27 | 10 | 2020
Por Rodrigo Schwartz Holanda
Este é o segundo artigo da série sobre o Direito Tributário e a Contabilidade e tem por objetivo analisar a controvérsia relativa à classificação contábil (ativo circulante ou ativo não circulante) e à forma de tributação da venda de imóveis de pessoas jurídicas optantes pelo regime do lucro presumido.
A questão que se apresenta é a seguinte: quando um imóvel é destinado a sediar as atividades da pessoa jurídica, à locação ou ao arrendamento, seu registro contábil se dá no ativo não circulante, que é composto por investimentos, imobilizado e intangível e ativos realizáveis a longo prazo[1]. Regra geral, a alienação dos bens constantes desse grupo de contas é oferecida à tributação pelo IRPJ e pela CSLL como ganho de capital, gravando a diferença entre o valor da venda e o custo de aquisição.
Já a venda de bens escriturados no ativo circulante, notadamente do estoque – que congrega os imóveis destinados à venda –, corresponde à receita bruta e se submete à base de cálculo por estimativa de 8% (IRPJ) e 12% (CSLL) no lucro presumido[2].
Até aqui inexistem grandes polêmicas. A controvérsia reside nos casos em que (i) a substância da operação diverge da forma; ou (ii) o contribuinte altera a destinação do ativo no curso de suas atividades e busca a respectiva alteração do regime de tributação. Trata-se de uma matéria relativa ao lucro presumido que não se restringe às operações imobiliárias[3].
A questão movimenta o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf. De um lado estão os que sustentam haver margem de liberdade para definir a destinação do imóvel e, consequentemente, o regime de tributação. Afora alguns desdobramentos e os tons mais sutis dessa linha relativa à reclassificação ampla, advoga-se, num panorama geral, tratar-se de uma opção inerente à zona de liberdade do contribuinte.
De outro lado, a Receita Federal sustenta o entendimento de que o IRPJ e a CSLL devem ser apurados conforme as regras de ganho de capital, “ainda que tenha havido a reclassificação do bem para o circulante” (Solução de Consulta COSIT nº 251/2019). É dizer que não há óbice à reclassificação, mas, para fins fiscais, o regime tributário é subordinado à classificação contábil originária.
Nesse panorama, chama igualmente atenção o temperamento ao artigo 32 da Lei nº 8.981/95, previsto pelo artigo 215, §14, da IN nº 1.700/2017. A normativa espelha o comando legal ao consignar que o ganho de capital corresponderá à diferença positiva verificada entre o valor da alienação e o respectivo valor contábil, mas com a ressalva de que essa regra é igualmente aplicável para os imóveis “reclassificados para o ativo circulante com a intenção de venda”.
Tal requisito, note-se, é ilegal por estabelecer uma exigência não prevista em lei[4] e, em última análise, por conduzir a alienação de ativo circulante ao regime de ganho de capital, o que, como corolário lógico, contraria a legislação de regência do lucro presumido.
No âmbito do Carf, há uma certa predileção pela realidade que subjaz a classificação contábil na condução dos julgamentos. As decisões são ligeiramente desfavoráveis aos contribuintes, mas, via de regra, valoram a forma como o imóvel comparece no contexto econômico para delinear a questão.
No Acórdão nº 1301.003.022, por exemplo, entendeu-se lícita a tributação como receita bruta utilizando-se a base de cálculo por estimativa de 8% (IRPJ) e 12% (CSLL) de um imóvel escriturado em conta de ativo não circulante e que, inclusive, era objeto de locação.
O voto do conselheiro relator Roberto Silva Junior destacou que “o fato de o imóvel estar locado não é incompatível com a finalidade de venda”[5]. O Acórdão nº 1402.003.859, por sua vez, analisou o regime de tributação de um bem constante do estoque de uma pessoa jurídica que possuía a atividade imobiliária em seu objeto social, tendo sido mantida a autuação por prevalecer a percepção de que o contribuinte não praticava, de fato, a atividade imobiliária, considerando pertinente a tributação do imóvel – no caso, uma fazenda – pelo regime de ganho de capital.
Demais disso, também se observa que a disciplina contábil sobre a classificação do ativo e sobre o regime de tributação é igualmente relevante na apreciação do tema[6]. Consta dos pronunciamentos contábeis que os ativos mantidos para venda no curso normal dos negócios pertencem ao estoque (itens 6 e 8 do CPC nº 16).
Já o ativo imobilizado é direcionado ao bem tangível destinado ao uso na produção ou ao fornecimento de mercadorias ou serviços, para aluguel a terceiros ou para fins administrativos que se esperam utilizar por mais de um período (Item 6, CPC 27). Especificamente com relação ao ativo imobilizado, a norma contábil prescreve que os imóveis mantidos para aluguel que normalmente são alienados devem ser reclassificados para o estoque quando forem destinados à venda (item 68A, CPC 27).
No que tange às propriedades para investimento, o pronunciamento as define como aquelas “mantidas para obter rendas ou para valorização do capital ou para ambas” (item 7, CPC nº 28). Nada obsta que esses ativos também sejam objeto de locação. O que diferencia esse segundo pronunciamento do primeiro é a natureza do aluguel, se vinculado à atividade operacional (ativo imobilizado) ou vocacionado à produção de rendimentos de forma dissociada da atividade desenvolvida pela entidade (propriedade para investimento).
O CPC nº 28 retira de seu campo de abrangência a propriedade destinada à venda no decurso ordinário das atividades, sendo, inclusive, devida a reclassificação para a conta de estoque quando houver o “início de desenvolvimento com objetivo de venda” (item 57, CPC nº 28).
O CPC nº 31, que aborda o ativo não circulante mantido para venda e operação descontinuada, emprega uma lógica similar, na medida em que estabelece, em linhas gerais, que o ativo deverá ser considerado como mantido para venda quando estiver disponível para alienação e quando for objeto de um plano de vendas, fornecendo, inclusive, alguns exemplos (apêndice C) elucidativos de sua aplicabilidade.
Os fatos contábeis são, em sua essência, mecanismos que atendem ao objetivo – sempre visado pela Contabilidade – de fornecer elementos de controle do patrimônio para a tomada de decisões. Cada conta traduz uma individualidade autônoma do patrimônio da entidade. A necessidade de reclassificação decorre do fato de que, como tudo na vida, as coisas podem mudar. O ferrete utilizado pela Receita Federal para marcar o regime tributário do ativo é desproporcional e vai de encontro à dinamicidade das atividades econômicas.
Note-se, aliás, que entendimentos mais antigos permitiam a tributação pelo lucro presumido, “ainda que os imóveis destinados a venda tenham sido adquiridos antes de formalizada na Junta Comercial a inclusão de tal atividade em seu objeto social.” (Solução de Consulta COSIT nº 254/2014 e Solução de Consulta nº 139/2006).
A partir dessa breve passagem pelos pronunciamentos contábeis, ficam evidentes a possibilidade de reclassificação e a inconsistência da vinculação originária do imóvel na definição do regime de tributação, o que se conclui a partir da acaciana constatação de que (i) a contabilidade reconhece a obrigação de reclassificar o ativo quando sua destinação for alterada e, ainda, (ii) a exigência de que a classificação originária subordina a tributação não encontra amparo legal, mas decorre de interpretação restritiva do artigo 15, §4º, da Lei nº 9.249/1995.
A informação contábil é a linguagem autorizada pela lei que deflagra a obrigação de pagar o tributo. Observações dessa ordem nos permitem afirmar que o entendimento veiculado no Acórdão nº 1302.002.327, por exemplo, não pode ser tomado de forma acrítica.
Sem valorar os fatos, decidiu-se que “a receita proveniente da venda de imóveis, que não foram construídos ou adquiridos com tal finalidade, mas, diversamente, para serem usados como meio de obtenção de renda ou para o desempenho de atividade econômica prevista no objeto social da empresa, sujeita-se à apuração de ganho de capital, independentemente, de a atividade imobiliária também integrar aquele objeto e da reclassificação contábil”.
Ademais, mostra-se igualmente despropositada a exigência de que o imóvel deva ser alienado no período de doze meses. Por mais que a vocação do ativo circulante seja a de evidenciar os bens mantidos com o propósito de serem negociados e que se espere “que seja realizado até doze meses após a data do balanço” (item 66, CPC nº 26), sua natureza não é comprometida por não ter sido alienado no prazo previsto, mesmo porque a norma contábil não deixa nenhuma dúvida ao dispor que os ativos circulantes também contemplam ativos “que são vendidos, consumidos ou realizados como parte do ciclo operacional normal, mesmo quando não se espera que sejam realizados no período de até doze meses após a data do balanço.” (item 68, CPC nº 26).
Veja-se que esse desdobramento não é equacionado de forma uníssona para fins de início do cômputo do prazo. Enquanto o Acórdão nº 1302.002.327 considerou o prazo de doze meses a partir da alocação originária do bem, o Acórdão nº 1402.003.859 tomou por base a reclassificação do ativo, mostrando-se este último mais adequado para delinear a questão – ainda que, como mencionado, não seja um elemento determinístico.
Em complemento a esse aspecto, é importante que seja desenvolvido um plano de vendas do imóvel quando de sua reclassificação, como também ponderado em alguns casos[7]. E, diferentemente do que assumiram algumas decisões[8], o plano de vendas não guarda relação com o histórico das atividades desempenhadas pelo contribuinte, sendo indevida a desconsideração da tributação pelo lucro presumido pautada simplesmente pela ausência de operações anteriores, ainda que, especificamente sobre esta última questão, um dos pronunciamentos equacione a reclassificação nos casos em que a entidade “normalmente vende itens do ativo imobilizado”. (item 68A, CPC nº 27).
O parâmetro binário (circulante = receita operacional vs. não circulante = ganho de capital) é um bom ponto de partida, mas não é determinante para a definição do regime de tributação. Por mais que inexista uma lógica programática no entendimento da Administração Fazendária – cuja atenção é objetiva e precipuamente concentrada na classificação contábil originária –, o legislador estabeleceu formas distintas de tributação para os ganhos decorrentes da exploração da atividade econômica (receita bruta) e do ganho de capital[9].
Por outro lado, o argumento simplório de que se trata de uma mera opção do contribuinte traduz a ideia de que, ao decidir por alienar um imóvel, bastaria calcular a carga tributária incidente na operação e, se for o caso, reclassificar o ativo para se submeter ao regime mais favorável. Não é isso que se defende.
O que parece razoável é que o contribuinte tenha liberdade para decidir a destinação do ativo, explorar tal atividade de forma efetiva e, consequentemente, se subordinar às regras de tributação que recaem sobre essa opção.
Trata-se, evidentemente, de um tema de difícil delimitação apriorística e que dialoga com o caso concreto.
Lembremos que toda vez que investigamos quaisquer aspectos das normas jurídicas vocacionadas à incidência tributária devemos considerar que elas, as normas, são instrumentos a serviço de uma opção política. A decisão do legislador de dispensar à receita bruta e ao ganho de capital tratamento tributário distinto deve ser respeitada.
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[1] Art. 178, §1º, II, Lei n. 6.404/76 e Item 67A, do CPC n. 26.
[2] A regra relativa ao ganho de capital consta do art. 32, §2º, da Lei n. 8.981/95. As bases de cálculo por estimativa para o IRPJ/CSLL constam dos artigos 15 e 20 da Lei n. 9.249/95. Especificamente com relação à atividade imobiliária, o art. 34 da Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005, alterou o art. 15 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, mediante inclusão do § 4º para as atividades de “loteamento de terrenos, incorporação imobiliária, construção de prédios destinados à venda, bem como a venda de imóveis construídos ou adquiridos para a revenda”.
[3] Para ilustrar que a temática vai além dessas operações, vejam-se os pronunciamentos constantes da Solução de Consulta DISIT/SRRF n. 139/2006, em que pretendia o consulente reclassificar bens que, na época, eram contabilizados em conta de ativo permanente e, ainda, nos casos de alienação de participações societárias, conforme Solução de Consulta COSIT n. 347/2017, reproduzida recentemente na Solução de Consulta DISIT n. 7006/2020. Interessante notar que, especificamente no caso da alienação de participações societárias por pessoas jurídicas constituídas com essa finalidade, entende a Administração Fazendária federal que tais atividades correspondem à receita bruta decorrente da “administração e cessão de direitos de qualquer natureza”, motivo pelo qual se submetem à base de cálculo por estimativa de 32% para fins de IRPJ e CSLL. Trata-se de um posicionamento que merece uma reflexão detida, valendo registrar, de caminho e às rápidas, que tais estimativas não se mostram adequadas para esta atividade.
[4] Tal interpretação decorre da interpretação restritiva do artigo 15, §4º, da Lei n. 9.249/1995, cuja redação é a seguinte: “Art. 15. A base de cálculo do imposto, em cada mês, será determinada mediante a aplicação do percentual de 8% (oito por cento) sobre a receita bruta auferida mensalmente, observado o disposto no art. 12 do Decreto-Lei no 1.598, de 26 de dezembro de 1977, deduzida das devoluções, vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos, sem prejuízo do disposto nos arts. 30, 32, 34 e 35 da Lei no 8.981, de 20 de janeiro de 1995. (Redação dada pela Lei no 12.973, de 2014)
(…)
§ 4º O percentual de que trata este artigo também será aplicado sobre a receita financeira da pessoa jurídica que explore atividades imobiliárias relativas a loteamento de terrenos, incorporação imobiliária, construção de prédios destinados à venda, bem como a venda de imóveis construídos ou adquiridos para a revenda, quando decorrente da comercialização de imóveis e for apurada por meio de índices ou coeficientes previstos em contrato.”
[5] Tal aspecto foi igualmente relevante quando do julgamento constante dos acórdãos n. 1402-004.061 e 1401001.225.
[6] Nessa ordem de ideias, cabe observar a disciplina sobre os critérios para que um bem pertença ou deixe de pertencer ao ativo circulante ou não circulante, assim como as circunstâncias que autorizam sua reclassificação, mostrando-se oportuno destacar os seguintes pronunciamentos: (i) estoques (CPC n. 16), (ii) apresentação das demonstrações contábeis (CPC n. 26), (iii) ativo imobilizado (CPC n. 27), (iv) propriedades para investimento (CPC n. 28), (v) ativo não circulante mantido para venda e operação descontinuada (CPC n. 31), e (vi) receitas de contratos com clientes (CPC n. 47). Vejam-se, para ilustrar, os seguintes acórdãos: 1302.002.327, 1302.002.033, 1402.003.859, 1402-004.061, 1102001.085, 1402-002.874.
[7] Acórdãos n. 1302.002.327, 1302.002.033, 1402.003.859
[8] Acórdãos n. 1302.002.033, 1402-002.874, 1402-004.061
[9] Abrem-se parênteses para destacar que, no entendimento da Receita Federal, “para fins de apuração do ganho de capital, a pessoa jurídica que apura o IRPJ com base no lucro presumido deverá considerar como valor contábil o custo de aquisição diminuído dos encargos de depreciação.” (Solução de Consulta COSIT n. 285/2018), entendimento que foi recentemente confirmado pela Câmara Superior de Recursos Fiscais no acórdão n. 9101-004.436.
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]
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