01 | 08 | 2023
Para fins tributários, receita é o produto dos negócios jurídicos que materializam o acréscimo patrimonial de uma entidade. As receitas podem advir de venda de ativos financeiros, bens imóveis, variação cambial, arrendamento mercantil, prestação de serviços, enfim, das mais variadas formas.
Na relação de compra e venda, por exemplo, enquanto o vendedor reconhece a receita, o comprador reconhece a despesa. O prestador de serviços que desempenha suas atividades em favor de determinado tomador e, concomitantemente, dele também toma serviços sem desembolsar recursos financeiros, aufere receita e incorre em despesa. Muito embora existam diversas fontes de receita, ela será sempre representativa do produto do emprego de recursos ou de atividades desempenhadas pelo titular do patrimônio, decorrente de negócios jurídicos bilaterais e incorporada ao patrimônio sem reservas ou condições.
É importante ter em mente que o timbre marcante das receitas é a definitividade. Não há como cogitar acréscimo patrimonial se o ingresso não se acopla definitivamente ao patrimônio, e é relevante sempre observar a relação jurídica estabelecida entre as partes.
Essas considerações iniciais são relevantes para examinar um tema que divide opiniões e desencadeia discussões entre o Fisco e os contribuintes. Trata-se das operações triangulares, que envolvem uma pessoa jurídica que realiza as operações de intermediação. Muito embora essa situação seja verificada em diversas cadeias econômicas, analisaremos operações imobiliárias, em que o comprador adquire um imóvel e paga valores a título de corretagem imobiliária. Perceba-se que essas operações compreendem diversas relações jurídicas e com diversos partícipes, comparecendo (i) a pessoa jurídica empreendedora/vendedora de unidade imobiliária, (ii) o comprador, (iii) a imobiliária e, (iv) o corretor de imóveis.
Nossas atenções serão concentradas nos casos em que o corretor é prestador de serviços autônomo, sem relação de emprego com a imobiliária. Nesses casos, em regra, as autoridades fazendárias adotam o entendimento de que a pessoa jurídica intermediadora (corretora) figura como beneficiária integral dos valores recebidos a título de corretagem pela intermediação das vendas das unidades imobiliárias, ainda que parcela desses valores seja destinada aos corretores autônomos.
Em suma, a justificativa é pautada pela premissa de que, ainda que parte da comissão seja adimplida pelos compradores das unidades diretamente aos corretores autônomos que atuam em nome da intermediadora, (i) a relação jurídica de intermediação de venda da unidade imobiliária é estabelecida exclusivamente entre esta e a parte vendedora, e (ii) a relação jurídica de aquisição da unidade imobiliária, no cenário em que o comprador visita os stands de venda dos empreendimentos, não é estabelecida perante os corretores autônomos, mas entre a própria pessoa jurídica intermediadora.
Para a administração fazendária, portanto, o modo como foram estabelecidas essas relações jurídicas é determinante para ensejar a necessidade de que a parcela total inerente à corretagem transite pela conta de resultados da própria intermediadora e seja levada à tributação.
Em contraste, recentemente, a 1ª Turma da 2ª Câmara da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) proferiu importante decisão sobre o tema, delimitando o conceito técnico-jurídico de receita e tangenciando temas contábeis caros à compreensão do tema. No Acórdão n. 1201.005.890, cuja sessão foi realizada em 20 de junho de 2023, a Turma analisou, sob a perspectiva da entidade intermediadora, a omissão de receitas – e, consequentemente, de tributação – de valores recebidos por corretores autônomos na venda de unidades imobiliárias.
Para os Conselheiros, a remuneração dos corretores autônomos decorre de uma relação jurídica distinta, cuja obrigação contratual é assumida diretamente pelos adquirentes dos imóveis. Após a concretização da venda, é celebrado um novo instrumento de intermediação de corretagem, que relaciona os valores de comissão devidos pelo adquirente do imóvel a cada um dos corretores envolvidos na venda, assim como o valor que cabe à própria pessoa jurídica intermediadora. O adquirente da unidade imobiliária, por sua vez, realiza o pagamento direto para cada uma das partes, conferindo materialidade à relação jurídica estabelecida (os valores sequer transitam pela contabilidade da intermediadora).
Além disso, há formalização de um negócio jurídico de parceria entre a própria intermediadora e os corretores de imóveis autônomos, o que revela que estes não atuam como prestadores de serviço em benefício daquela, mas que atuam ambos (a intermediadora e os corretores pessoas físicas) em um regime de comunhão de esforços, como prestadores de serviços em benefício dos adquirentes dos imóveis.
Considerando a materialidade dos negócios jurídicos, os conselheiros decidiram, em votação unânime, que devem ser preservados os efeitos da relação existente entre os corretores, as imobiliárias, os vendedores e os adquirentes, não havendo fundamento para caracterizar omissão de receitas por parte da corretora. Vale registrar que a discussão não é inédita perante o Conselho, já tendo sido analisada em perspectiva similar em outras oportunidades, a exemplo do Acórdão n. 1201-002.487/2018 e do Acórdão n. 1302-005.135/2021.
Essa interpretação, além de observar adequadamente o objeto dos negócios jurídicos formalizados, não se dissocia da própria noção de que receita é fato-acréscimo e, nessa condição, necessariamente decorre de alguma atividade ou do sacrifício de algum ativo pela entidade. Acréscimos patrimoniais sem a participação do sujeito passivo são transferências patrimoniais e não se amoldam, portanto, ao conteúdo técnico-jurídico de receita.
Para encerrar nossas considerações sobre o tema, também convém acrescentar que, além de essa ser a melhor interpretação predominante pela perspectiva jurídica, a contabilidade também adota esse mesmo raciocínio. Os pronunciamentos contábeis adotam os termos “principal” e “agente” para classificar a entidade que aufere receita e o intermediador que recebe os valores em nome de terceiros. Contabilmente, a questão consiste em saber em quais situações e em quais circunstâncias o ingresso pertence àquele que recebe (principal) ou se o recebedor comparece como um intermediário (agente).
A despeito de, no contexto da decisão supracitada, a imobiliária não ter reconhecido os ingressos, se os valores tivessem sido integralmente pagos para a pessoa jurídica imobiliária, a monta correspondente à sua remuneração deveria ser lançada em contas de resultado (crédito em conta de receita) e o excedente – o valor pertencente ao corretor – em conta patrimonial (crédito em conta passiva). Esse, em nossa visão, é o adequado tratamento contábil a ser conferido ao caso.
É que o Pronunciamento CPC n. 47, vocacionado à disciplina da receita de contrato com cliente, em seu anexo A, ao tratar do preço da transação, estabelece que será o valor da contraprestação contratada em troca da transferência de bens ou serviços prometidos ao cliente, excluindo valores cobrados em nome de terceiros. Assim, para fins de reconhecimento de uma transação e, consequentemente, para levar os resultados à tributação, a entidade deverá avaliar se desempenha o papel de principal ou de agente na oferta de bens e/ou serviços. Sobre essas noções, vejamos o que dispõem os itens B35 e B36 do Pronunciamento CPC n. 47:
B35. A entidade é principal se ela controlar o bem ou o serviço especificado antes que o bem ou o serviço seja transferido ao cliente. Contudo, a entidade não necessariamente controla o bem especificado se a entidade obtiver a titularidade legal para aquele bem somente um pouco antes que a titularidade legal seja transferida ao cliente. A entidade que seja principal pode satisfazer à obrigação de performance para fornecer o bem ou o serviço, especificado por si mesma, ou pode contratar outra parte (por exemplo, subcontratada) para satisfazer a totalidade ou parte da obrigação de performance em seu nome.
[…]
B36. A entidade é agente se a obrigação de performance da entidade for providenciar o fornecimento de bens ou serviços especificados por outra parte. A entidade, que é o agente, não controla o bem ou o serviço especificado fornecido pela outra parte antes que o bem ou o serviço seja transferido ao cliente. Quando (ou como) a entidade, que seja agente, satisfizer à obrigação de performance, ela deve reconhecer a receita equivalente ao valor de qualquer taxa ou comissão sobre a qual espera ter direito por providenciar que a outra parte forneça seus bens ou serviços especificados, que serão fornecidos por essa outra parte. A taxa ou a comissão da entidade pode ser o valor líquido da contraprestação que a entidade retiver após pagar à outra parte a contraprestação recebida pelos bens ou serviços a serem fornecidos por essa outra parte.
A entidade será considerada um mero agente se sua obrigação for apenas providenciar o fornecimento de bens ou serviços especificados por outra parte, o principal. Por essa razão, ao satisfazer suas obrigações, o agente deve reconhecer somente a receita equivalente ao valor da contraprestação a quem tem direito por viabilizar que a outra parte forneça seus bens/serviços, sendo apenas essa sua receita própria.
É assim, portanto, que a receita, para ser tributável, pressupõe que o patrimônio da entidade tenha aumentado e esteja disponível, de modo que esse aumento deve ser sempre entendido a partir de negócios jurídicos realizados por seu titular e, também, pela forma como suas operações são organizadas, motivo pelo qual a interpretação constante do Acórdão n. 1201.005.890, que afasta a tributação nesses casos, mostra-se correta.
Artigo publicado no Blog da Dootax, em 25 de julho de 2023.
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]
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