26 | 10 | 2021

Avaliação a Valor Justo e tributação

A Avaliação a Valor Justo (AVJ) de ativos é um tema que ilustra muito bem a importância de certos distanciamentos entre a apuração do lucro contábil e a apuração do lucro tributável. Nada mais apropriado, portanto, do que tratarmos dessa temática nesta série sobre “Direito Tributário e Contabilidade”. Para tanto, pretendemos publicar uma sequência de dois artigos, em que trataremos das principais controvérsias jurídico-contábeis envolvendo a AVJ e a tributação da renda.

Neste primeiro texto, serão abordadas algumas noções básicas de tal método de mensuração contábil, passando pelo escorço histórico de seu tratamento legal, que culminou na Lei nº 12.973/14, objetivando verificar-se até que ponto a referida norma está de acordo com os limites do fato gerador do imposto de renda, previsto pelo legislador complementar no artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN).

Com base nas premissas aqui estabelecidas, o segundo texto analisará o tratamento tributário aplicável para a hipótese específica de devolução a valor contábil de ativos mensurados com AVJ para sócios ou acionistas de uma sociedade, a título de redução de capital social. Passemos, então, ao primeiro tema.

A AVJ é um método de mensuração contábil que permite a avaliação de um ativo pelo preço que seria praticado caso ele fosse transacionado em mercado. Conforme assinala Eliseu Martins, trata-se de um paradigma recente para o modelo contábil, que, superando a ideia de que ativos e passivos deveriam ser marcados pelo custo histórico de aquisição, passou a demonstrar o valor justo de ativos com imediata liquidez (como moeda estrangeira, ouro). [1]

Essa nova forma de mensuração e evidenciação do patrimônio foi bem recebida pelo mercado, ocorrendo sua padronização em nível internacional pelo International Financial Reporting Standards (IFRS) e sua introdução no Brasil por meio da Lei nº 11.638/07, que alterou a Lei das S/A. Trata-se de uma quebra de paradigma necessária para aproximar o mercado brasileiro dos padrões internacionais, já que a prática brasileira tradicionalmente reconhecia os ativos na contabilidade apenas no momento da aquisição da efetiva propriedade e com predileção pela mensuração pelo valor de custo. [2]

A despeito de a AVJ estar disciplinada pela legislação societária e determinar uma nova forma de apuração do resultado contábil, eventuais “trânsitos por resultado”, decorrentes da avaliação, são neutros pela perspectiva fiscal. É assim, note-se, porque, conforme um desses autores já teve a oportunidade de constatar, “a AVJ dos ativos de uma entidade tem por objetivo uma aproximação da realidade econômica relativa a seu patrimônio, que seja condizente com aquela praticada no mercado, de sorte que, para tanto, a contabilidade por meio da AVJ adianta um acréscimo no valor daquele ativo, mesmo sem que o patrimônio (universalidade de direitos) da sociedade sofra juridicamente este acréscimo.”[3]

O próprio Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) nº 46 define a AVJ como sendo o “preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data da mensuração”.

Note-se que não há espaço para a tributação de eventos de possível ocorrência. Não se oferece à tributação o que “seria recebido pela venda”. Aí está um ponto de necessário distanciamento entre o lucro contábil e o lucro real (lucro tributável). Se, por um lado, a contabilidade permite com a AVJ o reconhecimento do resultado antes do efetivo acréscimo patrimonial, por outro, o CTN limita a tributação federal da renda à estrita ocorrência do acréscimo patrimonial, que se dá com a alienação do ativo avaliado.[4]

É a leitura que se faz do artigo 43 do CTN, que descreve o fato gerador do imposto sobre a renda como a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica (art. 43, do CTN) da renda, assim entendida como: (i) o produto do capital, do trabalho, ou a combinação de ambos (art. 43, inciso I, do CTN); ou (ii) proventos de qualquer natureza (art. 43, inciso II, do CTN), desde que (seja por uma ou por outra hipótese) presente o acréscimo patrimonial.[5]

Assim, considerando-se que a hipótese de incidência é caracterizada pela aquisição da disponibilidade e que a AVJ representa a potencialidade do ativo/passivo, o resultado dela decorrente não deve ser oferecido à tributação, porquanto é somente com a alienação (evento crítico para a realização da renda) que os ganhos se acoplam ao patrimônio, sem reservas ou condicionantes.

Foi assim que, após a adoção dos padrões contábeis internacionais na contabilidade societária, por força da já mencionada Lei nº 11.638/07, foi instituído um Regime Tributário de Transição Temporária (RTT), por meio da Lei nº 11.491/09, medida necessária, tendo em vista que o lucro fiscal (lucro real) tem como ponto de partida o lucro contábil.

A fim de neutralizar temporariamente fenômenos contábeis não tributáveis, o RTT permitiu aos contribuintes a utilização das antigas regras contábeis para apuração das bases tributáveis do imposto de renda até que sobreviesse uma nova lei específica regulamentando definitivamente os efeitos fiscais dos novos padrões contábeis.

Sobreveio, então, a Lei nº 12.973, de 2014, que, entre outras finalidades, cuidou da adaptação da tributação da renda no Brasil à adoção dos novos padrões contábeis. Especificamente no que diz respeito à AVJ, os artigos 13 e 14 da referida lei conferiram um tratamento neutro a essa forma de mensuração contábil, determinando sua não tributação (desde que controlada em subconta contábil), dispondo, ainda, que a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores decorrentes da AVJ somente ocorrerá na medida em que forem realizados (alienados, depreciados, amortizados, baixados etc).

O primeiro problema de tal norma legal de neutralidade é que, em caso de ausência de controle em subconta contábil, ela autoriza a tributação da variação positiva (ganho) decorrente da AVJ. O leitor atento logo se questionará: o descumprimento de uma obrigação contábil (de controle em subconta contábil) poderia ensejar a tributação da renda, mesmo sem sua efetiva realização? Afinal, a obrigação de pagar o tributo não surge somente com a prática do fato gerador, consoante define o artigo 113, § 1º, do CTN?

Trata-se de uma questão que já movimentou alguns debates no âmbito do Carf. Antes mesmo da edição da Lei n. 12.973/14, o conselho analisou o tema (acórdão n. 1402-­002.501) pela perspectiva da reavaliação de bens do ativo, extinta pela Lei n. 11.638/07, decidindo que “apenas com a verificação da efetiva realização do bem reavaliado este valor deverá ser computado em conta de resultado”. Esse mesmo racional também pode ser verificado quando da análise do tema na legislação atual, como foi no acórdão n. 1402-003.589, em que ficou decidido, por maioria, que “a ausência de criação de subconta não pode implicar automaticamente no acréscimo da base de cálculo do IRPJ”.

A questão, porém, não é uníssona. No acórdão n. 1301-004.091, a autuação foi mantida por voto de qualidade – antes das alterações promovidas pela inserção do artigo 19-E na Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002 –, ficando decidido que os ganhos decorrentes da AVJ deverão ser computados na determinação do lucro real. O voto vencedor, redigido pelo conselheiro Fernando Brasil de Oliveira Pinto, é pautado pela premissa de que a Lei n. 12.973/2014 estabeleceu a imediata tributação dos valores decorrentes da AVJ, sendo o controle em subcontas uma exceção à regra, mostrando-se, sob essa perspectiva, devida a tributação.

Em caráter adicional, a decisão enfatiza que o argumento que advoga a “incompatibilidade dessa norma com o art. 43 do CTN no que diz respeito ao conceito de renda” demandaria o controle de constitucionalidade dos artigos 63 a 67 da Lei n. 12.973/14, o que é vedado aos conselheiros do Carf, bem como que a norma facilita o exercício fiscalizatório e vai ao encontro do princípio da eficiência, previsto no art. 37 da Constituição Federal.

Nesse panorama, o acórdão 1401-003.873 é, possivelmente, o mais interessante. O caso, que também enfrentou a questão na disciplina da Lei n. 12.973/14, é, por igual, fruto de lançamento de ofício pela falta de controle do valor justo em subcontas.

A despeito da identidade da temática de fundo, o julgamento tem outras cores pela circunstância de (i) a AVJ não ter sido controlada em subconta nos exatos termos estabelecidos pela legislação tributária, mas mediante controle em subconta de Ajuste de Avaliação Patrimonial Imobilizado (passivo) (ii) e, também, pelo fato de a prova contábil ter comparecido – em caráter de esclarecimento complementar, segundo a decisão – somente após a apresentação do Recurso Voluntário. No caso, a exigência foi cancelada “em prol da verdade material” e sob o fundamento de que a contabilização pelo AVJ sem a verificação da alienação não passa de uma mera expectativa, pertencente “somente ao universo contábil das suas contas patrimoniais”.

É importante ter em mente que os deveres instrumentais se justificam pela praticabilidade. A manutenção do controle em subconta deve ser considerada uma condição para o diferimento do IRPJ/CSLL. Havendo o registro, não há espaço para qualquer tipo de questionamento. Trata-se de um controle que garante o diferimento da tributação decorrente do ganho experimentado pela mensuração a valor justo. No entanto, deixando o contribuinte de efetuar o controle nos moldes previstos na legislação tributária, haverá a inversão do ônus da prova, situação em que caberá ao contribuinte demonstrar, por outros meios, que o ganho ainda não foi realizado, sob pena de perda do direito ao diferimento.

Essa é a correta interpretação que se deve dar para a sanção da regra neutralizadora contida nos artigos 13 e 14 da Lei nº 12.973 de 2014, à luz dos limites contidos no artigo 43 do CTN (que define o fato gerador do imposto de renda), bem como com base na noção de que a obrigação de pagar tributo somente surge com a ocorrência do fato gerador, consoante artigo 113 do CTN.


[1] MARTINS, Eliseu. Ensaio sobre a Evolução do Uso das Características do Valor Justo. In MOSQUEIRA, Roberto Quiroga e LOPES, Alexsandro Broedel. Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). Dialética. São Paulo, 2010, pp. 138-141.

[2] PINTO, Alexandre Evaristo. Avaliação a Valor Justo e a Disponibilidade Econômica de Renda. In: Roberto Quiroga Mosqueira e Alexsandro Broedel Lopes (coords.) Controvérsias Jurídico-Contábeis: Aproximações e Distanciamentos: Dialética, 2015. 6º vl, p. 27.

[3] MALPIGHI, Caio Cezar Soares. O Princípio da Realização da Renda e a Avaliação a Valor Justo na Operação de Redução de Capital com Entrega de Ativos aos Sócios ou Acionistas. Revista Direito Tributário Atual, n.45. p. 113-135. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2020. Quadrimestral.

[4] Neste sentido, Brandão Machado arremata que “fato gerador do imposto de renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de acréscimos de direitos reais ou pessoais.” (MACHADO, Brandão. Breve exame do art. 43 do CTN. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Imposto de Renda: conceitos, princípios, comentários. São Paulo: Atlas, 1996, p. 101)

[5] MALPIGHI, Caio Cezar Soares. O Princípio da Realização da Renda e a Avaliação a Valor Justo na Operação de Redução de Capital com Entrega de Ativos aos Sócios ou Acionistas. Revista Direito Tributário Atual, n.45. p. 113-135. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2020. Quadrimestral.

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