03 | 11 | 2023

Obrigações acessórias e a contabilidade nas offshores detidas por pessoas físicas

Retomando a análise do texto anterior desta série, sobre as obrigações perante o fisco federal, a pessoa física deve informar a sua participação na companhia offshore na Declaração de Imposto de Renda (DIRPF), informando o valor de aquisição em reais, assim como com qualquer outro ativo ou direito de sua propriedade no país.

Além dos deveres instrumentais perante a Receita Federal, é obrigatório informar anualmente – mediante a transmissão da Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (DCBE) – o investimento ao Banco Central do Brasil (BACEN) caso o valor total de mercado dos ativos detidos no exceda US$ 1.000.000,00. Caso os valores excedam US$100.000.000,00, as declarações devem ser trimestrais. Para determinar a obrigatoriedade da DCBE, o residente fiscal brasileiro deve levar em consideração a soma dos ativos mantidos no exterior, segregando-os a conforme a sua natureza, moeda e país de localização, sendo necessário, em alguns casos específicos, promover a consolidação dos ativos.

Para participações em sociedades no exterior que podem ser qualificadas como investimento direto (dependendo do percentual), a DCBE exige a apresentação de dados contábeis e financeiros da empresa, incluindo valores de ativos, passivos, patrimônio líquido e resultado do exercício. Além do investimento direto e participações societárias, também devem ser informados na declaração, depósitos, empréstimos, financiamentos, arrendamento mercantil, investimento em portfólio, instrumentos financeiros derivativos, bens móveis e imóveis e criptoativos. Desde 2018 o BACEN passou a solicitar outras informações sobre o investimento direto em empresas no exterior, como o número de funcionários, identificação de eventuais subsidiárias indiretas no exterior e suas atividades. Tudo isso, veja-se, para conferir maior transparência aos ativos detidos pela empresa e à principal fonte de renda gerada no exterior (ativo subjacente).

A Resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) n. 3.854/2010 prescreve que os responsáveis por fornecer informações devem manter a documentação comprobatória por um período de cinco anos, a partir da data da declaração, para apresentação ao BACEN, se requisitado (art. 7º). Entre outras possíveis penalidades pelo descumprimento, conforme a Circular BACEN n. 3.857/2017,  a ausência de transmissão acarreta a multa de 5% do valor sujeito a registro ou declaração (limitado a R$ 125.000,00). Caso a pessoa não entregue a DCBE ou não apresente documentação comprobatória das informações fornecidas, que incluem o balanço patrimonial e demonstração de resultados do ano correspondente.

A despeito de eventual questionamento sobre a compatibilidade desta sanção com o ordenamento jurídico brasileiro, o BACEN exerce a competência para imposição destas penalidades pela delegação constante da Lei n. 13.506/2017. Ainda no campo das incertezas e aspectos controversos, em certos casos, essas informações podem ser compartilhadas com a Receita Federal (RFB), aumentando o risco de auditorias e questionamentos, como mencionado anteriormente. A legalidade dessa multa e a possibilidade de o BACEN compartilhar informações são dois aspectos que não serão objeto de maiores digressões neste texto para preservar a abordagem desta série.

Concentrando as nossas atenções nas autuações envolvendo estruturas offshore, o primeiro aspecto que chama a atenção é a inexistência de casos envolvendo pessoas físicas residentes no Brasil, na medida que a maioria dos casos que se identificam é sobre a tributação de pessoas jurídicas. Muito embora o programa de repatriação lançado em 2016 pela Lei n. 13.254/2016 (RERCT) tenha colocado as pessoas físicas no centro debate, as controvérsias sobre as demonstrações financeiras como base para exigência da renda auferida por pessoas físicas no exterior ainda é relativamente incipiente. Trata-se, porém, de um tema que certamente demandará maior amadurecimento, especialmente pelo regime de tributação do IRPF que acompanha o Projeto de Lei n. 4.173/2023, que será objeto de comentários futuramente, após a publicação do texto final, se aprovado.

Tomando empresadas as premissas utilizadas nas discussões envolvendo pessoa jurídicas, o que se observa é que a contabilidade exerce um papel fundamental para a validação ou desconsideração das estruturas envolvendo o exterior.

Vejamos, para iniciar a análise, o acórdão 910101.402, julgado pela Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Trata-se de um caso interessante, que envolvia uma pessoa jurídica brasileira que comercializava produtos para suas subsidiárias, que posteriormente revendiam a clientes localizados no exterior mediante operações back-to-back. Abstraindo a riqueza de detalhes do caso, o raciocínio da fiscalização, em linhas gerais, foi o de que as subsidiárias, que atuavam no Uruguai e nas Ilhas Virgens Britânicas, eram intermediadoras de vendas realizadas pela empresa brasileira e com os importadores finais. O fundamento da autuação foi a suposta omissão de receitas mediante a desconsideração das empresas no exterior.

Muito embora a estrutura tenha representado uma significativa redução da carga tributária, a higidez e consistência das demonstrações financeiras compuseram o debate pelos conselheiros no âmbito do CARF. Isso fica evidente aos analisar a fundamentação da decisão. Consta do acórdão que “foi na contabilidade da contribuinte que a fiscalização apurou todas as irregularidades que imputa à empresa. Desde o primeiro atendimento à Fiscalização, durante a auditoria, o contribuinte foi transparente e coerente em seus esclarecimentos, sobretudo no que diz respeito a seu entendimento quando ao amparo legal para seus procedimentos”.

Veja-se que o caso, que teve desfecho favorável ao contribuinte, levou em consideração que as “operações foram efetivamente realizadas e os valores envolvidos foram regularmente contabilizados”. E não é diferente nos casos em que o resultado é desfavorável ao contribuinte. No acórdão n. 1201-001.904, que envolvia uma estrutura com empresa offshore no contexto de contratos de afretamento, a companhia domiciliada no exterior foi considerada interposta, por considerarem os conselheiros, entre outros elementos, que “o contribuinte não comprovou a natureza e a origem efetiva dos dados contábeis que apresenta com nenhuma prova ou documental hábil suporte.” Pesou no julgamento o fato de que não era “possível aferir a exata natureza e composição das rubricas, muito menos confrontar os registros contábeis com a sua respectiva causa, assim como a contabilidade”.

Tudo isso, veja-se, corrobora que em toda e qualquer estrutura – seja ela offshore ou não – é fundamental que o contribuinte transmita os deveres instrumentais ao Fisco e, se for o caso, ao Banco Central e mantenha os instrumentos contratuais e as demonstrações financeiras das empresas sediadas no exterior. Os registros contábeis desempenham um papel fundamental na comprovação da independência patrimonial e da existência como entidade autônoma.

Conforme ilustrado a partir da análise dessas decisões do CARF, é indispensável que as pessoas físicas que investem em offshore mantenham à disposição as demonstrações contábeis atualizadas, inteligíveis e, mais importante, que retratem de forma fidedigna os elementos patrimoniais e os resultados experimentados nas atividades desempenhadas no exterior. Trata-se de um aspecto fundamental para reduzir o risco de possíveis questionamentos por parte das autoridades fazendárias, especialmente no contexto do Projeto de Lei n. 4.713/2023. Nos termos da redação atual – ainda não aprovada –, os lucros das controladas deverão ser “apurados de forma individualizada, em balanço anual da controlada, direta ou indireta, no exterior, elaborado com observância aos padrões contábeis da legislação comercial brasileira”.

Antes de encerrar as ponderações sobre a indispensabilidade da contabilidade em estruturas envolvendo o exterior, vale lembrar que, na linha do acórdão recém comentado (n. 910101.402), o contribuinte tem liberdade para organizar suas atividades/empresas e promover um planejamento tributário. Conforme decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.446, a desconsideração, para fins fiscais, só é aplicável aos atos ou negócios jurídicos que visam ocultar ou dissimular o fato gerador.

Em síntese, nos dois últimos textos foi visto que, (i) até o momento não há uma definição legal de “offshore”, embora esteja sendo proposta uma definição para fins tributários, (ii) o termo é comumente associado aos investimentos em companhias em jurisdição de tributação favorecida, o que é uma análise apressada sobre o investimento, que pode ser concebido para diversas outras finalidades e em diversas jurisdições, não se restringindo aos aspectos fiscais. Além disso, (iii) está em andamento o Projeto de Lei n. 4.173/2023 que, se aprovado, afetará significativamente o regime de tributação dos investimentos no exterior. A (iv) desconsideração da personalidade jurídica é possível e aplicável aos instrumentos no exterior, sendo relevante considerar que, em matéria tributária e em casos específicos, é possível que sócios, administradores e terceiros interessados nas vantagens decorrentes da estrutura estejam submetidos às regras de responsabilidade tributária. Com relação aos deveres instrumentais, (v) os ativos no exterior devem ser informados à Receita Federal do Brasil anualmente e, observados os requisitos específicos, ao Banco Central do Brasil.

Nesse contexto, foi observado que (vi) o CARF contém decisões favoráveis e desfavoráveis sobre a utilização de empresas offshores, mostrando-se relevante a escrituração contábil para o desfecho dos julgamentos. Além disso, foi visto que (vii) nada obsta que a pessoa física residente fiscal no Brasil promova um planejamento tributário envolvendo companhias no exterior, pois inexiste, no ordenamento jurídico pátrio, norma que proíba o contribuinte de organizar suas atividades. Assim, (vii) a contabilidade das companhias e estruturas detidas no exterior deve observar os padrões e as boas práticas contábeis, de modo que retratem de forma fidedigna o resultado, os bens, direitos e obrigações da empresa offshore para, assim, reduzir os riscos de questionamentos e obter maior segurança jurídica.

Dito isso, resta-nos aguardar a análise do Projeto de Lei n. 4.173/2023. Se o texto proposto for aprovado, será publicado mais um texto nesta série sobre Direito Tributário e Contabilidade, aí vocacionado aos aspectos tributários e às diferenças fiscais entre o regime atual e o regime aprovado.

Artigo publicado no portal Jota, em 30/10/23.

Por

Rodrigo Schwartz

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Especialista em […]

Rodrigo Schwartz Holanda - Menezes Niebuhr

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