuito/benéfico, “pois ao passo que gera obrigações somente à instituidora do programa, o consumidor que pretende a ele aderir e se beneficiar, não precisa desembolsar nenhuma quantia”.

Resta claro, portanto, que o julgamento ficou adstrito a análise dos pontos adquiridos de maneira gratuita, os quais, segundo o STJ, servem como um bônus pela fidelidade do consumidor na “aquisição de um produto ou serviço diretamente contratado”, beneficiando os consumidores fiéis da empresa.

Já o juízo da 40ª Vara Cível da Comarca de São Paulo/SP – que julgou a causa em primeira grau, indo de encontro com o entendimento proferido pelo Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo naquela instância – entendeu que os “prêmios” se tratam, na verdade, de modalidade de pagamento antecipado, uma vez que a cada viagem adquirida, o consumidor acumula pontos e, ao final, ao alcançar determinada pontuação, resgata suas milhas, adquirindo produtos ou serviços. Ou seja, ao adquirir a passagem aérea, o consumidor estaria, consequentemente, adquirindo pontos, de modo que as milhas aéreas estariam revestidas de caráter patrimonial, o que autorizaria a sua inclusão no patrimônio do falecido, a ser transmitido aos seus herdeiros quando da abertura da sucessão.

Verifica-se, nesse contexto, a existência de entendimentos interpretativos diversos no que concerne à natureza patrimonial dos “pontos gratuitos”. Por outro lado, no que diz respeito aos clubes de pontuação das companhias aéreas, em que é possível comprar e vender milhas (pontos adquiridos de forma onerosa), tal questão ainda precisa ser enfrentada pelo STJ, eis que a referida Corte não se manifestou acerca da possibilidade ou não de sua transmissão sucessória, limitando-se a analisar o recurso sob a ótica dos pontos gratuitos. 

De todo modo, salienta-se que alguns Tribunais Estaduais têm reconhecido a natureza patrimonial das milhas e permitido não só a sua partilha em vida, em razão do divórcio ou dissolução de união estável (vide AC/TJSP n.1019168-64.2020.8.26.0100[4] e AC/TJBA n. 0570276-93.2014.8.05.0001[5]), como também a sua penhora[6].

Nessa lógica, uma vez reconhecida a natureza patrimonial e creditícia das milhas, inclusive com a possibilidade de comercialização em diversos sites, mostra-se cada vez mais possível (e devida) a sua partilha em vida ou a sua transmissão hereditária, respeitando-se, nesses casos, as regras estipuladas no Código Civil atinentes aos regimes de bens e ordem de vocação hereditária.


[1] Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

[2] Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:    (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994):

[…] V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; […].

[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Contratos e atos unilaterais, volume 3, 17. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 75.

[4] TJSP, Apelação Cível 1019168-64.2020.8.26.0100; Relator (a): Ana Maria Baldy; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XI – Pinheiros – 1ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 26/05/2022; Data de Registro: 27/05/2022.

[5]TJBA, Apelação,Número do Processo: 0570276-93.2014.8.05.0001,Relator(a): ROSITA FALCAO DE ALMEIDA MAIA,Publicado em: 04/09/2020.

[6] TJMG –  Agravo de Instrumento-Cv  1.0024.13.167811-2/001, Relator(a): Des.(a) Luiz Carlos Gomes da Mata, 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 21/05/2020, publicação da súmula em 22/05/2020.

Por

Bruna Carneiro da Fontoura

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Graduada em Direito pela Faculdade CESUSC. Pós-graduanda em Direito das Famílias e Sucessões pela Faculdade […]

Por

Karolainy do N. Coelho

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Pós-graduanda em Direito Processual Civil pelo CESUSC. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa […]

Deixe seu comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Ao publicar um comentário, você concorda automaticamente com nossa política de privacidade.

Conteúdos Relacionados