26 | 10 | 2020

Compensações perigosas

Por Ricardo Anderle

No romance epistolar As Ligações Perigosas, escrito no século XVIII e objeto do filme homônimo vencedor do Oscar, a sedução orquestrada pela Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont contra a inocente Cécile de Volanges termina de forma trágica, tanto para os sedutores quanto para os seduzidos, mostrando que relações desleais geralmente não acabam bem.

    A arte de persuadir, de encantar, é certamente mais perversa quando a vantagem é revelada com clareza, como um benefício econômico, mas os perigos permanecem intencionalmente ocultos. É o que vemos quando empresas são seduzidas por formas mágicas e ilegais de realizarem restituições administrativas de tributos: são as compensações perigosas.

    Temos as situações criminosas que são objeto, a cada tanto, de operações policiais e da Receita Federal do Brasil, na qual são oferecidos créditos tributários podres como forma de pagamento de tributos. Essas, como temos visto, são até fácil de serem identificadas e repelidas.

Porém, o que causa maior temor são as situações em que as empresas compensam tributos que já foram declarados indevidos pelo judiciário, para algum contribuinte e em algum grau de jurisdição, mas que, em razão das restrições impostas pela lei, as compensações não podem ser realizadas, sob pena de eventual cobrança do crédito tributário ou de aplicação de multa punitiva por compensação indevida.

Nos últimos tempos, percebemos diversas empresas realizando compensações de tributos sobre a folha de salários, julgando-se credoras de pagamentos ditos indevidos, como as contribuições previdenciárias sobre as (i) chamadas “verbas indenizatórias”, (ii) salário maternidade, (iii) valores descontados do empregado, como saúde, transporte ou alimentação; (iv) supostas imunidades ou isenções mal interpretadas, dentre outras. Há, também, as compensações pautadas por decisões proferidas pelo STF ou STJ, como no caso do ICMS sobre o PIS e COFINS, mas cuja ação individual ainda não transitou em julgado. Em todos esses casos, estamos diante de compensações perigosas.

As compensações tributárias, conforme pacificado pelo Judiciário, devem ocorrer de acordo com as condições estabelecidas na lei (art. 170 do Código Tributário Nacional), e ainda respeitar a lei vigente à data do
encontro de contas, não havendo, portanto, direito adquirido ao regime de compensação (Resp 1.164.452, STJ).

No âmbito federal, o art. 74 da Lei 9.430/96 é claro ao proibir a compensação que tiver como fundamento a alegação de inconstitucionalidade de lei, exceto nos casos em que a lei foi (i) objeto de julgamento em controle concentrado pelo STF, (ii) suspensa pelo Senado Federal; (iii) objeto de súmula vinculante ou (iv) declarada inconstitucional em sentença transitada em julgado a favor do contribuinte.

Assim, mesmo nos casos de julgamentos pelo STF em sede de repercussão geral ou do STJ em recurso repetitivo, não é possível a compensação tributária de imediato, devendo o contribuinte propor ação própria para obter seu direito à restituição administrativa do tributo.

A dispensa de uma ação própria por cada contribuinte, afora as situações antes indicadas, também pode ocorrer quando o tema julgado pelo STF ou STJ é objeto de Parecer do Procurador-Geral da Fazenda Nacional ou do Advogado-Geral da União, em uma interpretação sistemática do art. 19, II, IV, VI, c/c com o art. 19-A, I, II e III e § 1º , parte final, ambos da Lei 10.522/2002.

Afora essas situações, as compensações realizadas pelos contribuintes com base em suposta ilegalidade ou inconstitucionalidade de lei estarão sujeitas à multa de ofício de 75% sobre o valor do crédito tributário, além de juros SELIC.

Não se questiona que as compensações tributárias são realmente vantajosas, pois geram imediato impacto positivo no caixa da empresa. Sabe-se também que o risco faz parte da vida e, portanto, da atividade empresária. Nosso alerta é para o administrador da empresa que, cegamente seduzido, impõe um grave risco à situação econômica da empresa, transformando, como mágica, um ativo em passivo tributário.

Por

Ricardo Anderle

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Doutor em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP. Ex-Conselheiro […]

Ricardo Anderle - Menezes Niebuhr

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