11 | 11 | 2020

Existe um conceito jurídico-contábil de receita?

Por Rodrigo Schwartz Holanda

O terceiro artigo desta série sobre o Direito Tributário e a Contabilidade concentra as atenções num tema tão antigo quanto controvertido: o conceito jurídico de receita e o seu inter-relacionamento com a contabilidade.

Sendo a legalidade cogente na tributação, o ponto de partida para examinar a temática importa no reconhecimento de que receita é um termo constante da Constituição Federal. Por isso, a formação da obrigação tributária pressupõe que o intérprete mantenha contato com enunciados prescritos no texto constitucional, na lei complementar, na legislação tributária e, em última análise, nos enunciados contábeis. É tarefa de o sujeito passivo sistematizar todos esses textos, construir a norma e lançar o tributo. Tudo, veja-se, sem deixar de analisar se os fatos contábeis traduzidos como receita estão, ou não, habilitados a serem oferecidos à tributação.

O sistema contábil está em constante relação com o direito positivo. Por mais que se sustente que o fechamento operativo do direito afasta a possibilidade de elementos estranhos ao texto legal comparecerem na Regra Matriz de Incidência Tributária[1], dialogicamente, a legislação e as diretrizes contábeis condicionam-se mutuamente. Basta passar os olhos nas decisões que enfrentam a matéria para atestar a veracidade da afirmação.

O racional por trás do acórdão gerado no julgamento do RE n. 586.482, que examinou a constitucionalidade da incidência da contribuição ao PIS e à COFINS sobre as vendas inadimplidas, é uma evidência. O fundamento central da decisão, de que a falta do ingresso financeiro subjacente ao reconhecimento da receita não compromete a ocorrência do fato gerador, foi pautado pelo regime de competência previsto na Lei n. 6.404/1976 (LSA) e na Resolução n. 750/1993 do Conselho Federal de Contabilidade. Já no Resp n. 1.432.952/PR, por outro lado, decidiu-se que a correção e os juros – que possuem um tratamento contábil próprio – acoplados às prestações são representativos da receita bruta para fins tributários.

Não foi diferente no julgamento do RE n. 574.706/PR, relativo à exclusão do ICMS da base de cálculo da contribuição ao PIS e à COFINS. A questão remonta ao ano de 2017 e aparentemente dispensa interações profundas com a contabilidade. O que se observa no julgamento é que os votos, tanto os favoráveis quanto os contrários, tomam como um dos fatores determinantes a relação assumida entre o direito e a contabilidade, conforme se extrai da manifestação dos Ministros (seis favoráveis à tese do contribuinte e cinco contrários).

Embora estivessem a delimitar o conceito de receita acomodado pela legislação federal à luz da Constituição Federal, observa-se que, nas 227 páginas do acórdão, há 134 menções à ciência contábil – ainda que parcela significativa das ponderações seja em caráter de obiter dictum ou para reafirmar o distanciamento das disciplinas[2].

Note-se que há certa convergência entre essa decisão do Supremo Tribunal Federal e a disciplina contábil. Consta do Pronunciamento CPC n. 47, vocacionado às receitas de contratos com clientes, que “o preço da transação é o valor da contraprestação à qual a entidade espera ter direito em troca da transferência dos bens ou serviços prometidos ao cliente, excluindo quantias cobradas em nome de terceiros (por exemplo, alguns impostos sobre vendas)”[3] (item 47).

Por mais que os CPCs recepcionem as normas emitidas pelo IASB (IFRS) – que foram erigidas pela perspectiva de um IVA calculado “por fora”, diferentemente do modelo brasileiro, que é “por dentro” –, ambas as normas, a jurídica e a contábil, buscam a mesma coisa: o resultado experimentado pelo titular do patrimônio.

A norma jurídica tem por objetivo capturar os acréscimos patrimoniais reveladores de capacidade contributiva de forma definitiva para sobre eles incidir a tributação. A norma contábil busca evidenciar a evolução patrimonial para fornecer informações úteis aos usuários da contabilidade. A identidade de conclusões não é coincidência.

Mas isso significa que existe um conceito jurídico-contábil de receita?

A opção do legislador por assumir uma relação de dependência parcial entre a legislação tributária e a contabilidade, assim como o expediente legislativo de adições e exclusões ao lucro líquido – receita corresponde a um fator positivo do resultado –, denunciam que a resposta só pode ser negativa. A questão, no entanto, assume maior complexidade nos casos em que a legislação é omissa com relação aos distanciamentos das disciplinas. Mesmo no vácuo legislativo, a resposta permanece sendo negativa. Isso, de um lado, significa que nem todos os valores que evidenciam uma mutação patrimonial nas demonstrações financeiras – os que transitam pelas chamadas “contas de resultado” – traduzem um acréscimo patrimonial tributável. Da mesma forma, podem existir acréscimos patrimoniais que não tenham sido capturados pela contabilidade.

Vejamos a situação apresentada na Solução de Consulta COSIT n. 198/2019. A consulente teve a oferta pública de companhia da qual detinha a totalidade das ações deferida pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Naquela situação, mesmo alienando parcela significativa das ações, a entidade continuou com o controle societário da companhia, submetendo-se às disposições contidas do Pronunciamento CPC n. 36(R3), que prescreve que “a entidade deve reconhecer diretamente no patrimônio líquido qualquer diferença entre o valor pelo qual são ajustadas as participações de não controladores e o valor justo da contrapartida paga ou recebida e deve atribuir essa diferença aos proprietários da controladora”.

Em linhas muito gerais, o cerne do questionamento consistia em saber se o fato de a ciência contábil traduzir a operação em contas patrimoniais fazia com que o resultado da operação devesse, ou não, ser adicionado ao lucro líquido do período de apuração. Mostra-se correto o posicionamento da administração fazendária no sentido de ser devida a tributação, porquanto houve a realização do ganho com a alienação, ainda que não se descarte uma segunda leitura sobre o tema. A conclusão é que, independentemente do resultado contábil, há resultado para fins tributários.

Agora vejamos uma situação contrária, em que há receita para contabilidade, mas não há incidência tributária. Observemos a eliminação de passivos consubstanciados em juros e multas indedutíveis, decorrentes da adesão de parcelamentos tributários. Trata-se de situação correspondente à receita para fins contábeis, mas que não é habilitada a produzir efeitos tributários, conforme já manifestado neste outro artigo.

As próprias disciplinas estabelecem mecanismos de neutralização de eventuais interferências indesejadas. Entre muitas situações que poderiam ser apresentadas, é possível observar tal expediente na legislação de regência da COFINS não cumulativa, que prescreve que a tributação das receitas ocorrerá “independentemente da denominação ou classificação contábil” (art. 1º, Lei n. 10.833/2003), assim como nos pronunciamentos contábeis, que estabelecem que “a entidade deve fazer uso de outras contas de controle interno, como, por exemplo, ‘Receita Bruta Tributável’, para fins fiscais e outros” (item 112A, CPC n. 47).

Tudo isso nos levaria a crer que, afora o disposto nas leis ns. 11.638/2007, 11.941/2009, 12.973/2014 e as partes do Código Civil e da LSA dedicadas à contabilidade, as regras não incorporadas e as demonstrações contábeis seriam meramente informativas, o que se deduziria a partir das seguintes premissas: (i) a norma tributária se manifesta sempre por meio da lei, o que não se encontra nos CPCs e nos demais atos infralegais, (ii) existem situações em que mesmo sem resultado contábil, ocorre a tributação, (iii) assim como há eventos em que há “trânsito por contas de resultado” irrelevantes para fins tributários.

Sendo tudo isso verdadeiro, resta uma indagação: por que os pronunciamentos judiciais e administrativos recorrem, com maior ou menor frequência e intensidade, às noções contábeis para resolver algumas questões controvertidas?

Recorre-se à contabilidade, primeiro, pela técnica legislativa do “reenvio”, que estabelece uma ponte de integração entre os sistemas normativos – jurídico e contábil, no caso – e, segundo, porque lá se encontram boas soluções para os casos complexos que se apresentam na convivência entre o fisco e o contribuinte. É difícil identificar, no campo da generalidade e abstração do direito positivo, normas que disciplinem com a mesma precisão a aferição de resultados de uma padaria, de uma seguradora, de uma entidade que explora programas de fidelidade, de uma política de rebates no contexto de operações com varejistas ou de uma multinacional com operações combinadas. Os parâmetros de mensuração, reconhecimento e qualificação das receitas fornecidos pela ciência contábil são mais assertivos e acurados do que os previstos pela legislação tributária.

Não é por isso que o conceito de receita deixa de ser jurídico. Admitir o contrário significaria aceitar que normas que não se submetem ao crivo legislativo possam disciplinar, o que não se mostra correto. É assim que Ricardo Mariz de Oliveira, com a precisão que lhe é peculiar, destaca algumas características para a compreensão do conteúdo do conceito jurídico de receita, elencando elementos característicos e analíticos em cinco enunciados de pressupostos afirmativos, quatro enunciados específicos afirmativos e quatro enunciados específicos negativos, chegando a afirmar que “não existe uma definição única e geral para receita, de modo que, em cada situação, receita será uma adição patrimonial dependente da definição jurídica aplicável”[4].

É assim, veja-se, porque cada atividade produz lucros de formas distintas. Só os lucros produzidos a partir da noção jurídica de patrimônio são reveladores de capacidade contributiva. Muito embora seja recomendável que a contabilidade seja emprestada para preencher o conteúdo normativo a fim de eliminar as ambiguidades e vaguezas do conceito jurídico de receita, há, por certo, limites. Os artigos 3º, 43, 44 (receita é o fato-acréscimo do Imposto sobre a Renda), 109, 110, 114, 116, 117 e 118, todos do Código Tributário Nacional, estabelecem amarras rígidas e instransponíveis pela contabilidade. Nessa zona, cabe ao intérprete o preenchimento da norma com os parâmetros de reconhecimento e mensuração previstos pela ciência contábil.

A partir deste cerco normativo, os critérios para o reconhecimento, mensuração, identificação das obrigações de desempenho e a própria natureza da receita (se operacional ou não)[5] podem ser abalizadas pelos parâmetros contábeis. É retendo essas ideias, inclusive, que se deve examinar o conceito de receita bruta contido no artigo 12 do Decreto-Lei n. 1.598/1977[6]. As regras contábeis, assim, devem ser consideradas na delimitação do regime jurídico aplicável às receitas auferidas pela pessoa jurídica e, de certa forma, auxiliar na resolução de inúmeras questões controvertidas que permeiam o inter-relacionamento entre Direito Tributário e a Contabilidade[7].

A conclusão é de que o conceito contábil de receita pode ser emprestado para preencher as lacunas interpretativas do conceito jurídico de receita nas situações colocadas no cotidiano do Fisco e do Contribuinte. Trata-se de uma perspectiva que representa uma quebra de paradigma e merece maior amadurecimento.

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[1] Consta, inclusive, no principal Manual de Contabilidade Societária do país: “no Brasil, nossa Constituição impede que órgãos governamentais deleguem funções a outras instituições. Assim, não será́ possível termos o que ocorre em outros países, com os órgãos federais de controle simplesmente deliberando por delegar seu poder de emitir normas a seus ‘CPCs’ (FASB, IASB etc.). Assim, o processo acordado no Brasil é o de o CPC, primeiramente, emitir seu Pronunciamento Técnico, após discussão com as entidades envolvidas e audiência pública; posteriormente, tem-se o órgão público (CVM, BACEN, SUSEP etc.) ou mesmo privado (CFC etc.) emitindo sua própria resolução, acatando e determinando o seguimento desse Pronunciamento do CPC. Assim fica o Pronunciamento transformado em ‘norma’ a ser seguida pelos que estiverem subordinados a tais órgãos. Com isso, a CVM, por exemplo, emite sua Deliberação (como tem feito, desde 1986, com pronunciamentos emitidos pelo IBRACON) aprovando o Pronunciamento do CPC; o próprio CFC emite sua Resolução fazendo o mesmo, idem com o BACEN, a SUSEP etc. Estamos, pois, numa nova fase, quase de civilidade até, no Brasil, que precisamos apoiar, incentivar e com ele colaborar”. IUDÍCIBUS, S. et al. Manual de contabilidade societária: aplicável às demais sociedades de acordo com as normas internacionais e do CPC. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 103.

[2] Indo além, é interessante analisar o recorte dado pelo magistrado catarinense Alcides Vetorazzi, cuja formação é também em Ciência Contábil, ao ser provocado a aplicar o aludido precedente e se manifestar sobre o montante a ser excluído da base de cálculo do ICMS, se correspondente ao imposto pago ou destacado no documento fiscal. A fundamentação construída no julgado foi apresentada a partir de uma série de noções contábeis. Para explicar que o ICMS a ser excluído é o destacado na nota fiscal, e não o efetivamente desembolsado na operação de saída, o magistrado registrou que “a contabilidade segrega o ICMS incidente nas compras e nas vendas não considerando esse tributo custo tampouco receita”. Ainda nas palavras do magistrado: “Vale aduzir que, consoante regras comerciais, contábeis e fiscais, (a) o custo das mercadorias e serviços vendidos (inciso II suso) é apurado também considerando os valores das compras de mercadorias e insumos líquidos do ICMS destacado nos documentos fiscais de compra, porquanto, esses constituem em direito creditório da empresa adquirente junto ao Fisco estadual, e (b) em decorrência, o ICMS incidente sobre compras, da mesma forma que o incidente sobre vendas, não é receita nem despesa e tampouco é computado como custo de aquisição na avaliação dos estoques de mercadorias/insumos na empresa adquirente”. Sentença em Mandado de Segurança nº 5012739­06.2017.4.04.7200/SC, em trâmite na Justiça Federal de Santa Catarina.

[3] Previsão equivalente pode ser identificada no Item 8 do revogado CPC 30, vigente em 2017: “As quantias cobradas por conta de terceiros – tais como tributos sobre vendas, tributos sobre bens e serviços e tributos sobre valor adicionado não são benefícios econômicos que fluam para a entidade e não resultam em aumento do patrimônio líquido. Portanto, são excluídos da receita.”

[4] OLIVEIRA, R. M. de. Fundamentos do imposto de renda (2020). v. 1. São Paulo: IBDT, 2020, p. 132-135.

[5] Conforme a redação dada pela Lei n. 11.941/2009, no artigo 187, IV, da LSA a expressão receitas operacionais e não operacionais foi substituída pelas expressões “outras receitas” e “outras despesas”.

[6] O dispositivo prescreve que a receita bruta compreende o (i) produto da venda (inciso I), (ii) o preço dos serviços prestados (inciso II), (iii) o resultado auferido nas operações de conta alheia (inciso III) e (iv) as “receitas da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica” que não decorram de venda, serviços ou operações de conta alheia (inciso IV). O último inciso representa a parte mais controvertida do dispositivo. O alcance da expressão “receitas da atividade ou objeto principal” deve ser compreendido a partir da relação assumida com o artigo que o antecede, o 11 do Decreto-Lei n. 1.598/1977. O parágrafo 2º desse dispositivo estabelece que o lucro operacional é o “resultado das atividades, principais ou acessórias, que constituam objeto da pessoa jurídica”. Novamente recorrendo às lições de Ricardo Mariz de Oliveira, vale lembrar que a Lei Complementar n. 95/1998, artigo 11, inciso III, alínea “c”, impõe que os parágrafos complementam o caput do artigo, salvo as hipóteses em que forem exceções a ele.

Nessa ordem de ideias, considerando-se que a Lei n. 12.973/2014 não alterou a redação do § 2º do artigo 11 do Decreto-Lei n. 1.598/1977 e do inciso I do artigo 187 da Lei n. 6.404/1976 e, afora as muitas observações que podem ser feitas com relação à conjugação de todos esses dispositivos, se a materialidade compreendida pela receita bruta, trazida pela Lei n. 12.973/2014, é associada ao conteúdo do artigo 11, que, por sua vez, abarca as receitas, principais ou acessórias que “constituam objeto da pessoa jurídica”, então o inciso IV do artigo 12 “necessariamente também é integrante do resultado operacional e também se prende à definição dada ao objeto da pessoa jurídica pelo estatuto ou pelo contrato social”. OLIVEIRA, R. M. de. Fundamentos do imposto de renda (2020). v. 1. São Paulo: IBDT, 2020, p. 265.

[7] Novamente no tom ilustrativo, vejam-se dez assuntos que permeiam as controvérsias jurídico-contábeis: (i) redução de passivos, (ii) do deságio na antecipação de recebíveis, (iii) de bonificações, descontos, abatimento de preços (rebates), (v) da base de cálculo na atividade de intermediação (agentes), (vi) da recuperação de custos, (vii) das vendas inadimplidas, (viii)  das subvenções, (ix) dos reembolsos, (x) das doações. Trata-se de somente alguns dos inúmeros temas que movimentam discussões entre o fisco e o contribuinte referente à temática relativa ao conceito jurídico de receita e do regime de competência.

Por

Rodrigo Schwartz

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]

Rodrigo Schwartz Holanda - Menezes Niebuhr

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