07 | 04 | 2020

Covid-19: quando solicitar o cancelamento da ata de registro de preços?

Por Fernanda Schramm

Os impactos econômicos decorrentes do combate à pandemia do coronavírus afetam entes públicos e privados. Embora a maior parte dos meios de comunicação noticie os prejuízos decorrentes da suspensão de serviços públicos e paralisação das atividades da indústria e do comércio, o período não é só de escassez. Muitas empresas têm experimentado um aumento significativo da demanda, sendo representativo o caso dos fornecedores de produtos de limpeza e higiene hospitalar – álcool em gel, luvas, máscaras descartáveis e similares.

No entanto, o aumento da demanda e o ritmo imposto para a celebração dos contratos, entrega dos bens adquiridos ou prestação dos serviços exige uma dose de cautela por parte dos fornecedores. Embora o aumento da demanda seja benéfico para o particular, é preciso ter prudência para não ir com excessiva sede ao pote. A advertência vale, sobretudo, para os contratos celebrados sob a sistemática do Sistema de Registro de Preços (SRP), prevista no artigo 15 da Lei Federal n. 8.666/1993 e regulamentado pelo Decreto Federal n. 7.892/2013.

O Sistema de Registro de Preços (SRP) é caracterizado pela inexistência de garantia de contratação dos quantitativos estimados no edital. A ata de registro de preços traduz uma espécie de contrato preliminar, por meio do qual o particular assume a obrigação de celebrar possíveis contratos futuros, que devem observar os preços e as demais condições preestabelecidas na ata. O órgão gerenciador da ata de registro de preços, no entanto, contrata a quantidade que quiser, quando e se entender necessário. Por exemplo, o licitante deve estar preparado tanto para fornecer a totalidade do quantitativo de máscaras descartáveis prevista na ata de registro de preços, quanto para não vender sequer uma única máscara.

É bastante comum que o órgão gerenciador não contrate os quantitativos máximos previstos na ata de registro de preços. O quantitativo máximo costuma ser superestimado, funciona como uma espécie de margem de segurança para a Administração Pública. É natural, pois, que os fornecedores se exponham a essa margem de segurança. Em condições normais, não há maiores embaraços. Mesmo que o licitante contratado seja surpreendido com uma demanda muito superior à estimada – dentro do limite máximo do edital – é possível buscar, no próprio mercado privado, outros fornecedores, negociar preços e continuar abastecendo a Administração Pública. A situação muda de figura quando o mercado passa a vivenciar um aumento desproporcional da demanda por determinados gêneros.

Há uma espécie de corrida desenfreada por máscaras descartáveis e álcool em gel – absolutamente compreensível, em tempos como este – associada à necessidade real dos estabelecimentos de saúde. Isso criou um cenário de escassez que impacta diretamente nos preços de toda a cadeia produtiva. Somam-se os efeitos nocivos das medidas de restrição à circulação de bens e pessoas. Não só as máscaras descartáveis e o álcool em gel ficam mais caros, mas o transporte e fornecimento desses bens é bastante dificultado, o que contribui para o aumento do preço final. A alta dos preços é tão evidente que o § 3º do artigo 4º-E da recém-editada Lei n. 13.979/2020 autoriza que a Administração contrate por valores superiores à média de mercado, em função das “oscilações ocasionadas pela variação de preços”.

Para situações de anormalidade, o artigo 17 do Decreto Federal n. 7.892/2013 já antevê a possibilidade de revisão dos preços registrados em ata quando houver “fato que eleve o custo dos serviços ou bens registrados, cabendo ao órgão gerenciador promover as negociações junto aos fornecedores”. Em continuidade, o artigo 18 detalha o procedimento aplicável às hipóteses em que o preço de mercado se mostrar inferior ao registrado em ata – o que acarretaria prejuízo à Administração Pública. O artigo 19, por sua vez, descreve as medidas cabíveis quando há uma alta nos preços de mercado – o que tornaria o cumprimento da ata prejudicial ao particular.

Todos os três artigos tratam da ata de registro de preços, não dos contratos que forem celebrados a partir dela. Segundo o artigo 19, se o preço de mercado tornar-se superior ao preço registrado em ata e o fornecedor não puder honrar o compromisso, o órgão gerenciador poderá: (i) liberar o fornecedor sem a aplicação de qualquer penalidade, desde que a alta dos preços seja devidamente comprovada e comunicada antes do pedido de fornecimento; e (ii) convocar os fornecedores remanescentes para negociação.

A leitura do artigo 19 do Decreto Federal n. 7.892/2013 pode levar à conclusão de que a norma veda a revisão dos preços registrados em ata em favor do particular. A redação do dispositivo, no entanto, deve ser interpretada em conjunto com o caput do artigo 17, que admite expressamente a possibilidade de negociação junto ao fornecedor, inclusive em função da alta dos preços de mercado. Em complemento, o inciso II do artigo 19 estabelece que, após a liberação do adjudicatário, os demais fornecedores devem ser convocados para igual oportunidade de negociação – o que pressupõe que tenha havido uma negociação com o fornecedor registrado em primeiro lugar. E, se há negociação, é porque há margem para revisão dos preços pactuados em ata.

A sistemática prevista no Decreto Federal n. 7.892/2013 é confusa, os dispositivos não fornecem uma cronologia didática. O que se extrai do dispositivo é que o fornecedor deve, diante da alta dos preços de mercado, comunicar imediatamente a impossibilidade de honrar o valor registrado. Depois disso, o órgão gerenciador deve convocar, pela ordem, os fornecedores remanescentes, caso haja cadastro de reserva, para verificar se há alguém disposto a fornecer o produto ou prestar o serviço pelo valor inicialmente registrado – a despeito da alta de mercado.

Se não houver cadastro de reserva ou se nenhum dos fornecedores remanescentes aceitar o preço registrado em ata, o órgão gerenciador pode, então, negociar com o adjudicatário sobre a revisão dos valores. Caso não haja consenso entre o órgão gerenciador e o adjudicatário, a possibilidade de negociação deve ser estendida a eventuais integrantes do cadastro de reserva – é o que se depreende do inciso II do artigo 19. Por fim, se houver consenso sobre o valor, o órgão gerenciador deve demonstrar que a revisão do preço é mais vantajosa do que a realização de uma nova licitação.

Ou seja, a revogação prevista na parte final do parágrafo único do artigo 19 do Decreto Federal n. 7.892/2013 ocorre quando as negociações entre o órgão gerenciador e os fornecedores forem malsucedidas, quando as partes não concordarem sobre o valor a ser revisado. Trata-se de uma alternativa, não de uma obrigação imposta ao órgão gerenciador. E tendo a possibilidade de escolher, a revisão dos preços registrados em ata pode ser uma solução mais vantajosa ao interesse público, sobretudo em situações de crise, pois não exige a realização de um novo procedimento licitatório, de nova pesquisa de preços e fornecedores etc.

Mas, se não houver êxito nas negociações, a ata de registro de preços deve ser revogada. A revogação pode resultar no lançamento de procedimento licitatório para a formalização de uma nova ata de registro de preços ou até mesmo em uma contratação direta, devendo-se observar, tanto num caso, como no outro, os procedimentos da Lei n. 13.979/2020 para aquisição de bens, serviços, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública.

O inciso I do artigo 19 do Decreto Federal n. 7.892/2013 também impõe uma limitação temporal ao pedido de reequilíbrio. A norma autoriza a liberação do fornecedor, sem sanção, apenas se a alta dos preços tiver sido comunicada antes da autorização de fornecimento, da emissão da nota de empenho pela Administração. O fornecedor que, ciente da alta dos valores de mercado, não comunicar o fato ao órgão gerenciador e não solicitar a liberação da obrigação, assume o risco de ser penalizado pela recusa ao cumprimento da obrigação contratual.

Em que pese as críticas devidas ao dispositivo, grande parte dos editais reitera a determinação de que o pedido de liberação da obrigação – em função da alta dos preços – deve ser comunicado antes da emissão da nota de empenho ou do pedido de fornecimento. Também não são raras as decisões judiciais que chancelam a tese da preclusão, ou seja, da perda do direito ao reequilíbrio econômico-financeiro. Embora haja espaço para discussão, os fornecedores da Administração Pública devem, quando for o caso, se antecipar e comunicar imediatamente a impossibilidade de cumprir os valores registrados em ata.

A advertência é fundamental no momento vivenciado, porque as empresas vêm experimentando uma grande pressão dos entes públicos para entregar os produtos já registrados em atas celebradas antes da crise de saúde decorrente da pandemia de Covid-19. A solicitação de cancelamento, repita-se, deve ser formulada antes do pedido de fornecimento, para evitar que seja aventada a consumação da preclusão do direito à recomposição.

Há a possibilidade de que o processo licitatório tenha sido iniciado antes do surto de coronavírus, mas que a licitante vencedora só tenha sido convocada para assinar a ata agora, em meio à pandemia. Os preços, por evidente, são outros. O licitante vencedor, se assinar a ata sem solicitar a revisão dos valores, estará obrigado a fornecer os produtos ou serviços conforme os preços registrados.

A situação é diferente caso o licitante vencedor tenha assinado um contrato de fornecimento continuado, por exemplo. O equilíbrio econômico-financeiro dos contratos é resguardado pelo inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal. Significa, pois, que o fornecedor que já tenha celebrado o contrato pode pleitear a revisão dos valores pactuados diante do superveniente aumento dos preços provocado pela pandemia. O § 3º do artigo 12 do Decreto Federal n. 7.892/2013 permite expressamente a alteração dos contratos celebrados a partir de atas de registro de preços nas hipóteses descritas no artigo 65 da Lei Federal n. 8.666/1993, o que inclui o reequilíbrio econômico-financeiro.

Mesmo que o contrato já tenha sido assinado, é altamente recomendável que o fornecedor solicite o reequilíbrio antes de entregar o produto ou prestar o serviço. Ou, pelo menos, que comunique formalmente a necessidade de revisão. Os órgãos de controle têm reiterado o entendimento – altamente questionável, diga-se de passagem – de que a entrega do bem, a assinatura de aditivo ou a prorrogação do contrato seriam indicativos de que o particular anuiu com os valores pactuados.

Portanto, qualquer que seja a fase da licitação ou do contrato, o pedido de reequilíbrio deve ser formulado com muita rapidez e com elementos concretos que evidenciem as circunstâncias supervenientes que alteraram as bases da proposta. Algumas empresas, preocupadas em atender à demanda, têm entregado os produtos e postergado a solicitação de reequilíbrio para um momento posterior, talvez quando o cenário estiver mais calmo. Embora possa traduzir uma expressão de boa-fé do fornecedor, tal conduta pode resultar em prejuízos milionários às empresas.

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