19 | 07 | 2023

Constituição e limites da comissão do PAD sob a perspectiva do STJ

O objeto do processo administrativo disciplinar (PAD) é a apuração de possíveis infrações praticadas por um servidor no exercício de suas atribuições ou decorrentes de ações e omissões relacionadas às funções do cargo.

O processo se desenvolve no âmbito interno da administração pública [1] e os seus procedimentos são impulsionados por outros servidores públicos, designados para a comissão processante pelo superior hierárquico competente para a instauração do processo. Além disso, o processo detém alto potencial lesivo, cenário que pode gerar uma série de inseguranças para o servidor que se encontra na posição de acusado.

Por isso, é pertinente conhecer como se dá a formação da comissão processante e os limites de sua atuação. Para auxiliar nisso, vale destacar alguns dos posicionamentos já firmados pelo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.

De acordo com a lógica estabelecida na Lei nº 8.112/1990 [2], a constituição da comissão processante é o ato que marca formalmente o início do processo administrativo disciplinar (artigo 151, I).

A mesma legislação determina que a comissão deverá ser composta por três servidores estáveis [3], dentre os quais haverá um presidente e um secretário, nomeado pelo primeiro. Para presidir a comissão, o membro deve preencher um de dois requisitos: ocupar cargo efetivo superior ou de mesmo nível ou possuir escolaridade igual ou superior ao do servidor acusado (artigo 149) [4].

A designação dos membros da comissão é um ato unilateral, que não está sujeito ao contraditório. No entanto, o servidor acusado poderá arguir a suspeição ou o impedimento de um ou mais membros a qualquer tempo do processo, como parte do seu direito de ampla defesa.

O §2º do artigo 149 da Lei nº 8.112/1990 veda expressamente a participação de “cônjuge, companheiro ou parente do acusado, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau” na comissão processante.

Além disso, a Lei do Processo Administrativo (Lei nº 9.784/1999) amplia os casos de impedimento (artigo 18), definindo que também não poderá atuar no processo administrativo o servidor que “tenha interesse direto ou indireto na matéria” (inciso I) ou “esteja litigando judicial ou administrativamente com o interessado ou respectivo cônjuge ou companheiro” (inciso III).

A Lei nº 9.784/1999 também estabelece a possibilidade de arguir a suspeição “de autoridade ou servidor que tenha amizade íntima ou inimizade notória com algum dos interessados ou com os respectivos cônjuges, companheiros, parentes e afins até o terceiro grau” (artigo 20).

A arguição de suspeição, entretanto, deve ser motivada, não sendo suficiente a alegação genérica de amizade ou inimizade. Por exemplo, o simples fato de um servidor designado para a comissão pertencer ao mesmo setor do acusado, mantendo uma relação de mera cordialidade, ou até a sua participação (como membro da comissão ou testemunha) em outros procedimentos apuratórios em face do mesmo investigado são insuficientes para quebrar a imparcialidade: a relação precisa ser de natureza pessoal — e comprovável.

Nesse ponto, a posição do Superior Tribunal de Justiça é pacífica, já existindo inúmeros temas fixados, conforme se verifica da edição nº 140 da Jurisprudência em Teses:

“Tema nº 3: As alegações de imparcialidade e de suspeição de membro da comissão processante devem estar fundadas em provas, não bastando meras conjecturas ou suposições desprovidas de qualquer comprovação.

Tema nº 4: A imparcialidade de membro de comissão não fica prejudicada tão somente por este compor mais de uma comissão processante instituída para apuração de fatos distintos que envolvam o mesmo servidor.

Tema nº 5: A simples oitiva de membro da comissão processante, de autoridade julgadora ou de autoridade instauradora como testemunha ou como informante no bojo de outro processo administrativo ou até mesmo penal que envolva o investigado não enseja, por si só, o reconhecimento da quebra da imparcialidade.”

Outra obrigação da comissão processante é a de preservação do “sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da administração”, conforme a parte final do artigo 150 da Lei nº 8.112/1990.

A Controladoria-Geral da União já analisou a abrangência do sigilo imposto aos processos administrativos em curso, tratando-se essencialmente da impossibilidade de acesso por terceiros (isto é, “aquelas pessoas absolutamente estranhas ao PAD, tais como os administrados em geral e agentes públicos não envolvidos com a apuração ou com o tratamento das informações constantes do procedimento disciplinar” [5]).

No entanto, um eventual descumprimento do dever de sigilo na condução do PAD não acarreta imediata nulidade, sendo necessário que o servidor acusado consiga demonstrar o efetivo prejuízo que tal violação teria causado à sua defesa. Caso contrário, o processo será considerado regular:

“ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. SERVIDOR FEDERAL. FUNASA. DEMISSÃO. […] 6. Alegação de quebra de sigilo do PAD que, no entanto, não se faz acompanhar da demonstração do prejuízo que daí possa ter resultado para os interesses da parte impetrante. Incidência do brocardo pas de nullité sans grief.” (STJ, MS nº 22.523/DF, relator ministro Sergio Kukina, 1ª Seção, 22/6/2022).

Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça já estabeleceu que até mesmo declarações públicas a respeito de PAD em andamento não acarretam, sozinhas, nulidades:

“ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. PENA DE DEMISSÃO. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS CAPAZES DE MACULAR A LEGALIDADE DO PROCEDIMENTO DISCIPLINAR. […] 15. Declarações do Corregedor-Geral da Polícia Rodoviária Federal, na mídia, sobre os resultados da denominada ‘Operação Mercúrio’, por constituir procedimento absolutamente normal em função do cargo que exerce, não invalida o procedimento disciplinar. […]

[…] Nesse último aspecto, afirma o impetrante que o Corregedor-Geral da Polícia Rodoviária Federal […], autoridade que nomeou os membros da comissão disciplinar, compareceu à sede do 3º DR/DPRF/AM e, ao lado do Delegado Federal que presidira as investigações na seara criminal, emitiu prejulgamento contra os investigados.

[…] a alegação vem destituída da mínima comprovação, revelando o propósito do impetrante de anular, a qualquer custo, o procedimento disciplinar que lhe rendeu a pena de demissão, com estrita observância do contraditório e da ampla defesa.


No particular, limitou-se o impetrante a juntar matérias publicadas na rede mundial de computadores (internet), contendo declarações do então Corregedor-Geral da Polícia Rodoviária Federal sobre os resultados da denominada “Operação Mercúrio”, procedimento absolutamente normal em função do cargo que exercia à época, em nome da transparência e publicidade da atuação estatal, de interesse de toda a coletividade. […]” (STJ, MS nº 12.803/DF, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 3ª Seção, j. 9/4/2014).

De modo geral, é notável a subjetividade envolvida na análise da “conduta geral” da comissão processante. Mesmo existindo indicativos do comportamento esperado dos membros (imparcialidade, discrição etc.), a sua inobservância ou flexibilização somente será capaz de obstar a continuidade do PAD se comprovado efetivo prejuízo ao servidor acusado. Assim, a alegação de descumprimento das regras impostas à comissão processante terá de ser acompanhada de robustas provas do prejuízo à ampla defesa e ao contraditório do servidor, caso contrário, não haverá nulidade (pas de nullité sans grief).

Por outro lado, há casos em que a inobservância do dever de prática de atos estruturais (imprescindíveis) do PAD pela comissão processante não demanda tamanha comprovação do prejuízo, por ser ele inerente ao acontecimento, como é o caso da falta de citação do acusado, da ausência de fundamentação dos atos decisórios, da insuficiência probatória, dentre outros. Nessas situações, a nulidade parcial ou total do processo é flagrante.

Essa variação do “tamanho do prejuízo” causado por um equívoco dos membros da comissão — e a importância dada a esse exame — pode ser compreendida pela própria lógica dos princípios que regem a administração pública. Para ilustrar: deve-se observar a eficiência do processo (admitindo-se uma formalidade moderada) e o interesse público envolvido na sua resolução, ao mesmo tempo em que não se pode desviar da finalidade do ato público (para que o poder disciplinar não sirva a interesses alheios) e, por óbvio, da garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório.

Em síntese, a condução do PAD pela comissão processante somente será considerada efetivamente lesiva se, sopesados os princípios envolvidos, findar comprovado que foram violadas as garantias basilares da Constituição, relacionadas ao pleno exercício da defesa pelo acusado.

Diante do exposto, reitera-se a importância da atenção à conduta da comissão processante, aos contornos dos atos processuais praticados e até mesmo àqueles atos que possam não ter sido observados. Para tanto, sob a ótica do servidor acusado, é recomendável a constituição de procurador para auxiliá-lo na defesa no PAD, ainda que não seja obrigatório, como forma de reforçar a vigilância dos seus direitos e da regularidade do processo.


[1] Com frequência, a investigação se desenvolve no próprio órgão de vinculação do servidor, embora o Superior Tribunal de Justiça já tenha estabelecido que “na composição de comissão de processo administrativo disciplinar, é possível a designação de servidores lotados em órgão diverso daquele em que atua o servidor investigado, não existindo óbice nas legislações que disciplinam a apuração das infrações funcionais” (Jurisprudência em Teses nº 140, Tema 6).

[2] Para facilitar a análise e por se tratar da normativa geral, apta a preencher eventuais lacunas das normas hierarquicamente inferiores, esse texto abordará o PAD no âmbito da legislação dos servidores públicos federais.

[3] A estabilidade, de acordo com o Superior Tribunal de Justiça, é no serviço público e não necessariamente no cargo ocupado pelo servidor no momento da designação: ADMINISTRATIVO. PROCESSO DISCIPLINAR. NULIDADE. INEXISTÊNCIA. COMISSÃO PROCESSANTE. SERVIDOR ESTÁVEL NO SERVIÇO PÚBLICO. IMPEDIMENTO OU SUSPEIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. PROVA DE PREJUÍZO. AUSÊNCIA. 1. O impedimento legal a que se refere o art. 149 da Lei n. 8.112/1990 e que, vale destacar, visa garantir a imparcialidade dos membros os quais compõem a comissão processante, diz respeito ao serviço público e não ao cargo ocupado no momento de sua designação. […] (STJ, AgInt no MS nº 18018/DF, rel. min. Gurgel de Faria, 1ª Seção, j. 2/3/2021).

[4] Isso significa, por exemplo, que uma comissão instaurada para investigar a conduta de um servidor ocupante de cargo de nível superior poderá ser presidida por um servidor que ocupe cargo de nível médio, desde que a sua escolaridade seja também de nível superior.

[5] Conforme a Nota Técnica nº 324/2020/CGUNE/CRG, o sigilo abrange a mencionada impossibilidade de acesso por terceiros, mas não o acesso “por agentes legalmente autorizados, […], além do acusado, de seu advogado e da comissão designada, a autoridade instauradora, seu substituto eventual, e demais agentes públicos que atuam como longa manus daquela, com atribuições de monitoramento da execução das ações apuratórias planejadas, adoção de providências necessárias à regular apuração; e registro regular de informações dos procedimentos correcionais nos respectivos sistemas de acesso restrito”.

Artigo publicado Revista Consultor Jurídico, em 8 de abril de 2023.

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