02 | 04 | 2020
O atual momento pelo qual passa o nosso país e outras nações traz impactos para além da saúde humana. No intuito (louvável) de buscar maior segurança à integridade física de seus cidadãos, as várias esferas governamentais optaram por políticas de restrição à circulação e ao contato de pessoas, acarretando graves consequências de ordem financeira. Apesar da incerteza que ainda envolve – ao menos enquanto estas palavras são escritas – quais atividades econômicas são consideradas essenciais, para fins de continuidade ou paralisação das operações, é certo que a suspensão de parcela significativa da produção e da circulação de bens e serviços em nosso país afetará, em maior ou menor grau, a todos nós.
Nesse contexto, o instituto da recuperação de empresas, por meio judicial ou extrajudicial, coloca-se como uma possibilidade para o empresário que esteja vivenciando crise de suas atividades, seja em decorrência exclusiva do atual período de lockdown ou apenas agravada por ele. Tal possibilidade deve ser avaliada pelo empresário junto a profissionais capacitados, tanto no aspecto jurídico quanto financeiro/contábil. Não se trata de uma solução milagrosa, nem é isenta de riscos ou consequências significativas para a vida do empresário. A decisão requer análise criteriosa, em especial, da situação da empresa, das suas obrigações, das alternativas (que lhe são particulares) e dos efeitos do pedido de recuperação para seus sócios e partes coligadas.
O presente roteiro presta-se a esclarecer e orientar o empresário acerca dos principais pontos de atenção, abordando de forma objetiva:
1) Quem pode pedir recuperação?
2) Quais os requisitos devem ser observados para que se possa formular pedido de recuperação judicial ou propor aos credores plano de recuperação extrajudicial?
3) Quais obrigações sujeitam-se à recuperação e quais não?
4) Como o plano de recuperação é aprovado?
5) Plano de recuperação especial para ME e EPP.
6) Quais as consequências para o insucesso do processo?
1) Quem pode pedir recuperação?
Conforme a Lei n. 11.101/2005 – LREF, todo empresário individual, EIRELI ou sociedade empresária pode formular pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, observados os requisitos especificados no item 2 a seguir e ressalvadas algumas atividades econômicas e as empresas públicas e sociedades de economia mista[1].
No caso do empresário individual, a recuperação também poderá ser requerida pelo cônjuge sobrevivente, pelos herdeiros do devedor ou pelo inventariante.
2) Quais os requisitos devem ser observados para que se possa formular pedido de recuperação judicial ou propor aos credores plano de recuperação extrajudicial?
O interessado deve estar exercendo regularmente suas atividades (isto é, devidamente registrado na Junta Comercial) pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos e, adicionalmente:
I – não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes;
II – não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial;
III – não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial para ME e EPP;
IV – não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Tratando-se de exercício de atividade rural por pessoa jurídica, admite-se a comprovação do prazo de 2 (dois) anos por meio da Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica – DIPJ que tenha sido entregue no prazo adequado.
Com relação ao produtor rural individual, o tempo de exercício da atividade, desde que comprovado, previamente ao registro do indivíduo na Junta Comercial pode ser computado para efeitos do cômputo do prazo de 2 (dois) anos, conforme entendimento do STJ[2].
Além disso, o pedido de recuperação judicial exige que o empresário levante e apresente uma extensa relação de documentos, especificados no artigo 51 da LREF:
I – a exposição das causas da crise;
II – as demonstrações contábeis relativas aos 3 (três) últimos exercícios sociais e as levantadas especialmente para instruir o pedido;
III – a relação nominal completa dos credores e seus respectivos créditos, inclusive aqueles por obrigação de fazer ou de dar;
IV – a relação integral dos empregados, com funções, salários, indenizações e outras parcelas a que têm direito, e seus respectivos créditos;
V – certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas, o ato constitutivo atualizado e, se aplicável, as atas de nomeação dos atuais administradores;
VI – a relação dos bens particulares dos sócios controladores e dos administradores do devedor;
VII – os extratos atualizados das contas bancárias do devedor;
VIII – certidões dos cartórios de protestos situados na comarca do domicílio ou sede do devedor e naquelas onde possui filial;
IX – a relação, subscrita pelo devedor, de todas as ações judiciais em que este figure como parte, inclusive as de natureza trabalhista, com a estimativa dos respectivos valores demandados.
3) Quais créditos sujeitam-se à recuperação e quais não?
Recuperação judicial: Todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, conforme caput do artigo 49 da LREF, exceto:
a) Fiscais;
b) Credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis;
c) Arrendador mercantil;
d) Proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias;
e) Proprietário em contrato de venda com reserva de domínio; e
f) Importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação.
Nas hipóteses das alíneas “b” a “e” acima, apesar do crédito não se submeter aos efeitos da recuperação judicial, o credor não poderá exigir a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais à sua atividade empresarial, durante o prazo de suspensão determinado pelo juízo.
Importante: Apesar da maioria dos créditos ficarem sujeitos à recuperação e, portanto, à suspensão da sua exigibilidade e, se aprovado o plano, à novação, as obrigações dos coobrigados (a exemplo de avalistas e fiadores) não sofrem qualquer alteração, salvo se assim previsto no plano aprovado[3].
Recuperação extrajudicial: Abrangência quase idêntica à recuperação judicial, à exceção dos créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidente de trabalho, que não são incluídos na recuperação extrajudicial, e tomando-se por base a data do pedido de homologação judicial.
4) Como o plano de recuperação é aprovado?
O plano de recuperação pode prever a alteração dos créditos sujeitos, inclusive com dilação do prazo de pagamento e descontos no valor. Pode também ser utilizado para promover alterações estruturais na empresa e/ou a venda de ativos, que dificilmente seriam possíveis de outra forma. Todavia, a aprovação do plano depende da anuência dos próprios credores sujeitos à recuperação, desde que seus créditos sofram alteração.
Recuperação judicial: Os credores detentores de créditos sujeitos à recuperação são organizados em 4 (quatro) classes: I – titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho; II – titulares de créditos com garantia real; III – titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados; e IV – titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte. Após a apresentação do plano em juízo, qualquer dos credores tem direito a manifestar sua oposição. Havendo uma ou mais oposições, será realizada assembleia para votação acerca do plano, restando aprovado somente se todas as classes presentes à assembleia aprovarem, com votos computados por maioria simples por cabeça ou por cabeça e por créditos, a depender da classe. Excepcionalmente, se o plano não for aprovado por uma única classe, o juízo pode conceder a recuperação, na forma dos parágrafos do artigo 58 da LREF.
Recuperação extrajudicial: No primeiro momento, o plano é apresentado e negociado diretamente com os credores potencialmente sujeitos, sem promoção de ação judicial. A partir do momento que o devedor tiver obtido a adesão expressa representativa de mais de 3/5 (três quintos) dos créditos que pretende novar (alterar), organizados por classe, poderá requerer a homologação do plano em juízo. Uma vez homologado, o plano passará a sujeitar a totalidade dos créditos ali previstos.
5) Plano de recuperação especial para ME e EPP.
As ME e EPP contam com a possibilidade de um plano de recuperação judicial simplificado, cuja aprovação é obtida por sistemática favorável. Nesse caso, o plano de recuperação judicial limitar-se-á às seguintes condições:
I – abrangerá todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, excetuados os decorrentes de repasse de recursos oficiais e aqueles descritos no item 3 acima;
II – preverá parcelamento em até 36 (trinta e seis) parcelas mensais, iguais e sucessivas, acrescidas de juros equivalentes à taxa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – SELIC, podendo conter ainda a proposta de abatimento do valor das dívidas;
III – preverá o pagamento da 1ª (primeira) parcela no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da distribuição do pedido de recuperação judicial; e
IV – estabelecerá a necessidade de autorização do juiz, após ouvido o administrador judicial e o Comitê de Credores, para o devedor aumentar despesas ou contratar empregados.
6) Quais as consequências para o insucesso do processo?
Recuperação judicial: Após recebido o pedido de recuperação judicial e deferido seu processamento, o interessado tentará obter em juízo a aprovação do plano de recuperação. A partir de então, diversas são as hipóteses de convolação da recuperação judicial em falência: (i) caso o devedor não apresente o plano no prazo devido (60 dias após o deferimento do processamento); (ii) se a maioria dos credores assim decidir; (iii) se o plano for rejeitado pelos credores; (iv) se, aprovado o plano, o devedor descumpri-lo; e (v) se houver decretação pelo descumprimento de obrigação não prevista no plano ou por ato de falência, conforme artigo 94 da LREF.
Recuperação extrajudicial: A recuperação extrajudicial apresenta algumas desvantagens em relação à recuperação judicial, dentre as quais a ausência de um prazo de suspensão das ações e execuções, durante o qual o devedor ganha um fôlego para estruturar o plano e preparar-se para sua implementação, se aprovado. Em contrapartida, o insucesso na homologação do plano ou o descumprimento de um plano de recuperação extrajudicial homologado não acarretam a convolação em falência, ressalvada a hipótese de decretação com fulcro no artigo 94 da LREF, possibilidade existente independentemente da tentativa de recuperação extrajudicial.
De todo o exposto, conclui-se que a opção por um pedido de recuperação demanda análise criteriosa, dentre outros elementos, da crise experimentada pelo empresário e, em especial, das características de seu endividamento. Por exemplo, o endividamento concentrado em reduzido número de credores pode indicar o caminho da recuperação extrajudicial, a depender da verificação de outros fatores. Um endividamento fiscal expressivo pode dificultar a implementação da recuperação (mas não impossibilita), em especial se o devedor considerar inviável o pedido de parcelamento de débitos fiscais especial para empresas em recuperação[4]. Da mesma forma, havendo garantias pessoais em volume expressivo, as partes envolvidas devem avaliar de forma criteriosa os efeitos que a recuperação terá sobre tais obrigações e, potencialmente, sobre futuras negociações com bancos e demais integrantes do Sistema Financeiro, que podem ver com reticência a opção pela recuperação. Em suma, não há receita pronta para uma situação de crise econômico-financeira da empresa, mas a recuperação, se bem avaliada e aplicada, é um mecanismo capaz de atender o interesse do empresário que enfrenta tal dificuldade.
[1] Art. 2º Esta Lei não se aplica a:
I – empresa pública e sociedade de economia mista;
II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.
[2] REsp 1800032/MT, Rel. Ministro MARCO BUZZI, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 05/11/2019, DJe 10/02/2020.
[3] A questão ainda é polêmica nos Tribunais. A dúvida é se basta o plano ser aprovado pela maioria dos credores contendo previsão de afastamento das garantias pessoais ou se seria necessário o voto afirmativo expresso do detentor da garantia para que ela fosse afastada.
[4] Lei nº 10.522/2002:
Art. 10-A. O empresário ou a sociedade empresária que pleitear ou tiver deferido o processamento da recuperação judicial, nos termos dos arts. 51, 52 e 70 da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, poderão parcelar seus débitos com a Fazenda Nacional, em 84 (oitenta e quatro) parcelas mensais e consecutivas, calculadas observando-se os seguintes percentuais mínimos, aplicados sobre o valor da dívida consolidada: (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
I – da 1ª à 12ª prestação: 0,666% (seiscentos e sessenta e seis milésimos por cento); (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
II – da 13ª à 24ª prestação: 1% (um por cento); (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
III – da 25ª à 83ª prestação: 1,333% (um inteiro e trezentos e trinta e três milésimos por cento); e (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
IV – 84ª prestação: saldo devedor remanescente. (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
§ 1º O disposto neste artigo aplica-se à totalidade dos débitos do empresário ou da sociedade empresária constituídos ou não, inscritos ou não em Dívida Ativa da União, mesmo que discutidos judicialmente em ação proposta pelo sujeito passivo ou em fase de execução fiscal já ajuizada, ressalvados exclusivamente os débitos incluídos em parcelamentos regidos por outras leis. (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
§ 2º No caso dos débitos que se encontrarem sob discussão administrativa ou judicial, submetidos ou não à causa legal de suspensão de exigibilidade, o sujeito passivo deverá comprovar que desistiu expressamente e de forma irrevogável da impugnação ou do recurso interposto, ou da ação judicial, e, cumulativamente, renunciou a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem a ação judicial e o recurso administrativo. (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
§ 3º O empresário ou a sociedade empresária poderá, a seu critério, desistir dos parcelamentos em curso, independentemente da modalidade, e solicitar que eles sejam parcelados nos termos deste artigo. (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
§ 4º Além das hipóteses previstas no art. 14-B, é causa de rescisão do parcelamento a não concessão da recuperação judicial de que trata o art. 58 da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, bem como a decretação da falência da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
§ 5º O empresário ou a sociedade empresária poderá ter apenas um parcelamento de que trata o caput, cujos débitos constituídos, inscritos ou não em Dívida Ativa da União, poderão ser incluídos até a data do pedido de parcelamento. (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
§ 6º A concessão do parcelamento não implica a liberação dos bens e direitos do devedor ou de seus responsáveis que tenham sido constituídos em garantia dos respectivos créditos. (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
§ 7º O parcelamento referido no caput observará as demais condições previstas nesta Lei, ressalvado o disposto no § 1º do art. 11, no inciso II do § 1º do art. 12, nos incisos I, II e VIII do art. 14 e no §2º do art. 14-A. (Incluído pela Lei n. 13.043, de 2014)
§ 8º O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, aos créditos de qualquer natureza das autarquias e fundações públicas federais. (Incluído pela Lei n. 13.494, de 2017)
Por
Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados
Mestrando em Direito Empresarial – FGV/SP. Especialista em Direito Empresarial pela FGV/RJ. Pós-graduado em Estratégias […]
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