22 | 05 | 2023

RCTR-C e MP 1.153: considerações sobre a cláusula de DDR e apólice por estipulação

No último dia 27 de abril, a Câmara dos Deputados deliberou sobre o Projeto de Lei de Conversão nº 10/2023, proveniente da Medida Provisória nº 1.153/2022. Dentre outros temas, o PLV nº 10/2023 propõe a alteração da redação do artigo 13 da Lei nº 11.442/2007, cujo texto original facultava ao embarcador a contratação do seguro contra perdas e danos causados à carga.

Trata-se da denominada apólice por estipulação, prática recorrente no mercado de seguros de transportes rodoviário de cargas, notadamente para o Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Cargas (RCTR-C). O embarcador, contratante do serviço de transporte, além de celebrar, como segurado, o seu seguro relativo à carga transportada (Seguro Transporte Nacional ou Internacional), contrata também, na qualidade de estipulante, o RCTR-C por conta do transportador, que figura como segurado na apólice.

A MP nº 1.153/2022 volta-se contra essa prática. As razões do Projeto [1] da qual ela se originou considera que a contratação por estipulação “traz enormes prejuízos para as transportadoras”, o que decorreria de “a maioria dos grandes embarcadores contrata[r] diariamente, em nome do transportador, apólice de seguro, estabelecendo, por consequência, regras próprias em plano de gerenciamento de risco”. Nos transportes realizados de forma fracionada, ou seja, com cargas de diversos embarcadores, os transportadores se veriam “obrigados, em uma mesma viagem, a adotar diversos procedimentos a fim de atender a cada uma das companhias de seguros e/ou gerenciadoras [de risco]”. Nesse contexto, o Projeto propõe que “a obrigatoriedade de contratação do RCTR-C [seja] exclusiva do transportador autônomo, da empresa de cargas ou da cooperativa de transportes de cargas”, do que se convenceu a Presidência da República em dezembro de 2022.

A MP nº 1.153/2022 alterou a redação do artigo 13 da Lei nº 11.442/2007 determinando ser de contratação exclusiva do transportador rodoviário de cargas o RCTR-C [2]. Embora as razões do Projeto de MP refiram-se apenas a esse seguro, propôs-se (e a Presidência da República acolheu) a mesma regra quanto ao Seguro de Responsabilidade Civil Facultativo do Transportador por Desaparecimento de Carga (RCF-DC) e ao Seguro de Responsabilidade Civil Facultativa de Veículos (RCF-V) [3]. Portanto, o objetivo final da proposta foi o de excluir os embarcadores das tratativas dos seguros obrigatórios ou facultativos relativos à responsabilidade civil do transportador rodoviário de cargas, eliminando-se da prática de mercado os “acordos entre embarcadores e seguradoras que obrigam os transportadores que lhes prestam serviços a contratar seguros de forma conjunta em uma única seguradora, retirando-lhes qualquer oportunidade de obter condições melhores de negociação”, conforme exposto nas razões do Projeto de MP.

Elementos-chave dessa realidade combatida pelo Projeto e pela MP nº 1.153/2022 são a Cláusula e a Carta de Dispensa de Direito de Regresso (DDR). Não há qualquer referência a elas nas disposições da citada MP ou do Projeto que a originou. No entanto, nas razões do Projeto a DDR é tratada como uma “verdadeira armadilha para os transportadores”. Ela seria “o instrumento utilizado para formalizar essa pretensa avocação de responsabilidade por parte de atores alheios à efetiva operacionalização do transporte remunerado de cargas”. Como consequência, os transportadores rodoviários de cargas seriam submetidos a “interpretações e cláusula unilaterais impostas pelas seguradoras ou gerenciadoras de risco imbricadas nas … ‘DDR'”, o que deixaria a descoberto os transportadores rodoviários de cargas em muitos casos.

As razões do projeto limitam-se a indicar um único desses casos, a saber, o transporte de carga fracionada e a sua relação com o Plano de Gerenciamento de Riscos. Não esclarece quais seriam todos eles. Todavia, da prática judicial é possível identificar ao menos mais um problema prático, consistente na hipótese de o sinistro envolvendo a carga segurada encontrar-se coberto pelo RCTR-C. Para essa situação, como regra, não se aplica a Cláusula de DDR, ocorrendo, portanto, a sub-rogação do segurador do embarcador na pretensão indenizatória contra o transportador.

Para compreender a situação, impende ter em vista que o embarcador celebra com o seu segurador o Seguro Transporte Nacional ou o Seguro Transporte Internacional. Ao contrário do RCTR-C, eles não são seguros de responsabilidade civil, uma vez que a cobertura contratada diz respeito aos bens ou mercadorias do próprio embarcador. Na ocorrência de um sinistro coberto pelo seguro, o embarcador, na qualidade de segurado, é indenizado pelo segurador, o qual, por sua vez, como regra, sub-roga-se na pretensão indenizatória daquele em face do transportador. Todavia, como praxe, as condições gerais do Seguro Transporte Nacional ou do Seguro Transporte Internacional contêm Cláusula de DDR, pela qual, se aceitar as condições pré-estabelecidas pelo segurador na Carta de DDR, o transportador contratado é isento da responsabilidade civil pelos prejuízos causados à carga transportada.

No entanto, tal dispensa não é absoluta. Dentre as condicionantes do efeito liberatório prevê-se geralmente que a DDR não é aplicável se os prejuízos decorrerem de risco amparado pelo seguro obrigatório do transportador rodoviário de cargas. A previsão tem a sua lógica. Embora o transportador não possa invocar a DDR, respondendo pelo prejuízo sofrido pelo embarcador indenizado pelo segurador do Seguro Transporte Nacional ou Internacional, ele, o transportador, estaria coberto pelo RCTR-C.

Todavia, há um problema prático. Na contratação do RCTR-C por estipulação, o segurador do seguro do embarcador é o mesmo segurador do seguro do transportador. Nesse contexto, malgrado a cobertura do sinistro pelo RCTR-C, é comum que o transportador, ao ser demandado pelo segurador, invoque em sua defesa a aplicação da Cláusula de DDR. Com alguma frequência, o Judiciário lhe nega razão, afastando a DDR e, portanto, responsabilizando o transportador. A título ilustrativo, em recente decisão a 10ª Vara Cível da Comarca de Guarulhos/SP não aceitou o argumento do transportador de que o segurador do embarcador, que buscava a sua responsabilização civil em ação de regresso, era também o seu segurador no RCTR-C, contratado por estipulação. Segundo a sentença, “o título que embasa a pretensão vestibular é distinto daquele suscitado pela transportadora […]. São apólices distintas, com previsões distintas” [4].

O pressuposto da decisão é correto. Não se deve confundir os dois seguros. No Seguro Transporte Nacional ou no Seguro Transporte Internacional (nos quais constam a Cláusula de DDR), é o embarcador que figura como segurado; no RCTR-C, mesmo na contratação por estipulação, o segurado é o transportador, não o embarcador. Nesse contexto, em princípio seria possível ao transportador requerer a denunciação da lide do próprio autor da ação de regresso. Se por um lado o transportador é responsável perante o segurador nos termos da exceção à DDR (risco coberto pelo RCTR-C), por outro lado o mesmo segurador, em razão do RCTR-C, é obrigado a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do transportador, se este for vencido no pedido de indenização com fundamento na sub-rogação (CPC, artigo 125, inciso II). O transportador também poderia deixar de promover a denunciação da lide, ajuizando ação autônoma em face do segurador. Em qualquer das hipóteses, vencidos e vencedores se confundiriam.

A situação é sui generis, mas encontra solução adequada no Direito Civil, pois aplicável o instituto da compensação, que, nas palavras da doutrina, “visa eliminar um circuito inútil” [5], como ocorre na hipótese. Em razão da sub-rogação nos direitos do embarcador com fundamento no Seguro Transporte Nacional ou Internacional, o segurador torna-se ao mesmo tempo credor e devedor do transportador, seu segurado no RCTR-C, aplicando-se, portanto, o artigo 368 do Código Civil.

Poderia haver dúvida se atendido estaria o requisito legal da liquidez das dívidas (CC, artigo 369). Todavia, há razões de ordem lógica impondo a conclusão afirmativa. O segurador sub-rogado justifica a não aplicação da DDR precisamente na existência de cobertura securitária em favor do transportador pelo RCTR-C. Sendo essa a razão da ocorrência da sub-rogação, seria contraditório que o segurador do embarcador, agora na qualidade de segurador do RCTR-C, considerasse que o risco contratado não estaria coberto pelo seguro do transportador. Neste caso, a exceção à incidência da Cláusula de DDR não se aplicaria. Consequentemente, teria sido infundado o ajuizamento da ação regressiva, o qual, em verdade, firma a certeza quanto à existência do débito em favor do transportador, o mesmo raciocínio sendo aplicável também em relação ao quantum devido pelas partes.

Por outro lado, poder-se-ia contra-argumentar que no RCTR-C como regra o pagamento deve ser realizado diretamente ao embarcador, conforme previsão do artigo 44 das Condições Gerais do RCTR-C [6]. Todavia, isso não afasta a conclusão de que o ajuizamento da ação de regresso estabelece a certeza do débito. Pelo contrário, reforça-o.

A contratação por estipulação não desnatura o RCTR-C, um seguro do transportador, em um seguro do embarcador. Nesse contexto, o pagamento realizado pelo segurador poderá realizar-se a dois títulos. Se o pagamento ocorrer a título de cumprimento do RCTR-C, nos termos do artigo 44 das referida Condições Gerais, sequer haverá se cogitar de sub-rogação do segurador, pois extinto estará o crédito do embarcador. Se o pagamento ocorrer a título de cumprimento do Seguro Transporte Nacional ou Internacional, ocorrida a sub-rogação do segurador no direito do embarcador, a extinção do crédito ou decorrerá do instituto da compensação, já referido, pois segurador e transportador serão ao mesmo tempo credor e devedor um do outro, ou, em se entendendo que o verdadeiro titular da indenização securitária do RCTR-C seria o embarcador (como terceiro prejudicado), a extinção decorrerá do instituto da confusão. Nesta última hipótese, o segurador, ao se sub-rogar na pretensão indenizatória titularizada pelo embarcador em face do transportador, tornar-se-ia, igualmente, titular do crédito resultante do RCTR-C, do qual é o devedor. Dessa forma, aplicar-se-ia a regra do artigo 381 do Código Civil, segundo a qual “extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e de devedor”. Extinta a relação jurídica relativa ao RCTR-C, que, desta perspectiva, serviria a garantir o terceiro prejudicado, extinto também estaria o crédito deste em face do transportador, pois integralmente satisfeito.

Assim, conquanto correta a premissa da existência de “apólices distintas” na contratação do RCTR-C por estipulação, a responsabilização do transportador rodoviário de cargas é obstaculizada por outros institutos: a extinção por pagamento do próprio direito objeto da sub-rogação, a compensação ou a confusão. Portanto, sem efeito prático torna-se a previsão contratual de não incidência da DDR em caso de risco coberto pelo RCTR-C se houver identidade entre os seguradores do seguro do embarcador e do transportador.

Consequentemente, ao menos no que diz respeito à hipótese aqui analisada, não há justificativa para uma proibição legislativa da contratação do RCTR-C por estipulação. As decisões que responsabilizam o transportador na hipótese de identidade dos seguradores consistem em uma falha de natureza jurisprudencial, a qual deve ser corrigida nessa mesma seara. Dessa falha não se deve inferir qualquer problema de ordem legislativa. Se complicações ou distorções de mercado existem na contratação dos seguros do transportador por estipulação, outras serão as suas razões, não a hipótese aqui analisada.

Feitas essas considerações, é preciso ter em mente que foram mantidas na votação ocorrida na Câmara dos Deputados no dia 27 de abril de 2023 as diretrizes gerais da MP nº 1.153/2022, ao menos no que diz respeito ao artigo 13 da Lei nº 11.442/2007. Ressalvadas algumas importantes modificações textuais, conforme o texto da aprovada Emenda de Plenário nº 7, a proposta, se vier a ser aprovada pelo Senado Federal, em princípio impedirá a contratação do RCTR-C por estipulação. Trata-se de uma decisão que, para ser adequadamente tomada, pressupõe a exata compreensão dos problemas concretos subjacentes à contratação por estipulação dos seguros do transportador rodoviário de cargas. Àquele relativo à exclusão da DDR quanto a riscos cobertos pelo RCTR-C pode a própria jurisprudência oferecer uma solução adequada e satisfatória, sendo desnecessária uma intervenção legislativa para esse escopo.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] EM n° 00063/2022 MINFRA CC/PR.

[2] Artigo 13, inciso I e § 1º

[3] Artigo 13, incisos II e III

[4] TJSP, 10ª Vara Cível da Comarca de Guarulhos, Processo nº 1012590-33.2022.8.26.0224, decisão de 25/11/2022.

[5] NANNI, Giovanni Ettore in NANNI, Giovanni Ettore (Coord.). Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 583.

[6] Cf. o anexo da Resolução CNSP nº 219/2010

Publicado na Revista Consultor Jurídico, em 22 de maio de 2023.

Por

Guilherme Henrique Lima Reinig

Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados


Atuação em Responsabilidade Civil e Seguros. Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina. Área: […]

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